Cláudio Cordovil

Paciente-testemunho, ok! Mas para que, exatamente?

Conitec, políticas públicas, transparência

No dia 9 de dezembro, em sua 93ª Reunião, a Conitec trouxe-nos a novidade do paciente-testemunho, uma iniciativa onde, segundo seus idealizadores , os usuários do SUS “poderão compartilhar suas experiências no enfrentamento das mais diversas condições de saúde” com o seu Plenário.

Foi sobre o medicamento tafamidis meglumina para tratamento da cardiomiopatia amiloide, doença rara causada por um distúrbio do metabolismo de proteínas que atinge os tecidos do coração, prejudicando seu funcionamento.

Pela regra, tal como recentemente anunciada, a participação do paciente-testemunho ocorre na reunião de apreciação inicial da tecnologia em avaliação, aquela que antecede a consulta pública e posterior aos pareceres dos Núcleos de Avaliação de Tecnologias em Saúde sobre o referido medicamento (ou tecnologia). É também neste momento que a Conitec define sua recomendação preliminar.

Naturalmente, ainda é cedo para se avaliar o impacto de tais iniciativas na tomada de decisão da Conitec. Só pesquisas futuras poderão indicar sua utilidade, propriedade e limites. Mas há que se ter cautela e não se tirar conclusões precipitadas sobre eventuais benefícios da iniciativa para os pacientes. Barbas de molho é bom procedimento, em se tratando de agências desta natureza e doenças raras.

Assim, passamos a fazer algumas considerações sobre o tema.

A primeira coisa que se pode observar é o momento em que se dará a participação do paciente-testemunho. A nosso ver, se dá em fase bem tardia de todo o fluxo habitual no processo administrativo ao qual é submetido cada medicamento (ou tecnologia de saúde).

Isso pode afetar o quanto de influência tal testemunho poderá ter em todo o processo. Pelo informado no site da Conitec, ele se dá após a realização dos estudos e revisões sistemáticas pelos NATS voltados ao uso da evidência científica na tomada de decisão.

Nesse sentido podemos inferir que poderá servir para esclarecer alguns pontos onde predominem incertezas nos estudos realizados pelo NATS, (p. ex. sobre a magnitude do efeito em um desfecho clínico complexo ou quando a análise de custo-efetividade apontar um valor acima do limiar de custo-efetividade que cada membro do Plenário imagine ser o adequado (já que no Brasil não há um valor oficial atribuído a este indicador).

A Conitec realiza um verdadeiro esforço de mudança de imagem, com o auxílio,  ao que tudo indica voluntário, de algumas ONGs nestas cooperações características do que se convencionou chamar de “Terceiro Setor”. Tal empenho na mudança de imagem é notório para quem observa suas novas peças promocionais.

Dentro deste pacote, talvez esteja incluído um trato mais cortês com pacientes (doentes raros). Civilidade, convenhamos, é sempre uma coisa boa.  Afinal, eles sempre foram vistos como massa de manobra da indústria farmacêutica por alguns agentes públicos (ainda que sem provas empíricas de tal conluio ou mesmo “evidências”).

Por conta deste passivo institucional,  qualquer gesto de aproximação com pacientes sempre corre o risco de soar pouco autêntico. E a desconfiança mútua não costuma ser boa conselheira para iniciativas de qualquer natureza, em qualquer domínio da vida humana.

Tais visões preconceituosas são meras impressões de tais agentes públicos, não corroboradas pelas tão apreciadas “evidências”, ou o que se convencionou conceber como tal.

 Só estudos sociais empíricos aprofundados poderiam revelar se haveria (e em que extensão) a captura, no Brasil, das associações de pacientes pelos interesses da iniciativa privada.

Uma coisa é certa: se o Estado não tratar os pacientes como se deve, eles terão todos os motivos do mundo para procurar ajuda em outro lugar. É uma lei da vida. Humano, demasiado humano.

Voltando à iniciativa acima anunciada. Só o tempo dirá se o “paciente-testemunho” participará de um mero ritual cosmético, cenográfico, ‘para inglês ver’, ou terá poder suficiente, com seu relato breve de 10 minutos, de afetar rumos de eventual decisão ‘já tomada na cabeça’ dos membros do Plenário.

Desconhece-se até o momento quão benéfico para os pacientes será tal envolvimento. Isso porque seu depoimento-testemunho será colhido em momento posterior aos resultados dos estudos de avaliação econômica e de outra natureza conduzidos pelos NATS ou Rebrats e encaminhados ao Plenário para a tomada decisão de incorporar ou não o medicamento ao SUS.

A literatura acadêmica em Ciências Sociais recomenda cautela diante destas iniciativas de “engajamento de pacientes”, a expressão da moda na temporada. Restam dúvidas sobre como e por que envolver o paciente nestes processos e falta avaliar o impacto de tal participação nos mesmos. De que forma se deve dar uma efetiva parceria genuína entre pacientes e agências de avaliação de tecnologias em saúde que não se limite a manifestações aqui e ali de empatia com a sua dor?

Qual o racional (rationale) que deve nortear tais experimentos de forma a que este envolvimento seja genuíno e produtivo para ambas as partes e não apenas cenográfico? São perguntas que ainda carecem de respostas mais consistentes no meio acadêmico.

De que forma institucionalizada  (e documentada em procedimentos) tais relatos anedóticos dos pacientes se encaixam no continuum de práticas de ATS de uma determinada instituição? Como tais relatos serão incorporados ao restante de evidências formais de caráter clínico e econômico usuais nestes processos? Que forma devem assumir para serem consideradas “evidências ” de alguma natureza e com que valor hierárquico? Qual o peso que terão e como se acomodarão entre elas?

Preocupa-me o fato de, sem maior estruturação destes processos, suscitarem-se falsas esperanças em pacientes que acreditarão que, só por estarem sendo escutados, verão aumentadas suas chances de serem atendidos em seus pleitos. O risco da frustração de expectativas está sempre presente, mas convém não atiça-las.

Qual o protocolo que vai reger tais escutas dos pacientes-testemunho? Onde seu depoimento entra no processo de tomada de decisão? É preciso formalizar melhor e documentar estes processos, para que não pareçam uma mera escuta tolerante, boa para efeitos de popularidade institucional e “mudança de imagem”, mas pouco relevantes na construção de uma genuína participação do paciente em processos desta natureza.

Mas se já podemos antever alguma coisa positiva nesta iniciativa que ora se anuncia é a possibilidade dos nobres e respeitosos integrantes do Plenário travarem contato com a vida real de pessoas que sofrem, pacientes de carne e osso, que ali exporão suas dificuldades.

Ao menos este leve constrangimento terão que enfrentar. Tomara que não entre por um ouvido e saia pelo outro. É o que os doentes raros (e todos os brasileiros), já um tanto cansados, realmente desejam.

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