O processo de habilitação dos serviços

[su_dropcap style=”flat”]C[/su_dropcap]onsiderando as responsabilidades do Ministério da Saúde enquanto principal gestor das políticas de saúde nacionais, a demora para habilitar novos serviços tem se mostrado um entrave para a efetivação da Portaria 199/2014.

Desde a sua publicação, 37 estabelecimentos cumpriram todo o processo necessário para a sua habilitação, mas apenas 17 foram habilitados. (Dados até maio de 2020)  As demais 20 instituições continuam aguardando a anuência do Ministério para passar a receber os repasses, visto que, na prática, já operam como serviços de atendimento de pessoas com doenças raras.

As habilitações implicam na liberação de recursos pelo Ministério da Saúde. Portanto, a limitação orçamentária é um desafio para a expansão do número de serviços. A aprovação, em 2016, do “teto de gastos” (EC 95), somada ao elevado percentual de gastos com a Previdência Social e o alto nível de endividamento dos estados, criaram um contexto de corte de gastos nos Ministérios, o que se refletiu na saúde. De forma geral, o governo do ex- presidente Michel Temer (ago./2016-2018) foi fortemente pautado pela redução de custos, o que deu origem a iniciativas e políticas focadas na melhoria da gestão dos serviços e menos na sua expansão.

Nesse contexto, a primeira onda de habilitações de serviços para doenças raras aconteceu no final de 2016, dois anos após a publicação da Portaria 199/2014, e, por algum tempo, foi a única. Apenas em 2019 houve uma nova onda de habilitações, durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (2019-), após a habilitação de um único serviço entre uma onda e outra: a Associação de Pais e Amigos Excepcionais (APAE) de Salvador (BA), habilitada em julho de 2018.

A segunda onda, em 2019, ocorreu em um contexto diferente dos anos anteriores. Podemos citar aqui três fatores que contribuíram de alguma forma para moldar o ambiente para essas novas habilitações. Primeiro, os pedidos de habilitação de serviços de doenças raras compõem uma discussão mais ampla.

Em janeiro de 2018, foi discutida e aprovada uma resolução da Comissão Intergestores Tripartite (Resolução nº 36/2018) que definiu prazos para que os gestores enviassem ao Ministério da Saúde uma lista de serviços de saúde de média e alta complexidade habilitados que não estivessem funcionando ou não apresentassem a produção registrada nos sistemas de informação.

A partir dessa lista, o Ministério suspenderia os repasses dos recursos de custeio. Essa decisão foi resultado de uma avaliação de que diversas entidades estavam recebendo recursos do governo federal sem que houvesse a devida prestação do serviço à população.

A iniciativa estava alinhada à agenda de aumentar a eficiência dos gastos, abrindo a possiblidade de se habilitar novos serviços no futuro, segundo o próprio ministro da Saúde à época, Ricardo Barros.

Desde então, o Conselho Nacional de Secretário de Saúde (CONASS) e o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS) demandaram, em diversas reuniões da CIT, que o Ministério acelerasse a publicação das habilitações – em oncologia, terapia renal substitutiva, atenção básica, para citar algumas – que apenas aguardavam a aprovação final da pasta.

Em uma dessas ocasiões, em maio de 2018, CONASS e CONASEMS reiteraram a importância de se aprovar as habilitações com o objetivo de garantir mais recursos para a saúde, em função da EC 95/201614. Essa pressão, feita pelos gestores subnacionais, colaborou para que, em dezembro de 2019, finalmente, as habilitações para os serviços relacionados às doenças raras fossem aprovadas.

O segundo fator que colaborou foi a evidente profissionalização das associações de pacientes de doenças raras nos últimos anos, que deram mais força, visibilidade e legitimidade para a agenda. Os holofotes que as doenças raras ganharam nas discussões sobre saúde reforçaram a necessidade de melhoria do cuidado desses pacientes, incluindo a ampliação do número de serviços na rede do SUS para melhor acolhê-los e acompanhá-los.

Nesse sentido, o apoio de senadores e deputados, no Congresso Nacional, foi peça chave para cobrar um posicionamento por parte do Ministério da Saúde.

O terceiro fator que vale mencionar foi a criação, em junho de 2019, do primeiro projeto-piloto de acordo de compartilhamento de risco no país, celebrado entre o Ministério da Saúde e uma indústria farmacêutica, para viabilizar o acesso, através do SUS, a um medicamento para os pacientes com AME (Nota da Redação: Esse projeto-piloto foi descontinuado um ano depois de sua criação). Para que o acordo pudesse acontecer era necessária a estruturação de uma rede de serviços para acompanhar a progressão dos pacientes durante o uso do medicamento.

Como diversos medicamentos para doenças raras são produtos de mais alto custo e são usualmente administrados por via infusional, com o acompanhamento de um médico especialista, é imprescindível ao Ministério da Saúde ter uma rede logística organizada para evitar desperdícios e garantir o seu uso adequado; solução não apenas para o projeto-piloto, mas também para o crescente número de incorporações de tecnologias para doenças raras realizadas em anos recentes. Seis meses após a publicação do projeto- piloto, o número de serviços saltou de 8 para 17.

Apesar dos fatores trazidos para ilustrar alguns dos desafios para a habilitação de novos serviços pelo Ministério da Saúde, outros tantos acontecem no nível subnacional.

Antes de o processo chegar ao Ministério da Saúde, é necessário que haja interesse do próprio estabelecimento de saúde de ser habilitado como serviço especializado ou de referência, e a iniciativa da secretaria de saúde em apoiar essa habilitação. Com isso, outras dificuldades estruturais do SUS acabam ficando evidentes.

A primeira delas é a atenção dada às doenças raras em meio às diversas outras questões percebidas como mais latentes pelas secretarias de saúde, como filas para cirurgias eletivas, falta de insumos hospitalares ou mesmo a atenção básica.

O desconhecimento sobre o funcionamento da Portaria 199/2014, sobretudo nas regiões que ainda não possuem nenhum serviço habilitado, somado à complexidade de se estruturar uma rede para doenças tão específicas acabam por alongar a curva de aprendizado dos gestores sobre como avançar com a política de maneira rápida e coesa. Esta curva, no entanto, tende a diminuir na medida em que novos serviços são habilitados, fortalecendo uma rede de compartilhamento de experiências e de melhores práticas.

Somado a isso, existe o receio de profissionais de saúde e dos gestores acerca do aumento da demanda nos serviços habilitados. Ainda que a Portaria 199/2014 preveja valores de repasse mensal ao serviço e a remuneração de procedimentos diagnósticos, esses valores não necessariamente cobrem todos os gastos envolvidos no cuidado aos pacientes, como o uso de leitos de internação, custos ligados à infusão de medicamentos e a remuneração de equipe especializada.

Isso porque, apesar de os hospitais que solicitam a habilitação já terem, em sua maioria, experiência consistente no atendimento de pacientes com doenças raras, a habilitação do estabelecimento dá visibilidade a nível nacional de sua especialidade e pode causar de fato o aumento de demanda e, por consequência, exigir maiores investimentos por parte das secretarias de saúde.

[su_note note_color=”#161611″ text_color=”#F7F7F5″]Voltamos com a série “Doenças Raras: para onde vamos” na próxima segunda-feira (12/4). Bom fim de semana![/su_note]

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A série de posts intitulada Doenças raras: para onde vamos? é baseada em estudo desenvolvido pela Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) e consistiu em análise descritiva da implementação da Portaria 199/2014 bem como seus desafios. A divulgação deste conteúdo por este blog é de caráter voluntário, não tendo envolvido remuneração de qualquer espécie ao seu autor.  Esta série não expressa necessariamente o ponto de vista do blog Academia de Pacientes.

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