Trikafta: luta de doentes raros no Brasil atinge novo patamar

Do advocacy ao ativismo? O confronto entre associações de pacientes e a indústria farmacêutica (aqui representada pela empresa Vertex Pharmaceuticals) no caso Trikafta®, pode sinalizar uma mudança de fase nas outrora plácidas (e muitas vezes suspeitas) relações entre estes dois atores em solo brasileiro.

Resta saber se tal despertar da consciência cidadã dos pacientes com fibrose cística poderá ser extrapolado para outras associações de pacientes, representando outras enfermidades pouco frequentes. Afinal, preços muitas vezes extorsivos de medicamentos não são problema limitado à fibrose cística.

Se você está chegando agora ao debate do momento no campo das doenças raras, aqui vai um breve resumo.

No dia 7 de fevereiro, o jornal The New York Times estampou em suas páginas longa matéria sobre o drama dos pacientes com fibrose cística, provocado pelo preço exorbitante de um tratamento a ser administrado por toda a vida e reputado como “milagroso”. Até mesmo por especialistas e instituições independentes respeitadas: Trikafta®.

Podendo alcançar a cifra de 800 mil reais anuais, a ser desembolsado por desesperados cidadãos norte-americanos e seus familiares, o tratamento revela-se totalmente inacessível à grande maioria dos comuns mortais.

Lembre-se que nos EUA a saúde NÃO é direito de todos e dever do Estado, contrariamente ao que acontece no Brasil. Com registro na Anvisa desde o início de março do ano passado, Trikafta® aguarda eventual recomendação da Conitec para sua incorporação ao SUS. Se aprovada, o medicamento poderá beneficiar entre 1.500 e 1.700 pacientes elegíveis em solo nacional.

A reportagem do New York Times ganhou grande repercussão no Brasil, acendendo um verdadeiro rastilho de pólvora.

Já no dia 22 de fevereiro, o jornal O Globo reproduzia matéria dando conta de que 34 associações nacionais de pacientes de fibrose cística e grupos da sociedade civil endereçaram carta à Ministra da Saúde Nísia Trindade, visando ampliação do acesso ao Trikafta® por meio da “quebra de patente” ou “licença compulsória”.

A motivar a radical proposta de quebra de patente, o preço extorsivo do Trikafta®. E quanto ao descalabro de seu preço não restam dúvidas. O sempre sério Instituto para Revisão Clínica e Econômica dos EUA já concluiu que, para ser verdadeiramente custoefetivo, o medicamento precisaria sofrer uma redução de 73% em seu preço final.

O Caso Trikafta® é uma porta de entrada interessante para termos acesso a um dos debates mais acalorados em curso há décadas no Brasil no âmbito da saúde coletiva. No cerne deste debate, encontram-se as tensões inevitáveis entre saúde e comércio, que não pareciam incomodar as associações de pacientes com doenças raras, até então.

Em sua defesa, a Vertex Pharmaceuticals esclarece que o preço “reflete o valor clínico e os benefícios que ele traz para os pacientes, cuidadores e sistemas de saúde”. ((Fibrose cística: associações de pais de crianças com a doença pedem quebra de patente de drogas de até 800 mil reais, O Globo, 22 fev 2022)).


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Quebra de patentes: do que se trata?

Antes de explicar o que significa “quebra de patentes” ou (licença compulsória), convèm voltarmos ao passado e nos dirigirmos a abril de 1994.

O Acordo TRIPS

Esta data marca o fim de 10 anos de negociações na área do comércio internacional e que ficou conhecida como Rodada Uruguai, realizada no âmbito do Acordo Geral de Tarifa e Comércio (GATT).

Este ciclo de negociações foi responsável pela criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) e aprovação de uma série de acordos multilaterais, entre eles o Acordo TRIPS((Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio)), ambos referendados pela assinatura de 123 países, em Marrakech.

O Acordo TRIPS estabelece padrões mínimos para a proteção da propriedade intelectual , obrigando os países-membros a adaptar suas legislações nacionais. O referido acordo também inclui a proteção de patentes de produtos farmacêuticos.

Patentes consistem num privilégio concedido pelo Estado como forma de premiar o esforço inventivo, desde que a inovação apresente novidade em relação ao estado da arte, resulte de atividade inventiva e tenha aplicação industrial. ((Barbosa ALF. Sobre a propriedade do trabalho intelectual: uma perspectiva crítica. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 1999.))(( World Intellectual Property Organization. WIPO intellectual property handbook. 2nd Ed. Geneva: World Intellectual Property Organization; 2004)).

Atribui-se à proteção patentária a imposição de preços exorbitantes em determinadas classes de medicamentos. o que constitui uma barreira significativa ao acesso ao tratamentos essenciais e à concretização de políticas sociais nos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil. 

Antes da entrada em vigor do Acordo TRIPS, os países tinham mais liberdade
para projetar seus regimes nacionais de proteção à luz da Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial. Assim, os países poderiam excluir da proteção da propriedade intelectual setores inteiros da tecnologia, determinar o prazo de vigor das patentes e definir muitos outros aspectos de tais regimes.

Tanto isso é verdade que, antes do acordo TRIPS, alguns países como Argentina, Brasil, Chile, Índia, Indonésia e Coréia do Sul, dentre outros, não concediam patentes a medicamentos.

Nestes países existia uma indústria nacional de cópias destas mercadorias, comercializadas a preços inferiores em relação às versões originais.

Devido ao fato de ratificações do TRIPS por parte dos países serem uma condição indispensável para ingresso na OMC, qualquer pais buscando obter acesso fácil aos inúmeros mercados internacionais devem alinhar suas legislações aos rigorosos ditames estipulados pelo TRIPS.

A proteção industrial no Brasil

No Brasil, a Lei Nº 9.279, de 14 de maio de 1996 regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial, à luz do preconizado pelo Acordo TRIPS. Esta lei foi recentemente alterada, no auge da pandemia de Covid-19, pela Lei Nº 14.200, de 2 de setembro de 2021, que dispõe “sobre a licença compulsória de patentes ou de pedidos de patente nos casos de declaração de emergência nacional ou internacional ou de interesse público, ou de reconhecimento de estado de calamidade pública de âmbito nacional”.

É importante destacar que o Acordo TRIPS também estabelece as denominadas “flexibilidades” ou salvaguardas. Entre elas incluem-se disposições que permitem a utilização de produtos ou processos sob proteção patentária sem a autorização do detentor da patente.

A quebra de patentes ou licença compulsória, considerada elemento fundamental nas leis de proteção patentária, é uma destas flexibilidades. Ela permite a exploração do produto patenteado mediante autorização do governo.

A quebra de patentes está devidamente incorporada na Lei Nº 9.279, de 14 de maio de 1996, e mantida na Lei Nº 14.200, de 2 de setembro de 2021, que a alterou. No Brasil, a licença compulsória só foi aplicada uma vez, no caso do anti-retroviral efavirenz, indicado para o tratamento da AIDS.

Em maio de 2007, o Brasil decretou, na gestão do presidente Lula, o licenciamento compulsório das patentes relacionadas ao Efavirenz®((Brasil. Decreto nº. 6.108. Concede licenciamento compulsório, por interesse público, de patentes referentes ao Efavirenz, para fins de uso público não-comercial. Diário Oficial da União 2007; 4 mai)). Naquela ocasião, o Ministério da Saúde, encabeçado pelo ministro José Gomes Temporão, dera início à importação de genéricos da Índia para, em um segundo momento, dar andamento à produção local do anti-retroviral.

A matéria citada do jornal The New York Times dá conta de uma peregrinação de pacientes e familiares à Argentina para a obtenção da versão genérica do Trikafta®, comercializada sob a marca Trixacar®, pelo laboratório Gador, ao preço de 3 mil dólares mensais.

Se assim desejasse, o Brasil poderia decretar a licença compulsória deste medicamento, importar sua versão genérica da Argentina, para em seguida dar andamento à producão local do mesmo, via Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP), por exemplo.

Naturalmente, a “quebra de patentes” não é recurso livre de tensões. Talvez por isso tenha sido aplicada uma única vez no Brasil, muito embora cogitada várias vezes. Sobre o tema, a Interfarma, entidade que reúne o setor de pesquisa da indústria farmacêutica no Brasil, assim se pronunciou:

Um país com um sistema de propriedade intelectual forte e em acordo com tratados internacionais se torna mais atrativo para investimentos em inovação, com ganhos para a saúde da população. Produtos de alta complexidade tecnológica não são facilmente desenvolvidos, tampouco replicados. Eles são resultantes de longos processos de pesquisa e emprego de diferentes recursos, incluindo recursos humanos. Não há ambiente favorável a investimentos em inovação por qualquer empresa, qualquer que seja o setor econômico, sem um sistema de propriedade intelectual equilibrado e juridicamente estável.

A declaração de Doha

Como mencionado anteriormente, o Acordo TRIPS previa flexibilidades, como a quebra de patentes ou licença compulsória para fins de proteção da saúde pública. No entanto, logo após a adoção do Acordo, questionamentos importantes ao emprego de tais flexibilidades levantaram preocupações dos países em desenvolvimento sobre as restrições à sua capacidade de buscarem proteger a saúde pública através da “quebra de patentes”.

É nesse contexto que surge a Declaração de Doha (2001). Ela visava reiterar algo já disposto no Acordo TRIPS, a saber: o direito de os Estados Membros da OMC de empregarem as flexibilidades do TRIPS relacionadas à saúde pública para ampliar o acesso a medicamentos

Concordamos que o Acordo TRIPS não impede e não deve impedir que os Membros adotem medidas de proteção à saúde pública. Deste modo, ao mesmo tempo em que reiteramos nosso compromisso com o Acordo TRIPS, afirmamos que o Acordo pode e deve ser interpretado e implementado de modo a implicar apoio ao direito dos Membros da OMC de proteger a saúde pública e, em particular, de promover o acesso de todos aos medicamentos.

Declaração de Doha, parágrafo 4

Apesar das potencialidades democratizantes da Declaração de Doha, sua aplicabilidade no mundo real tem se mostrado repleta de percalços. Na avaliação do sanitarista Paulo Buss, a Declaração “é um ideal quase impossível de ser efetivado, tantas são as interposições jurídicas”.

Rompendo paradigmas dominantes

A mobilização nacional em busca do acesso ao Trikafta® pode representar um divisor de águas nas estratégias de luta das pessoas que vivem com doenças raras.

Ao reivindicar a quebra da patente de um medicamento com preços extorsivos, pacientes colocam na ordem do dia, ainda que involuntariamente, a discussão sobre a dependência estrutural externa do país no campo da Ciência e da Tecnologia.

Mas de nada adianta reivindicar quebra de patentes sem propugnar pelo desenvolvimento de nosso parque científico e tecnológico, pelo aumento das verbas para pesquisa e pelo fortalecimento do Complexo Econômico Industrial da Saúde.

Sem lutar pelo fortalecimento de nossa capacidade produtiva, pública e privada, nos setores farmoquímico e farmacêutico e na biotecnologia, eventual quebra de patente do Trikafta®, se conquistada, poderá representar uma vitória de Pirro.

Ainda assim, há que se destacar a virtude cívica da mobilização da comunidade ligada à fibrose cística em busca do Trikafta®. Ela sinaliza o amadurecimento político da militância em doenças raras e pode representar a inscrição da temática “doenças raras” na agenda dos grandes temas nacionais em Saúde e Desenvolvimento.

A proteção patentária no caso do Trikafta® ensejada pelo Acordo TRIPS revela com clareza meridiana as tensões existentes entre ganância, cupidez, interesse econômico e direito humano fundamental à saúde, no qual estão englobados o direito ao tratamento e ao acesso a medicamentos.

O movimento global em prol do acesso ao Trikafta® guarda alguma semelhança com as manifestações promovidas pelos militantes anti-Aids na busca do acesso acelerado a medicamentos que tinham o potencial de salvar suas vidas na década de 1990. Fatos muito bem retratados no filme 120 batimentos por minuto (veja abaixo o trailer).

4 comentários em “Trikafta: luta de doentes raros no Brasil atinge novo patamar”

  1. Fico muito triste diante desta briga entre patente e vidas,tenho um filho com fibrose de 10 anos que se ele começar a tomar o Trikafta agora teria longos dias de vida, vejo a vida do meu filho indo embora a cada dia ,a cada mês e não posso fazer nada, espero num futuro bem próximo fazer outro comentário dizendo da nossa vitória sobre esta luta

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