Há quarenta anos, comemorados no dia 4 de janeiro (quarta-feira), o presidente Ronald Reagan sancionava a Lei dos Medicamentos Órfãos ((Lei dos Medicamentos Órfãos completa 40 anos de existência)). Considerada como uma das mais bem-sucedidas leis norte-americanas, ela busca criar incentivos para a produção de medicamentos para o tratamento de doenças raras.
Mas nem tudo é um mar de rosas. Em 2017, uma investigação da Kaiser Health News (KHN) verificou que algumas empresas farmacêuticas estão usando a Lei de Medicamentos Órfãos para criar monopólios e cobrar preços altos por medicamentos que já teriam sido aprovados para uso no mercado de massa nos EUA.
Doença rara nos EUA é toda aquela enfermidade que acomete até 200 mil pessoas. Considerando pragmaticamente a finalidade da ODA, a lei de fato superou expectativas ((Althobaiti H, Seoane-Vazquez E, Brown LM, Fleming ML, Rodriguez-Monguio R. FDA Orphan Designations, Approvals, and Regulatory Review Time since the Enactment of the Orphan Drug Act (1983). Research Square; 2022.)). Isto porque até a década anterior a sua publicação, existiam apenas 10 medicamentos para tratar doenças raras ((Haffner, ME, Adopting Orphan Drugs — Two Dozen Years of Treating Rare Diseases, N Engl J Med 2006; 354:445-447.)).
Índice deste post
Consultando-se a base de dados “Designações e aprovações de medicamentos órfãos da FDA”, do Escritório da FDA para Desenvolvimento de Medicamentos Órfãos ((Althobaiti H, Seoane-Vazquez E, Brown LM, Fleming ML, Rodriguez-Monguio R. FDA Orphan Designations, Approvals, and Regulatory Review Time since the Enactment of the Orphan Drug Act (1983). Research Square; 2022.)), verifica-se que entre a aprovação da lei e o dia 31 de dezembro de 2021, 6.137 designações de medicamentos órfãos foram concedidas por aquela agência, e 1.045 medicamentos órfãos foram aprovados, ou seja, receberam autorização para comercialização.
Seus preços representam um custo médio anual de mais de 123 mil dólares. Um preço 25 vezes mais elevado do que os preços de lançamento em 1998, de acordo com um relatório publicado pela America’s Health Insurance Plans (AHIP) ((AHIP: Orphan drug costs 26 times higher than they were 20 years ago)). Vê-se que os medicamentos órfãos parecem se configurar como uma verdadeira galinha dos ovos de ouro da indústria farmacêutica.
Para chegar a esta conclusão, a AHIP examinou uma lista de novos medicamentos aprovados pelo FDA entre 1998 e 2017. Para cada medicamento, os pesquisadores calcularam o gasto anual por paciente em seu preço de lançamento, ajustado pela inflação, por tipo de medicamento e por classe terapêutica.
Brechas na lei
“Gaming the system”: A expressão serve para definir situações em que se usam as regras e procedimentos criados para proteger um sistema para, em vez disso, manipulá-lo para um fim desejado. Ou seja, aproveitar-se de brechas na lei, em português claro.
Ao longo destes 40 anos, tempo suficiente transcorreu para que pesquisadores observassem a conduta da indústria farmacêutica para manipular a ODA a seu favor, em detrimento do espírito público que deveria nortear empresas que gostam de jactar-se de observar princípios de responsabilidade social (ESG).
Em 2017, a Kaiser Health News, uma agência norte-americana de jornalismo investigativo em saúde, constatou que “o sistema destinado a ajudar pacientes desesperados estava sendo manipulado pela indústria farmacêutica para maximizar lucros e proteger nichos de mercado para medicamentos já consumidos por milhões [de consumidores]” ((Drugmakers Manipulate Orphan Drug Rules To Create Prized Monopolies)).
Não se trata propriamente de uma violação da lei. Mas, simplesmente, os fabricantes estão tirando vantagens da ODA não previstas pelos legisladores. Até dezembro de 2021, 285 “medicamentos órfãos” já haviam sido previamente aprovados para doenças frequentes ((Althobaiti H, Seoane-Vazquez E, Brown LM, Fleming ML, Rodriguez-Monguio R. FDA Orphan Designations, Approvals, and Regulatory Review Time since the Enactment of the Orphan Drug Act (1983). Research Square; 2022.)). De olho nos incentivos fiscais para a produção de medicamentos órfãos e a exclusividade de mercado por sete anos proporcionados pela ODA, a indústria farmacêutica lança mão deste estratagema maroto: Solicitar designação de medicamento órfão para medicamento já existente no mercado, e, não raro, um campeão de vendas.
Até janeiro de 2017, os fabricantes de blockbusters como Crestor (colesterolemia), Abilify (para condições psiquiátricas), Herceptin (oncológico) e Humira (artrite reumatóide) tinham buscado o estatuto de “medicamento órfão” para estas mesmas moléculas ((Drugmakers Manipulate Orphan Drug Rules To Create Prized Monopolies)).
A investigação da KHN constatou que cerca de 1/3 das aprovações pelo FDA, de 1983 até 2016, representavam medicamentos que já se encontravam no mercado de massa e receberam indicações posteriores para doenças raras ou mesmo consistiam de moléculas que receberam múltiplas indicações para doenças raras (repurposing) . A cada nova indicação como medicamento órfão para uma doença rara, uma nova rodada de incentivos decorrentes da ODA lhe é concedido.
A exclusividade de mercado por sete anos garantida pela ODA é uma interessante ferramenta para precificação. Sem concorrência, o fabricante pode definir preços exorbitantes, numa espécie de monopólio. Algo que os defensores da prática preferem chamar de “monopsônio“
Já tratamos do assunto em um post no blog Academia de Pacientes 2030 ((Brechas na lei geram preços exorbitantes no tratamento das doenças raras))
Investigação federal
Motivados pelas revelações da reportagem da KHN, três senadores republicanos solicitaram a abertura de nova investigação, desta vez federal, das denúncias apresentadas.
Assim, em 30 de novembro de 2018, veio a lume relatório produzido pelo Government Accountability Office ((Orphan Drugs: FDA Could Improve Designation Review Consistency; Rare Disease Drug Development Challenges Continue)). Entre as conclusões, o fato de os revisores da FDA nem sempre incluirem nos dossiês todas as informações necessárias para determinar se um medicamento é elegível para receber designação de “medicamento órfão”.
Em artigo reproduzido neste blog e originalmente publicado no exterior em julho de 2016, o professor da Universidade de Medicina de Utah, A. Gordon Smith ((Manipulação de preços e uma perigosa espécie de empresas farmacêuticas)), revelou um estratagema que tem se tornado comum na indústria. As empresas legalmente adquirem os direitos de comercialização de drogas já existentes, realizam uma ligeira modificação em sua fórmula e dão uma turbinada nos preços logo após a aprovação da nova indicação pela FDA, sem ter feito qualquer investimento mais significativo em Pesquisa & Desenvolvimento (P&D).
Os “cânceres raros”
Os avanços na genética molecular e na medicina de previsão estão alterando a definição do que se entendia por doença no século 20. Tome-se o caso dos cânceres. Há algumas décadas, vínhamos definindo os cânceres por sua localização, como em “câncer de pulmão”, “câncer de intestino”, “câncer de pâncreas” etc.
Ainda que estas classificações se mantenham nos dias de hoje, cada vez mais elas se fazem acompanhar de subclassificações que levam em conta as mutações genéticas subjacentes envolvidas no processo da doença.
Sabe-se agora que os cânceres variam de acordo com mutações genéticas a eles relacionadas. Assim, podemos falar de cânceres com mutações p53, cânceres com mutações rb, cânceres com mutações BRAF, cânceres com mutações MEK e cânceres com mutações ERBB2. Este fatiamento do que outrora conhecíamos como cânceres localizados em determinados órgãos do corpo os convertem em coleções de cânceres mais raros, afetando populações menores do que as 200 mil pessoas, condição prevista na ODA para definir o que seja uma “doença rara”.
Tais avanços propiciados pela medicina de precisão e pela genética molecular têm o potencial de transformar num futuro próximo todas as doenças frequentes conhecidas em doenças raras, identificadas que serão por mutações genéticas específicas, como aquelas já identificadas em alguns tipos de câncer. Desnecessário dizer que os medicamentos que têm como alvo mutações genéticas específicas chegam ao mercado com preços astronômicos. Gaming the system?
Mas não é só com os cânceres que vemos um fatiamento da doença em subclassificações relacionadas a mutações genéticas. Isto já acontece com a fibrose cística e com a doença de Parkinson, por exemplo. Sabe-se que até fevereiro de 2019, esta última, na realidade, englobava cinco distintas enfermidades, subdivididas que foram pela genética molecular.
Com a desagregação das doenças do século 20 propiciada pela identificação de mutações genéticas específicas, toda enfermidade poderá ser considerada uma “doença rara”, pelo padrão norte-americano, visto ficarem abaixo do teto de 200 mil pessoas acometidas necessárias para defini-la como tal.
Esta é mais uma dimensão do problema a revelar a necessidade de se promover alterações na ODA, visando tanto reduzir sua captura pela indústria como torná-la mais coerente com os avanços propiciados pela medicina de precisão e pela genética molecular no conhecimento das enfermidades.
Covid-19 e o ‘caso redemsivir’
Outro caso notório de abuso da Orphan Drug Act ocorreu quando o laboratório Gilead Sciences solicitou a designação de “medicamento órfão” para o redemsivir, indicado para o tratamento da Covid-19.
E , pasmem, ela foi concedida!
Desta forma, a Covid-19 passou a ser considerada uma doença rara. Dados os números alarmantes de casos fatais da pandemia no Brasil isto é um deboche. Lembrando: a designação de “medicamento órfão” é concedida pelo FDA a fármacos destinados a tratar doenças raras, que, por definição, nos EUA, são aquelas que acometem até 200 mil pessoas. Seria cômico, se não fosse trágico,
A reação da sociedade civil logo se fez notar. Associações de pacientes norte-americanas protestaram veementemente. Na ocasião, a ONG Public Citizen em carta aberta endereçada ao CEO da Gilead Sciences (com mais 50 assinaturas de outras entidades da sociedade civil), assim se pronunciou: “Chamar a COVID-19 de ‘doença rara’ zomba do sofrimento das pessoas e explora uma brecha na lei para lucrar com uma pandemia mortal”. A bem da verdade, cumpre destacar que o laboratório pleiteou a designação de medicamento órfão junto ao FDA antes de a Covid-19 atingir 200 mil pessoas em solo americano. Mas era favas contadas o fato de que a população acometida iria superar esta cifra em curto espaço de tempo.
Dada a pressão popular, só restou ao laboratório solicitar a retirada da designação de medicamento órfão junto a FDA. Em 23 de março de 2020, a Gilead entrou com pedido junto ao FDA para obtenção da cobiçada designação. Em 25 de março, requereu a rescisão da mesma.
Mas o estrago já estava feito. Em 17 de agosto de 2020, a prestigiosa revista médica JAMA fez publicar um artigo ((Chua K, Conti RM. Policy Implications of the Orphan Drug Designation for Remdesivir to Treat COVID-19. JAMA Intern Med. 2020;180(10):1273–1274)). Nele, seus autores argumentam que “a designação de medicamento órfão para remdesivir para COVID-19 e os benefícios correspondentes para o patrocinador do medicamento foram concedidos de forma inadequada e que o FDA deveria ter maior autoridade para implementar a Lei de Medicamentos Órfãos consistente com sua intenção” ((Remdesivir Designation as Orphan Drug Exposed Policy Loophole)). E concluem, conclamando o Congresso dos EUA e a FDA a garantir que os benefícios da Lei de Medicamentos Órfãos sejam usados apenas de maneira consistente com seu propósito.
Em Academia de Pacientes 2030, outro projeto virtual de nossa autoria, Nicole Hassoun propôs algumas soluções para corrigir as distorções da Lei dos Medicamentos Órfãos. ((Brechas na lei geram preços exorbitantes no tratamento das doenças raras))
Como se vê, o assunto é extenso. Por ora, encerramos o post por aqui, prometendo voltar ao tema em breve.