Cláudio Cordovil

Manipulação de preços e uma perigosa espécie de empresas farmacêuticas

custo-efetividade, políticas públicas, transparência

Por Gordon Smith

Eu conheci Tony, em 2001, quando ele me foi encaminhado com uma severa fraqueza muscular. Confinado a uma cadeira de rodas e incapaz de cuidar de si mesmo, ele recebera o diagnóstico de esclerose lateral amiotrófica (ELA), um distúrbio neurodegenerativo fatal. Verificou-se que Tony na verdade tinha síndrome miastênica de Lambert-Eaton, um distúrbio neuromuscular raro, mas tratável. Depois de iniciar o tratamento com a 3, 4 diaminopiridina (3,4 DAP), ele recuperou grande parte de sua força muscular e, de modo importante, sua capacidade de andar e cuidar de si.

Para Tony, 78 anos, a 3,4  DAP  _ que pode ser comprada barato em farmácias de manipulação ou obtida de graça através de programas de uso compassivo apoiados por uma pequena empresa privada, Jacobus Pharmaceuticals _ é a salvação. Mas para a Catalyst, a empresa farmacêutica que comprou os direitos de comercialização norte-americanos de uma versão levemente modificada de 3,4 DAP (Firdapse) em 2012, o medicamento representa uma oportunidade comercial de catapultar 300 milhões de dólares/ano para 900 milhões de dólares/ano (de 60 mil dólares a 100 mil dólares ou mais por paciente).

Embora a FDA (agência que controla medicamentos nos EUA) tenha achado a documentação apresentada pela Catalyst insuficiente e exigido estudos adicionais, sua aprovação não está descartada. Tony e outros pacientes como ele vivem assombrados pela possibilidade de não serem mais capazes de arcar com o tratamento que lhes devolveu a qualidade de vida. Infelizmente, a estória de Tony está se tornando bastante comum, como uma rotina alarmante, na medida em que incontáveis pacientes, seguradoras e o sistema de saúde norte-americano estão literalmente ‘pagando esta fatura’.

É claro que existem muitos outros exemplos desta estratégia emergente em curso, desde a Turing (cujas ações sob o comando do então diretor Martin Shkreli provocaram um tumulto no mercado) a Valeant (cujas movimentações despertaram a ira do Congresso norte-americano e investigações que levaram à queda de seu presidente) e passando pela  Questcor. Em 2001, a Questcor comprou os direitos do Acthar Gel, que é usado para tratar espasmos infantis, uma rara forma de epilepsia infantil. Em 1959, dois pesquisadores da Clínica Mayo ganharam o Nobel de Medicina por descobrir o ACTH. o principio ativo do Achtar. Meio século depois, uma empresa que não contribuiu em nada para a produção deste medicamento elevou o preço de uma caixa, que custava 40 dólares, para 23 mil dólares.

As empresas farmacêuticas tradicionalmente investem pesado em pesquisa e desenvolvimento (P&D). Os custos exigidos para se trazer uma nova droga ao mercado variam de centenas de milhões de dólares a estratosféricos 2,6 bilhões de dólares, como estimado pelo Centro Tufts para o Estudo do Desenvolvimento de Drogas, em 2014. Em muitos casos, o preço reflete justificadamente tal investimento. Mas o que preocupa é que esta nova geração de empresas farmacêuticas dá prioridade a lucros em lugar da produção e desenvolvimento de medicamentos. Elas legalmente adquirem os direitos de drogas já existentes e dão uma turbinada nos preços logo após a sua aprovação pela FDA, sem ter feito qualquer investimento mais significativo em P&D. Em alguns casos, como no caso do 3,4  DAP, empresas como Catalyst se aproveitam da pesquisa realizada por outros cientistas e empresas, sem sequer fabricar o produto.

Ainda não se calculou o número de empresas que estão empregando este expediente, mas existem evidências de que a prática é particularmente frequente no mercado de medicamentos para doenças raras. Existem cerca de 7 mil doenças afetando algo em torno de 25 a 30 milhões de norte-americanos, e muitas vezes identificar um tratamento para estas doenças é mais fácil do que para doenças comuns, uma vez que a descoberta de uma causa molecular ou genética específica leva ao direcionamento da terapia. A Ionis Pharmaceutical tem sido especialmente bem-sucedida em criar um pipeline destes medicamentos, tais como o Nusinersen, uma terapia promissora para atrofia muscular espinhal (AME).

Outra razão importante para o interesse desta nova geração de empresas farmacêuticas por este mercado é que a Lei de Medicamentos Órfãos (ODA) aumenta substancialmente os lucros potenciais. Desde sua aprovação, em 1983, a ODA tem regulado a aprovação de medicamentos para doenças raras e promovido a inovação farmacêutica, através de diversos incentivos fiscais e exclusividade de mercado por sete anos. No entanto, agora, as empresas farmacêuticas estão se aproveitando destes incentivos para lucrar com pacientes individuais e seguradoras públicas e privadas. Segundo o Relatório de Medicamentos Órfãos de 2015 , da EvaluatePharma, esse mercado representa 20,2% das vendas globais totais de medicamentos obtidos com receita (prescrição médica) e cresce a uma taxa anual de 11,7%, quase o dobro da taxa de crescimento do mercado global deste tipo de medicamentos. Surpreendentemente, 44% dos novos medicamentos aprovados em 2014 receberam designação de medicamentos órfãos, com sete entre 10 dos mais vendidos tendo sido aprovados sob a égide da ODA.

O modelo de negócios de empresas gananciosas impacta profundamente a habilidade dos sistemas de saúde de gerenciar custos e entregar cuidados. Minha colega, Erin Fox, diretora do Serviço de Informação de Medicamentos da Universidade de Utah, recentemente deu um excelente exemplo, em seu testemunho diante de uma Comissão Especial sobre Envelhecimento, no Senado norte-americano. Em 2015, a Valeant comprou o medicamento cardíaco Isuprel e prontamente elevou o preço de uma ampola de 440 dólares para 2.700 dólares, justificando tal gesto pela responsabilidade de maximizar o lucro de seus acionistas. Este aumento de 600% faria crescer o custo anual em nosso hospital em 1,6 milhões de dólares e forçou-nos a retirar este medicamento de nosso carrinho de emergência (veja video abaixo).

Os EUA enfrentam uma crise nos custos dos cuidados em saúde. Gastam-se três trilhões de dólares anuais neles, sendo que 10% deste montante é destinado a medicamentos. O americano médio gasta mais de mil dólares anuais com medicamentos obtidos com prescrição médica, 40% mais do que o segundo colocado neste ranking, que é o Canadá, e o dobro do que a Alemanha gasta. Muitas pessoas associam custo a qualidade do cuidado, mas entre as nações desenvolvidas os cuidados em saúde norte-americanos ficam na metade inferior do ranking das medidas que avaliam qualidade, acesso e eficiência. Neste contexto, o impacto potencial desta nova geração de empresas farmacêuticas é significativo. Quando os pacientes são incapazes de ter acesso a tratamentos e quando os sistemas de saúde são forçados a modificar suprimentos farmacêuticos devido a altas arbitrárias e escandalosas de preços, a qualidade do cuidado fica comprometida.

Hillary Clinton propôs um teto de 250 dólares de gastos pessoais para medicamentos com prescrição médica e outros presidenciáveis propuseram acelerar o processo de aprovação de medicamentos no FDA. Surpreendentemente, Donald Trump endossou uma proposta que iria permitir ao Medicare, administrado pelo governo, fixar preços; uma idéia há muito apoiada pelo Presidente Obama. Mas embora estas propostas tenham seus méritos, elas não se dirigem especificamente aos custos dos medicamentos órfãos. O senador Bernie Sanders propôs uma ideia particularmente radical, através da qual os fabricantes de produtos inovadores iriam receber um ‘prêmio’ financeiro substancial. Esta proposta iria eliminar patentes e exclusividade, o que os críticos acreditam que iria abalar substancialmente o investimento farmacêutico em P&D.

Mas a ODA tem sido muito bem-sucedida em incentivar a indústria farmacêutica. O problema não é o prêmio em si, mas a falha em oferecê-lo somente a empresas inovadoras que façam por merecer. A FDA deve ser autorizada a tomar tais decisões. Deve também permitir usar os custos de P&D e outros fatores relevantes para determinar se um novo fármaco é realmente inovador ou se ele simplesmente substitui um composto já aprovado ou inflaciona o preço de um agente que já estava disponível há décadas (tal como o 3,4  DAP). As vantagens da ODA só devem ser disponibilizadas para empresas que tenham tanto investido como inovado.

Além disso, a FDA deve ter permissão para descontinuar incentivos da ODA para um medicamento em particular, baseada em desempenho futuro. Uma das razões pelas quais sete dos 10 fármacos mais vendidos foram aprovados sob a ODA é que as empresas farmacêuticas buscaram sua aprovação para uma doença rara, mesmo quando estes já eram usados primariamente para tratar uma doença comum. (Tais submissões ‘cavalo de tróia’ são particularmente comuns entre produtos oncológicos). As empresas farmacêuticas por trás de tais submissões terminam recebendo os mesmos incentivos, com um minimo investimento, proporcionalmente, que os verdadeiros inovadores, que investiram bilhões de dólares em P&D para tratamento de doenças ultrarraras. Em 1990, uma proposta de que o status de medicamento órfão fosse retirado de medicamentos com vendas anuais de 200 milhões de dólares ou daqueles que fossem aprovados para populações maiores que 200 mil usuários chegou ao Congresso, mas foi vetada pela presidente George W. Bush. Esta é uma proposta que merece ser reexaminada.

Concluindo, os Estados Unidos são uma das únicas nações no mundo que não controla preços de medicamentos. O governo federal deve ser empoderado para ter uma influência maior neste processo.

O Colégio Americano de Médicos (ACP) recentemente publicou um documento nos Anais de Medicina Interna que convoca o governo a tomar medidas para conter os preços dos medicamentos. Além de defender transparência na precificação e nos custos de P&D, a ACP recomenda muitas soluções potenciais para a questão dos preços exorbitantes, incluindo a necessidade de sociedades profissionais e associações de pacientes se engajarem na discussão nacional sobre preços de medicamentos.

A ACP também sugere que o Instituto de Pesquisas de Desfechos Centrados no Paciente (PCORI) seja empoderado e financiado para investigar os custos de tais fármacos e seu impacto nos desfechos em pacientes. Os resultados de tais pesquisas de eficiência comparativa são de valor inestimável para informar decisões sobre preços de medicamentos. Outra estratégia regulatória para assegurar que os fármacos são precificados de acordo com sua efetividade é criar um mecanismo de revisão pós-aprovação na FDA ,para propor preços justos baseados no valor dos mesmos para os pacientes.

Chegou a hora de nosso processo nacional de aprovação de medicamentos responder à excitante era da descoberta de fármacos e dos cuidados baseados em valor. Comportamentos que têm um papel indiscutível em Wall Street não podem ser tolerados na assistência à saúde.


A. Gordon Smith, MD, é professor, vice diretor de pesquisa e chefe da Divisão de Medicina Neuromuscular da Faculdade de Medicina da Universidade de Utah.

Publicado no Harvard Business Review, em 6/7/2016

Deixe um comentário

error: Corta e cola, não!
Verified by MonsterInsights