Como a indústria manipula patentes farmacêuticas

O sistema de patentes de medicamentos foi criado para recompensar as empresas farmacêuticas pela inovação e garantir o retorno do investimento, mas cada vez mais as empresas estão manipulando o sistema, usando técnicas como “evergreening” e “thicketing” para estender a exclusividade do medicamento e impedir a concorrência dos genéricos. Quais são as consequências dessas práticas manipuladoras para o acesso? Pode este sistema ser reformado para reduzir esse impacto negativo?

Pesquisa e desenvolvimento de medicamentos (P&D) “é um investimento de alto risco para a empresa farmacêutica”, como explica o advogado Dr. Peter Feldschreiber. O sistema de patentes farmacêuticas foi criado e é usado para ajudar as empresas a proteger esse investimento e recuperar os custos gastos na descoberta, desenvolvimento e comercialização de novos medicamentos e, portanto, incentivar futuras pesquisas e inovações neste campo.

As empresas farmacêuticas solicitam uma patente logo após a descoberta de um medicamento e seu novo mecanismo de ação. A partir daí a empresa tem uma patente de 20 anos para o produto, mas P&D pode levar até 15 anos, então quando os produtos forem aprovados e disponibilizados no mercado, a patente pode estar perto de expirar.

Terminado o período de exclusividade de 20 anos, os concorrentes genéricos podem entrar no mercado e competir com o medicamento de marca em preço. Para proteger ainda mais seus investimentos, as empresas geralmente procuram estender seu período de exclusividade para um medicamento registrando patentes secundárias.

Feldschreiber enfatiza que essas extensões de exclusividade são legais e “não são brechas na lei de patentes”, o que Graham Dutfield, professor de governança internacional da Escola de Direito da Universidade de Leeds, concorda, dizendo: “estas são práticas legítimas, permitidas por lei”.

Como as empresas manipulam o sistema de patentes?

No entanto, há uma tendência crescente de as empresas farmacêuticas tentarem ativamente manipular e abusar do sistema de patentes em seu benefício.

A Iniciativa para Medicamentos, Acesso e Conhecimento (I-MAK) argumentou, em um relatório de 2018, intitulado Overpatented, Overpriced que o sistema atual está desequilibrado, pois “os fabricantes de medicamentos transformaram o sistema de patentes em uma estratégia comercial defensiva para evitar a concorrência a fim de auferir lucros descomunais com remédios por muitos anos além do que se pretendia”.

A diretora do Hastings Center for Innovation da Universidade da Califórnia (UC) e professora de direito, Robin Feldman, acrescenta: “As patentes devem durar um período limitado de tempo. Depois disso, os concorrentes devem entrar para derrubar os preços, mas não é isso que está acontecendo. Em vez disso, as empresas farmacêuticas acumulam novas proteções em seus medicamentos para estender o abismo de proteção”.

As duas práticas mais comuns empregadas pela indústria para estender artificialmente a proteção são ‘evergreening’ e ‘thicketing’, como Feldman as descreve em um artigo de 2018 do Journal of Law and Biosciences intitulado May Your Drug Price Be Evergreen.

Envolvem pequenas alterações nos medicamentos de marca – como modos de administração, novas dosagens e, como observou Scrip, até mesmo a simples cor do próprio medicamento – que, às vezes, não conferem maior benefício terapêutico aos pacientes. Feldschreiber reconhece que “há casos em que é muito questionável se pequenas alterações nas moléculas realmente afetam a segurança e a eficácia” e que “há algo de errado nisso”.

Também pode abranger a proteção de certas etapas no processo de produção e fabricação e a reciclagem (repurposing) de medicamentos para outras indicações semelhantes.

Algumas empresas também procuraram encontrar brechas mais criativas na lei para estender seu monopólio sobre um medicamento. Por exemplo, para combater os desafios legais de suas patentes, a Allergan transferiu todas as patentes de seu medicamento para os olhos denominado Restasis para a tribo St Regis Mohawk em setembro de 2017, porque a tribo nativa americana detém imunidade soberana contra processos de propriedade intelectual.

O acordo foi posteriormente derrotado nos tribunais dos EUA, com a Suprema Corte rejeitando a petição da Allergan para apelar do caso em abril de 2019, mas é um exemplo contundente dos esforços criativos que algumas empresas adotam para estender a proteção de patentes.

Escala da manipulação de patentes farmacêuticas

A pesquisa de Feldman, que analisou todos os medicamentos no mercado entre 2005 e 2015 e todos os casos em que uma empresa adicionou uma nova patente ou exclusividade, concluiu que “a supressão da concorrência não se limita a algumas maçãs podres farmacêuticas. Em vez disso, é um problema comum e generalizado, endêmico na indústria farmacêutica”.

Ela descobriu que 78% dos medicamentos associados a novas patentes não são medicamentos novos, mas já existentes, e quase 40% de todos os medicamentos no mercado tinham barreiras de mercado adicionais por meio de exclusividades adicionais.

Embora essa tendência de manipulação exista em toda a indústria, a pesquisa de Feldman descobriu que as práticas de extensão manipulativas de patentes eram particularmente pronunciadas entre os medicamentos campeões de venda.

Mais de 70% dos 100 medicamentos mais vendidos entre 2005 e 2015 tiveram sua proteção estendida pelo menos uma vez, sendo que quase 50% deles receberam mais de uma extensão de exclusividade.

O relatório de 2018 da I-MAK identificou uma tendência semelhante entre os 12 medicamentos mais vendidos nos EUA em 2017; constatou que os medicamentos têm uma média de 38 anos de exclusividade – quase o dobro dos 20 anos de proteção da patente original – e uma média de 125 pedidos de patente.

AbbVie e Humira: um exemplo de mau comportamento

Um dos casos mais notórios, de acordo com a I-MAK, é o campeão de vendas da AbbVie, o anti-inflamatório Humira. Tanto Feldman quanto Dutfield escolheram Humira como um exemplo particularmente bom de manipulação de patentes

De acordo com o relatório de 2018 da I-MAK, a AbbVie registrou 247 pedidos de patente para o medicamento nos EUA com o objetivo de estender sua exclusividade por 39 anos – 137 patentes foram concedidas até 2019. Isso se soma a 76 pedidos de patente na União Européia e 63 no Japão.

O I-MAK conclui que “as práticas de preços da AbbVie são protegidas por uma estratégia agressiva de patentes perenes para estender o ciclo de vida do Humira, a fim de atrasar deliberadamente a concorrência”.

Esses lucros também estão ligados a outras práticas da AbbVie que levaram o preço do medicamento a aumentar 18% a cada ano entre 2012 e 2016; no entanto, a I-MAK conclui que isso não é consistente com aumentos nos custos de produção ou inflação.

“As patentes, como tudo que é bom, devem tem um fim”

Embora reconheça que o desenvolvimento de medicamentos é dispendioso e as patentes são “importantes para criar a possibilidade de recompensa por esse investimento”, Feldman argumenta que essas manipulações significam que “o ciclo de inovação, recompensa e competição está sendo distorcido em um sistema de inovação, recompensa , e então mais recompensas”.

Ela pede um foco em incentivar as empresas a se concentrarem no desenvolvimento de medicamentos por meio de uma “abordagem única, na qual cada invenção de medicamento recebe um – e apenas um – período de exclusividade”, pois “as patentes, como todas as coisas boas, devem ter um fim”, e não podem ser estendidas aparentemente indefinidamente.

Dutfield sugere uma abordagem alternativa para incentivar a P&D de medicamentos. “Nas Nações Unidas, há propostas de que os custos de pesquisa e desenvolvimento não devem ser recuperados pelos altos preços [dos medicamentos], mas por outros mecanismos de financiamento proporcionais aos custos de P&D ou aos impactos globais positivos dos medicamentos na saúde em questão”, explica.

Embora existam preocupações sobre de onde viriam exatamente esses ‘outros mecanismos de financiamento’, essa abordagem poderia ajudar a resolver um sistema de patentes desequilibrado e garantir recompensas adequadas para inovações genuínas em áreas de doenças ou tipos de medicamentos em que há menos lucros potenciais, como antibióticos e vacinas contra crises de saúde que afetam principalmente os países em desenvolvimento.


Publicado originalmente em Pharmaceutical Technology.

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