Custo-efetividade é ‘o elefante na sala’ da Reforma Sanitária

A Conitec está promovendo a Consulta Pública nº 41/2022 (CP 41) para elaboração do documento intitulado “Uso de Limiares de Custo-Efetividade nas Decisões em Saúde: Recomendações da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS”.  O prazo final para recebimento de contribuições da sociedade foi prorrogado para 31 de julho


“O elefante na sala”

“O elefante na sala” é uma expressão que, traduzida do inglês, pegou na língua portuguesa (ao menos na minha geração ). Como bem define o blog do Mairo Vergara, ela trata-se de “uma metáfora para um problema ou risco que está obviamente presente, mas ninguém deseja discutir, por ser mais confortável agir assim”. 


O blog Academia de Pacientes tem publicado uma série de posts sobre o assunto, visando qualificar o debate nacional sobre o tema, de absoluta relevância para pessoas que vivem com doenças raras, seus familiares, e, de resto, para toda sociedade. 

A CP 41 já está suscitando um movimento bastante salutar (ainda que tímido) de debate com a sociedade sobre tema controverso. Penso que as associações de pacientes e demais partes interessadas podem aproveitar a ocasião para questionar os fundamentos teóricos da Análise de Custo-efetividade/Custo-utilidade. 


O que foi a Reforma Sanitária?

A Reforma Sanitária no Brasil foi um movimento social liderado por profissionais e militantes da saúde que se propunham a pensar o sistema brasileiro com o propósito de democratizar o acesso à saúde no país. Embora tenha se formado a partir da década de 1970, com a criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), foi na 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), após a redemocratização, que alcançou o reconhecimento da “saúde como direito de todos e dever do Estado”, o que abriu o caminho para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), o sistema nacional brasileiro descentralizado e democrático, aprovado na Assembleia Constituinte de 1987.
Fonte: Wikipedia


É sabido que tais análises discriminam pacientes graves e pessoas com deficiências (PCD), comprometendo assim princípio fundamental do SUS (equidade). No entanto, isto não demoveu a Conitec (e nem outras agências internacionais) de empregá-las. A Alemanha não as emprega.

Dito em outras palavras, se você tem uma doença grave ou é uma PCD, as chances de que você não tenha atendido seus pleitos por tais agências é grande (se outros critérios socials não forem considerados), dada a predileção que elas possuem por avaliações econômicas deste tipo. 

Agora, na CP 41, a Conitec , ao que se depreende de sua leitura (mas não explicitamente afirmado), cogita mitigar o problema de eventual discriminação atribuindo limiares de custo-efetividade mais elevados para doenças raras: “Em situações coerentes com a hipótese de limiares alternativos, é aceitável um limiar de até três vezes o valor de referência de 1 PIB per capita”, propõe a entidade na CP 41.

Tais limiares alternativos, até onde podemos entender, estariam relacionados à sua Recomendação 4 na referida consulta: “A critério do julgamento da Conitec, seriam contextos passíveis de limiares alternativos de custoefetividade por promoverem a inovação e equidade em saúde para o SUS: a) Doença acometendo crianças e implicando reduções importantes de sobrevida ajustada pela qualidade; b) Doença grave com reduções importantes de sobrevida ajustada pela qualidade; c) Doença rara com reduções importantes de sobrevida ajustada pela qualidade; d) Doença endêmica em populações de baixa renda com poucas alternativas terapêuticas disponíveis.

Diante do exposto, a pergunta que fica é se o valor de referência de três PIBs per capita atenderia as necessidades de pessoas que vivem com doenças raras.  Este valor hoje se traduz em pouco mais de R$ 120 mil. 

Tal valor é bastante inferior aos praticados em outros países. Senão vejamos: 

  • O Instituto de Revisão Clínica e Econômica dos EUA recomenda o emprego de limiares de custo-efetividade em uma faixa que vai de US$ 50 mil a US$ 200 mil por QALY (algo entre R$ 270 mil e R$ 1 milhão, a depender da gravidade da doença, rara ou prevalente)
  • O National Institute for Health and Care Excellence (NICE) adota para doenças raras limiares de custo-efetividade que vão de 20 a 30 mil libras esterlinas (algo entre R$ 129 mil e R$ 192 mil). Logo, o valor máximo proposto para doenças raras no Brasil é inferior ao piso do NICE para doenças raras (cerca de R$ 120 mil). Cumpre destacar que o NICE muitas vezes abre exceções em relação a estes limites, chegando até valores de 1.9 milhão de reais, a depender da melhora em saúde observada e R$ 320 mil, em cuidados paliativos de fim de vida (!!!!).  Sim, amigos, o NICE recomenda valores que no Brasil seriam astronômicos, para pessoas em fim de vida.

O caráter discriminatório já mencionado das Análises de Custo-efetividade habitualmente empregadas pela Conitec, e por outras agências de ATS ao redor do mundo, fica evidente quando se considera que a Lei de Proteção e Cuidado Acessível ao Paciente (Affordable Care Act) ou Obamacare proibe o uso de análises de custo-efetividade que discriminem PCD, seja através do Patient-Centered Outcomes Research Institute (PCORI), seja pela cobertura e reembolso do Medicare.


O que é iniquidade?

Uma definição amplamente utilizada de iniquidade em saúde foi proposta por Whitehead (1992) e aprimorada pela Comissão de Determinantes Sociais da Saúde (CSDH) da OMS. Ela postula que as iniquidades em saúde não são meramente diferenças no estado de saúde das pessoas (estas chamam-se “desigualdades”), mas diferenças entre grupos sociais que são “desnecessárias, evitáveis e injustas”


Formas ad hoc (caso a caso) de lidar com este sério problema gerador de iniquidades e o emprego da métrica denominada Valor Igual de Anos de Vida, que mencionei neste podcast, apresentado pelo Tiago Farina, têm sido propostas para reparar este problema.

Por tudo isso e muito mais (tema para novos posts nesse blog), a CP 41 exige das pessoas que vivem com doenças raras, seus familiares e outras partes interessadas atenção redobrada. 

Cidadania não vem de mão beijada. Exige esforço e disciplina, especialmente ao se lidar com temas tecnicamente complexos que têm impacto em sua vida cotidiana.

O alto custo dos medicamentos empregados para tratar doenças raras é um fator que vem preocupando autoridade de saúde do mundo inteiro. A sustentabilidade financeira dos sistemas de saúde deveria ser preocupação de todos os brasileiros, entre eles as pessoas que vivem com doenças raras. No entanto, tal sustentabilidade não pode ser buscada à custa das vidas daqueles que dependem de tais medicamentos para sobreviver ou para melhorar sua qualidade de vida.

Afinal, no limite, um sistema de saúde altamente eficiente é aquele em que todos morrem. Mas esta não é uma opção para sociedades supostamente democráticas. Soluções mais inteligentes para este dilema estão sendo buscadas e desenvolvidas em várias partes do mundo. Não faltam soluções.

O que talvez falte seja vontade política para adotá-las.

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