A armadilha das análises de impacto orçamentário para doenças raras

 

[su_dropcap]O[/su_dropcap] Sistema Único de Saúde (SUS) tem, no que se refere a doenças raras, um elemento muitas vezes definidor de destinos: As Avaliações de Tecnologias em Saúde (ATS).

No Brasil, por lei, elas são prerrogativa da Conitec, no que se refere à incorporação de medicamentos e outras tecnologias de saúde ao SUS. Se você ainda não sabe do que se trata, veja o vídeo abaixo.

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Uma ATS convencional possui três componentes:

  1. Uma avaliação de evidências cientificas sobre o desempenho de uma determinada tecnologia de saúde (no nosso caso, um medicamento para doença rara);
  2. Uma avaliação econômica (normalmente uma análise de custoefetividade/custo-utilidade)
  3. e uma análise de impacto orçamentário.

Deste tripé,  suas três pernas são sempre muito complicadas de se empregar (com parâmetros mínimos de justiça e correção) em deliberações sobre terapias para  doenças raras (TDR):

Com as pernas  comprometidas, você já pode concluir que o tripé das Avaliações de Tecnologias em Saúde convencionais, como as aplicadas pela Conitec, por conta de disposição legal, não fica em pé.

As ATS convencionais tendem a lhe desfavorecer, se você é uma pessoa que vive com doença rara. E ao final das contas, não te restará alternativa a não ser judicializar sua demanda, visando reaver um direito seu, constitucional.

Isso mesmo! E basta verificar a baixa taxa média anual de incorporação destes medicamentos ao SUS para compreender o que se passa.

Através de ATS convencionais (como determina nossa lei), a chance de você ver seu medicamento órfão incorporado a qualquer sistema de saúde, público ou privado, é bastante remota.  Eu vejo nessa situação uma ‘pegadinha’, um truque mesmo, para deixar de incorporar a um sistema ou plano de saúde um medicamento de alto custo, ignorando padrões de justiça e equidade que deveriam reger tais situações. Afinal, você também paga impostos e/ou mensalidades.

Ok. Sempre há a chance de uma ou outra TDR ser incorporada a um sistema de saúde. Mas isso, na maioria das vezes, pode se dar por algumas outras razões:

  1. Ser custoefetiva (coisa rara, sem trocadilho);
  2. Forte pressão das associações de pacientes;
  3. Introdução de outras variáveis, que não as convencionais, para a tomada de decisão;
  4. Influência de um secretário do ministério ou coisa parecida (eles adoram dar canetadas generosas ao final de mandatos),
  5. Ou, na pior das hipóteses, corrupção mesmo. Vai saber !

Se aplicadas ao pé da letra, em situações envolvendo doenças raras, a chance de você não ver incorporado seu medicamento ao sistema de saúde é bastante grande. Quer apostar?

Hoje vamos falar de uma dessas pernas quebradas do tripé, quando diante de situações envolvendo TDR: a análise de impacto orçamentário (AIO).

As AIOs são usadas para prever e compreender o impacto financeiro potencial da introdução de um novo produto farmacêutico em um sistema de reembolso de medicamentos (como o SUS), que possui recursos financeiros finitos.

Enquanto as AIOs se concentram no impacto financeiro do novo medicamento, o valor desta medicamento, no caso,  para o sistema de saúde como um todo, é apurado por meio de outras análises econômicas, como as análises de custo-efetividade (ACEs) ou custo-utilidade.

Para você entender melhor, porque informação é poder! Os modelos econômicos empregados em AIOs respondem à pergunta: “Quanto vou pagar por isso?”. Já as análises de custo-efetividade buscam saber: “Pagar por isso representa um bom uso dos meus recursos?” Duas coisas diferentes, certo?

Observe que “o bom uso dos recursos” aqui é definido na perspectiva do pagador. No nosso exemplo fictício, é sempre o SUS. Naturalmente, pela perspectiva da sociedade, do paciente ou do  médico, o que se define por “bom uso” pode variar. Mas, no Brasil, neste tipo de análise, a perspectiva é sempre a do SUS (ou do plano de saúde). It is what it is. 

A AIO considera todos os pacientes que potencialmente seriam escolhidos para receber a nova intervenção coberta com o orçamento que estou empregando em meu modelo econômico. Grosso modo, um modelo econômico é uma representação conceitual/esquemática de uma situação visando facilitar a tomada de decisão.

A precisão de tais estimativas (e o resultado final a seu favor, doente raro) naturalmente depende da disponibilidade e qualidade dos dados, além do desenho da AIO e da adequação das premissas empregadas no tal modelo econômico.

E aí começam os problemas para você, doente raro. Embora existam estimativas de prevalência precisas disponíveis para doenças comuns (por exemplo, hipertensão, diabetes), quantificar a prevalência de uma doença rara num determinado país  apresenta  dificuldades importantes.

Uma potencial solução para estas dificuldades seria consultar grandes conjuntos de dados pertencentes a planos de saúde, o que é uma sensacional maneira de estudar condições raras, do ponto de vista econômico.

Mas você, caro leitor, já percebeu que, no Brasil, apesar de os planos de saúde inscreverem-se no que se convencionou chamar de “saúde suplementar” no âmbito do SUS, a relação entre estes dois é tipo gato-e-rato. E não vou me alongar neste aspecto aqui. Não é o foco do post.

Avaliações econômicas de TDR são repletas de dificuldades e ‘pegadinhas’. Verdadeiras ‘cascas de banana’ que geram injustiça lá na ponta. Por conta disso, há países que simplesmente não as empregam para deliberar sobre doenças raras. Infelizmente, este não é o caso do Brasil.

Vamos enumerar apenas algumas para você (são inúmeras!):

  • É um desafio recrutar participantes de ensaios clínicos em número suficiente para obter “robustez estatística” necessária para se tirar conclusões adequadas. Assim, marotamente, uma agência de ATS sempre poderá alegar que o estudo apresentado pelo laboratório para solicitar a incorporação de um medicamento a um sistema público ou plano de saúde “não possui robustez estatística” ou coisa parecida. Desta forma, pode não recomendar a incorporação, através deste recurso astucioso.
  • Em estudos clínicos, a eficácia de uma TDR é geralmente um desfecho intermediário. Se for marota, a agência de ATS de um país pode sempre alegar em seu relatório de (não)-recomendação que não aceita  (ou não vê com bons olhos) desfechos intermediários. Prefere os primários, para incorporar uma TDR. Danou-se, porque é difícil obter desfechos primários em estudos clínicos relacionados a doenças raras. Outra ‘pegadinha’.
  • Razões de Custo-efetividade Incremental (RCEI) tradicionais para TDR muitas vezes serão problemáticas nestes casos. A RCEI é a principal resultante de uma análise econômica. Ela define um resumo dos resultados de uma avaliação comparativa de diferentes estratégias de cuidados à saúde. Uma agência marota de ATS sempre poderá alegar que a RCEI apresentada/apurada em determinado processo para incorporação de determinada TDR é bastante elevada (não tem muito como ser diferente). Recusará assim a recomendação desta ou daquela terapia a um sistema público ou plano de saúde.

Em suma, se o/a paciente não estuda estes processos com rigor e independência, quase como um autodidata, terá muitas dificuldades em fazer valer seus direitos. Já os conhecendo já seria bem difícil, sem precisar recorrer à tão temida judicialização.  Mas para te dar uma ajudinha na busca pelo conhecimento estamos por aqui.

Em busca de maiores esclarecimentos, ouvimos Wilson Follador, um dos grandes nomes em ATS no país:

Uma análise de impacto orçamentário que se preze deve considerar todos os efeitos financeiros da incorporação de uma tecnologia. Assim, o ideal seria que uma AIO para a atrofia muscular espinhal (AME), por exemplo, considerasse as reduções de consumo de ventiladores mecânicos, medicamentos para todos os tratamentos previsíveis, custos com RH, etc., no prazo de cinco anos.

Wilson Follador

Ele acrescenta que o desconhecimento que possuímos sobre o que se faz para tratar doenças raras no Brasil pode ser um complicador.

Podemos até mesmo estar consumindo mais recursos do que se faz no exterior (hipótese bem improvável). Assim, colocar um medicamento de alto custo para tratar uma doença rara será um custo que poderá ser abatido dos custos que seriam incorridos, caso o medicamento não fosse incorporado.

Wilson Follador

O farmacoeconomista também destaca que, para uma doença rara, uma AIO com projeções para cinco anos pode ser insuficiente para avaliar adequadamente este impacto.

[su_heading size=”18″]Mas e agora? Isso tem solução?[/su_heading]

Sim. Mas para isso as agências de ATS precisariam acabar com sua “mentalidade de silo”, e passar a avaliar o impacto orçamentário de uma TDR no conjunto da linha de cuidado em que ela se inscreve, em toda o programa terapêutico recomendado para sua patologia, e não tomada isoladamente.

O impacto orçamentário tende a diminuir se não focamos somente no medicamento em nossas AIO, mas sim considerando, nos cálculos, todos os cuidados em saúde que sua patologia demanda no seu caso, que não se resumem naturalmente a este ou àquele medicamento.

 

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