Cláudio Cordovil

Transparência: O que é “o justo”, quando se trata de ‘entregar’ saúde?

 

Há algum tempo, conversando com minha prima, nos lembramos de como era a Medicina no tempo em que eu era criança, década de 1970. Hoje, com mais de meio século de vida, eu posso recordar uma época em que nós todos da família íamos juntos ao consultório do Dr. Barata, em Copacabana. Engraçado, né? Parece que foi ontem!

Este post faz parte de uma série sobre Transparência pública e Conitec. No final deste post, você pode ter acesso às outras matérias da série. Leia as matérias já publicadas  aqui.

Ficávamos todos juntos na sala de espera, enquanto o Dr. Barata atendia pacientemente a cada membro da família. A medicina daquela época, até início da década de 1970, era outra, mais artesanal, digamos assim: poucos medicamentos, poucos exames pedidos pelo médico e uma maior autonomia deste profissional de saúde, para ter uma relação mais próxima com o paciente e com sua família.

O dr Barata era um velhinho encantador. Notadamente para crianças como eu. Não bastasse a simpatia com que atendia nossa família, ao final, ganhávamos pastilhas de hortelã.

Mais tarde, em 1996, com algumas adaptações, a prática do Dr. Barata foi recuperada pelo SUS, com a Estratégia Saúde da Família

Do Dr. Barata para cá, muita coisa mudou. A qualidade da medicina praticada avançou, a expectativa de vida aumentou, a incidência de doenças crônicas disparou e os custos na saúde decolaram. Novas tecnologias, novos procedimentos, testes diagnósticos, medicamentos chegaram ao mercado e, em tese, estão à disposição de todos, através de sistemas públicos de saúde, planos de saúde ou visitas a consultórios particulares.

A medicina ficou muito cara. Podemos dizer que se tornou industrial (em contraposição à artesanal antes citada). E o Estado não tem só a saúde de seus cidadãos para cuidar! É preciso ter recursos para a Educação, Defesa, Segurança Pública etc. O avanço das tecnologias de comunicação e a globalização também entram no circuito. Se você vê um novo medicamento ‘revolucionário’, sendo anunciado no telejornal ou na internet, irá querer para você  também, caso ele seja indicado para seu tratamento.

Mas nem sempre foi assim. Na primeira metade do século 19, a saúde era basicamente um assunto privado e os Estados Nacionais não a viam como algo de sua responsabilidade. É só no fim do mesmo século que uma infinidade de movimentos sociais voltados para a situação do pobre e da classe trabalhadora buscará incorporar, com maior ou menor grau de sucesso, a saúde em sua agenda pública.

Assim, começam a surgir programas estatais de saúde pública, na Alemanha (1880), Grã-Bretanha (1911) e em algumas partes do EUA (1916). No Brasil, o acesso universal à saúde pública só foi garantido em 1988, com a criação do SUS. O historiador Eduardo Bueno, vulgo Peninha, tem um video bem espirituoso sobre como surgiu a saúde pública no Brasil.

Esta expansão na oferta de saúde por parte dos Estados terá consequências. Por exemplo, entre 1951 e 1971, os gastos com saúde na Grã-Bretanha aumentaram 71%. Em países da OCDE o gasto médio em saúde em proporção ao Produto Interno Bruto subiu de 4% em 1960 para cerca de 6,9% em 1980.

No início do século passado, a questão da limitação de recursos para os gastos em saúde era inexistente. A necessidade de se definir limites para estes gastos e o problema de como distribui-los só vão se configurar na segunda metade do século 20.

Desde então todos os sistemas públicos de saúde do planeta se defrontam com a necessidade de definir limites aos cuidados de saúde que irão ofertar.

Ou seja, limites terão que existir. O dinheiro não estica.

A única coisa que se pode discutir desde então é se eles estão sendo distribuídos de forma justa ou injusta.

É por isso que o debate sobre a transparência dos processos de tomada de decisão na Conitec é tão importante. Mas antes de discutir transparência precisamos entender como definir o que é justo em termos de distribuição de recursos em saúde.

Que prioridade devo dar aos doentes mais graves?

Com o avanço do conhecimento médico e das tecnologias em saúde, principalmente depois da Segunda Guerra Mundial, e com mais intensidade nos últimos 50 anos ou pouco mais, a provisão de cuidados em saúde envolve um complicado sistema do qual participam cientistas, profissionais de saúde, empresas e outras instituições. Sim, a medicina e os cuidados de saúde melhoraram muito nas últimas décadas, mas ficaram bem mais caros.

Assim, como a dona de casa conscienciosa diante do aumento do custo de vida, os estados precisam saber, quando se trata de saúde, no caso que estamos discutindo, onde ‘gastar’ seu dinheiro com razoabilidade e eficiência. Não são decisões fáceis de tomar, mas existem técnicas sofisticadas para isso, que é o que fazem (ou deveriam fazer) as Conitec’s do mundo inteiro.

Mas existe um problema mais fundamental e, para você ter uma idéia da complexidade do debate, te faço uma pergunta.

Na sua opinião, que prioridade a sociedade deveria dar aos pacientes mais graves?

A resposta pode te surpreender.

Os estudos revelam que a grande maioria das pessoas não sacrificaria tudo em nome dos mais enfermos, e nem os abandonaria. Adotaria um meio-termo, digamos assim.

Mas a verdade cruel que estes estudos apontam é que não há um consenso sobre que princípios adotar para distribuir cuidados de saúde de maneira justa.

Então, se já vimos que os limites aos gastos com saúde (ou qualquer outra coisa que envolva dinheiro) são inevitáveis, como defini-los de forma justa e socialmente aceitável?

Vamos tratar disso com calma nos próximos posts. Mas, vai uma dica. A melhor saída encontrada para isso até o momento é fazer com que as decisões sobre saúde sejam:

Amparadas em boas evidências e possuam justificativas confiáveis.

Repetindo:

Boas evidências + justificativas confiáveis = processos de tomada de decisão justos

Mas como se faz isso? Como se chega a boas evidências e a justificativas confiáveis, de forma a receber o que é justo, da parte dos sistemas públicos de saúde?

 É o que veremos em breve.

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