Cláudio Cordovil

Terapia gênica enfrenta desafios, reais ou fabricados

A era das terapias gênicas multimilionárias chega ao Brasil, trazendo esperança para pessoas que vivem com doenças incuráveis e preocupação para gestores, dados seus preços muito elevados.

Por que isso importa: Dado o preceito constitucional de “saúde como direito de todos e dever do Estado”, a judicialização de terapias gênicas, caracteristicamente de altíssimo custo, ganhará dimensao imprevisível no Brasil, com eventual repercussão da iminente aprovação pela FDA de tratamento do gênero para doença falciforme.

  • A doença falciforme afeta entre 60 mil a 100 mil pessoas no Brasil .
  • Um estudo publicado no ano passado na JAMA Pediatrics verificou que, se uma terapia gênica para doença falciforme de US$ 1,85 milhão fosse administrada a apenas 7% dos pacientes elegíveis anualmente, o impacto orçamentário médio de um ano para os programas estaduais do Medicaid incluídos no estudo seria de cerca de US$ 30 milhões.

O quadro geral: A FDA aprovou recentemente duas terapias genéticas, dobrando o número de tratamentos do gênero no mercado norte-americano para outras doenças, que não o câncer.

  • Em agosto, foi aprovado Zynteglo, da Biobird bio, para o tratamento da talassemia beta, doença hematológica, que, em casos mais graves, exige transfusões de sangue frequentes. Calcula-se que nos EUA algo entre 1300 a 1500 pacientes sejam elegíveis para este tratamento
  • Consiste na injeção de dose única, customizada para as necessidades do paciente, a partir de seus próprios glóbulos vermelhos, a um custo de 2,8 milhão de dólares,
  • Em setembro, a FDA aprovou Skysona para o tratamento de meninos entre 4 e 17 anos com adrenoleucodistrofia cerebral ativa, ao preço de 3 milhões de dólares, desbancando Zolgensma como “remédio mais caro do mundo”. Estima-se que 700 pacientes sejam elegíveis para esta terapia
  • Em geral, o custo médio de cada terapia gênica é estimado em um milhão e meio de dólares.
  • O pipeline de desenvolvimento de medicamentos está repleto de terapias gênicas, e a FDA estima que poderia aprovar entre 10 e 20 anualmente, até 2025.
  • Isso poderá representar aumento de interesse de brasileiros por tais tratamentos e consequente pressão sobre as autoridades competentes para sua aprovação no país.
  • A Agência Européia de Medicamentos (EMA) dá conta de 14 terapias gênicas aprovadas até o momento, incluídas aquelas voltadas para o câncer.

No Brasil, a Anvisa até o momento aprovou o registro de quatro terapias gênicas, sendo que duas delas para doenças raras e duas para cãncer. A Conitec, responsável pelas decisões de incorporação de tecnologias ao SUS, adiou a discussão sobre o tema, sem previsão de data.

O x da questão: Muitas incertezas rondam a duração dos efeitos das terapias gênicas no longo prazo, o que tem implicações diretas sobre a plausibilidade e justificação de seus preços muito elevados.

  • Modelos de precificação e aquisição inovadores precisam ser desenvolvidos em solo brasileiro para terapias gênicas e já vem sendo experimentados no exterior.
  • Os pagadores (no exterior) e as empresas farmacêuticas estão abertos a modelos de pagamento não-tradicionais para cobrir o risco, se os tratamentos não funcionarem.
  • No entanto, no Brasil, um projeto-piloto para desenvolvimento de acordos de compartilhamento de risco, modalidade de contrato potencialmente interessante para a eventual operacionalização de incorporação de terapias gênicas ao SUS, morreu em seu nascedouro.
  • Tentativas de recuperar os acordos de compartilhamento de risco verificam-se no Legislativo, com o PL 667/2021 , de autoria do deputado Eduardo da Fonte (PP/PE).

Nas entrelinhas: No campo dos estudos em Saúde Coletiva, de autoria dos pesquisadores mais vocais junto ao governo, percebe-se certa demonização das terapias gênicas. Ao omitirem sistematicamente esforços mundiais para redução de preços ou condições mais favoráveis de negociação, fartamente documentados na literatura especializada, visam criar um clima de opinião desfavorável a novas tecnologias, ansiadas por décadas pela sociedade, a nível mundial. Característico destes artigos é a menção à falta de evidências científicas suficientes para justificar os preços elevados. Ora, no mundo inteiro, as evidências científicas robustas sobre a efetividade destas terapias também não estão disponíveis e, ainda assim, tais tratamentos são autorizados, tanto nos EUA como na União Européia, através de metodologias especificamente desenhadas para estas circunstâncias.

O mesmo acontece com certa franja minoritária do pensamento jurídico, ainda que muito barulhenta. Tem trânsito livre junto ao governo, pela condenação sistemática e tendenciosa que faz da terapia gênica e dos medicamentos órfãos, sem mencionar soluções em desenvolvimento para o problema de seu custo, facilmente encontradas na literatura especializada. Entre seus porta-vozes encontram-se alguns muito vocais junto ao Conass, Conasems e Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde.

Outros operadores do direito vão por caminho distinto, mas com o mesmo intuito: enaltecem incondicionalmente a Medicina Baseada em Evidências, como panacéia e padrão-ouro para decisões judiciais sobre medicamentos. Omitem sistematicamente, por ignorância ou má fé, fato sobejamente confirmado na literatura especializada : a inadequação da adoção de Avaliações de Tecnologia em Saúde convencionais para tomada de decisão sobre medicamentos para doenças rara (medicamentos órfãos).

Neste sentido, vale destacar a iniciativa européia transnacional Access to Gene Therapies for Rare Disease (AGORA) que visa garantir a disponibilidade de tratamentos para doenças genéticas raras a preços acessíveis. O grupo reúne os principais hospitais universitários, instituições acadêmicas e entidades beneficentes de seis países europeus.

Trata-se de iniciativa de inovação social farmacêutica, um conceito que vem sendo desenvolvido e pesquisado por mim em um grupo de pesquisadores internacionais.

Concluindo: Como toda e qualquer tecnologia emergente, a terapia gênica experimenta desafios que dizem respeito, principalmente, a incertezas, que incluem a duração de seus efeitos a longo prazo, comprometendo assim uma análise precisa de sua relação custo-efetividade e conveniência de seu preço.

No entanto, soluções como aprovação condicionada de terapias gênicas, mediante apresentação futura de evidências de sua efetividade, e acordos de compartilhamento de risco são amplamente empregados internacionalmente.

Somente por falta de vontade política e de infraestrutura para este fim, o Brasil não as desenvolve e implementa. É necessário que todos os stakeholders interessados neste debate se unam na reivindicação e busca de soluções. A questão de acesso a medicamentos e terapias de alto custo para necessidades médicas não atendidas é assunto sério demais para ser deixado na mão dos burocratas. Ainda que o Brasil possua dimensões continentais e população gigantesca, não pode furtar-se a este debate urgente. É necessário sair da caricaturização do problema para sua amadurecida caracterização.

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