É sempre assim. Toda vez que a CONITEC publica um relatório onde recomenda a não-incorporação de um medicamento órfão ao SUS, pacientes e seus familiares, bem como representantes da indústria farmacêutica, alegam suposta falta de transparência na forma como suas decisões foram tomadas e divulgadas.
Agora, a bola da vez é o riociguate, comercializado pela Bayer S.A sob a marca AdempasⓇ, único tratamento medicamentoso disponível para a hipertensão pulmonar tromboembólica crônica (HPTEC) inoperável ou recorrente persistente.
A grita entre os pacientes é geral. Com Consulta Pública (nº 73), lançada em 16 de dezembro de 2019 e cujo prazo finda em 6 de janeiro de 2020 (Dia de Reis), o relatório desfavorável da CONITEC sobre o riociguate é alvo de críticas importantes. Tanto por apresentar inconsistências como pelo momento impróprio de abertura da Consulta Pública, nas proximidades das festas de fim-de-ano.
Os pacientes desejam que o prazo da Consulta Pública seja prorrogado. Ninguém duvida da inconveniência de se lançar uma iniciativa dessa natureza bem na época das festas de fim de ano, quando a sociedade civil está de algum modo desmobilizada. E as famílias mais preocupadas com o preparo da ceia, férias e início de um novo ano do que com medicamentos de alto custo.
O problema da falta de transparência não é novo, nem se limita ao cenário nacional. Mas no Brasil ele ganha feições particulares. Inúmeras decisões têm sido questionadas por associações de pacientes no National Institute of Clinical Excellence (NICE), por exemplo. E isso faz bem à democracia. Para quem não sabe, o NICE é considerado o instituto que teria inspirado a CONITEC.
A polêmica sobre a consulta pública do riociguate coincide com a notícia da aprovação do Projeto de Lei 2035/19 (PL) pela Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados. Entre outras coisas, o PL dispõe sobre a obrigatoriedade de as reuniões da Plenária da CONITEC serem transmitidas ao vivo pela internet. O projeto tramita em caráter conclusivo e ainda será analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara.
Mas será que a transmissão ao vivo destas reuniões resolverá o problema da transparência destes processos de tomada de decisão? Não! Este é um tema bastante complexo, em se tratando de processos de avaliação de tecnologias em saúde (ATS). Não esgotaremos o assunto aqui e já abordamos o tema em outro post neste blog. Mas ele ainda será objeto de um artigo futuro para breve.
Transparência é quesito fundamental em qualquer empreitada científica digna deste nome. Sem ela, por exemplo, a integridade e validade dos cálculos dos modelos econômicos em saúde, apresentados pelas Agência de ATS (como a CONITEC), para refutar os modelos econômicos empregados pela indústria, não podem ser verificadas e testadas.
E esta verificação é absolutamente crucial para assegurar o uso confiável de evidências na tomada de decisão. Resumindo: da lisura, transparência e correção destes cálculos depende o fato de este ou aquele medicamento estar disponível no SUS para você. Percebeu a importância do problema?
Por conta disso, resolvemos nos debruçar sobre o caso do medicamento Riociguate. Não iremos discutir o mérito técnico da recomendação inicial de não-incorporação pela CONITEC. Este é um campo minado. Seria leviano de nossa parte, pois alguns elementos cruciais desta decisão não são acessíveis ao público.
Mas iremos, sim, problematizar a governança dos processos dessa natureza conduzidos por aquela Comissão e suas congêneres espalhadas pelo mundo. No Brasil, basicamente, no que se refere a esta etapa do processo, normalmente o laboratório interessado em ter seu medicamento incorporado ao SUS entrega à CONITEC um pendrive com todas as planilhas de cálculo que foram empregadas na construção do seu modelo econômico acerca da droga candidata.
Por outro lado, não há obrigação alguma de a CONITEC entregar um pendrive semelhante ao fabricante, com um modelo plenamente executável onde os cálculos feitos para recomendar a não-incorporação do medicamento estejam armazenados. Não é obrigada e não o faz! Assim, neste diálogo de surdos, a indústria tem dificuldade de saber como questionar as decisões da CONITEC, visto desconhecer como ela chegou aos cálculos que levaram à recusa. Com isso, fica mais difícil a possibilidade de reverter decisão sobre intervenção em saúde já não recomendada no relatório inicial.
O riociguate e a CP nº 73
Como já foi dito anteriormente, a consulta pública (CP) da CONITEC sobre o riociguate está aberta até o dia 6 de janeiro de 2020 (Dia de Reis), e foi colocada no ar pouco antes do Natal, momento em que a participação pública no processo fica bastante prejudicada. Este problema seria minimizado se a consulta fosse prorrogada, medida desejada pelos pacientes.
O medicamento é indicado para o tratamento de HPTEC inoperável ou recorrente persistente. Foi aprovado pelas seguintes agências de ATS, segundo o mesmo relatório da CONITEC:
- Canadian Agency for Drugs and Technologies in Health – Canadá;
- Scottish Medicines Consortium – Escócia;
- The Pharmaceutical Benefits Advisory Committee – Austrália;
- Agence Nationale d’Acréditation et dÈvaluation em Santé – França;
- Comisíon Interinstitucional del Cuadro Básico de Insumos del Sector Salud – México;
- NICE, National Institute for Health and Care Excellence – Reino Unido.
E prossegue a CONITEC em seu relatório preliminar:
A HPTEC é uma doença rara, até o momento sem um tratamento medicamentoso eficaz. A HPTEC não possui indicação de tratamento específico no atual Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêutica para Hipertensão Arterial Pulmonar [do SUS]. O tratamento primário é a cirurgia para retirada mecânica do trombo localizado na artéria pulmonar e seus ramos (endarterectomia pulmonar). O tratamento com Riociguate é indicado em bula para um grupo restrito de pacientes com HPTEC, aqueles considerados inoperáveis ou que desenvolvam hipertensão pulmonar residual ou recidivas após a endarterectomia pulmonar”.
Aqui, como já afirmamos, não discutiremos o mérito técnico da decisão da CONITEC sobre o riociguate em seu relatório de recomendação inicial. Isto porque não temos acesso a dados cruciais apresentados tanto pelo laboratório e nem pela CONITEC para sustentar suas argumentações. No entanto, apontaremos algumas inconsistências irrefutáveis e presentes no relatório ao seu simples exame “a olho nu”. Coisas que qualquer leigo informado poderia apontar. Esta é a nossa contribuição oficial ao democrático processo da consulta pública ! Estamos tornando pública aqui nesse blog nossa contribuição ao processo de consulta! Capisce?
Problemas observados no relatório preliminar
HPTEC não está classificada no Quadro I (OMS)
- O primeiro problema (Figura 1) que salta aos olhos de quem lê o relatório com atenção pode ser encontrado no final do primeiro parágrafo do item 4.3, na página 12. Ali o parecerista designado pela Conitec informa que “o Riociguate não está citado como possível opção terapêutica” no PCDT referente ao tratamento de Hipertensão Arterial Pulmonar do Grupo 1. E nem poderia! Afinal, o PCDT é de 2014 e o riociguate não estava aprovado no Brasil naquele ano.
Além disso, como você pode ver na Figura 2, a HPTEC, objeto do referido relatório está no Grupo 4, e não no Grupo 1.
Lembre-se que a demanda do fabricante foi para a incorporação para indicação “Hipertensão Pulmonar Tromboembólica Crônica (HPTEC) inoperável ou persistente/recorrente; Grupo 4, portanto, segundo os critérios definidos pela Organização Mundial de Saúde.
Afirmação favorece indicação para necessidade clínica não-contemplada
No item 4.3.2 (Figura 3), o parecerista faz uma afirmação que poderia ser entendida como favorável à incorporação do medicamento ao SUS, e não o seu oposto, como ele parece sugerir. Ali ele afirma: “Para o uso adequado dos medicamentos é necessário investimento em um sistema de referência, uma vez que a cirurgia é complexa e de alto custo. Não há outra opção de tratamento específico para HPTEC”.
Ora, se a cirurgia é apontada pelo parecerista como complexa e de alto custo, exigindo um centro de referência para que o tratamento seja ministrado (seja medicamentoso ou cirúrgico), o riociguate, única opção de tratamento existente no momento para HPTEC inoperável ou resistente/recorrente, representa a única alternativa disponível no momento para os que se enquadram neste último caso.
EQ-5D-3L e LPH são desfechos centrados no paciente!
No item 6.2 (Figura 4), o parecerista afirma : “O PICO sugerido pelo demandante foi considerado inadequado, uma vez que incluiu resultados de exames laboratoriais como desfecho, ao invés de privilegiar desfechos centrados no paciente, ou seja, de maior relevância”.
Não da para entender bem o que o parecerista da CONITEC quis dizer com esta frase, na medida em que os escores EQ-5D-3L e o LPH apresentados pela demandante são desfechos centrados no paciente.
Esclarecendo: PICO é uma estratégia para elaboração de pergunta de pesquisa no campo da Saúde Baseada em Evidências onde:
P = Paciente ou problema (Pode ser um único paciente, um grupo de pacientes com uma condição particular, ou problema de saúde.
I = Intervenção (representa a intervenção em análise). Em nosso exemplo, o riociguate.
C = Controle ou comparador (definido como uma intervenção-padrão, uma intervenção mais utilizada ou nenhuma intervenção) . A intervenção em saúde em análise será comparada a uma outra já recomendada ou em uso para a mesma indicação.
O = Desfecho (ou resultado esperado da intervenção em análise)
No caso que estamos analisando, a pergunta PICO foi assim formulada pelo demandante da incorporação do riociguate no SUS (Figura 5)
Argumento favorece incorporação do medicamento
No item 6.8 (Figura 6), o parecerista da CONITEC afirma:
A correta utilização deste medicamento exige adequada capacidade diagnóstica, a qual demanda centros de hemodinâmica cardíaca além de equipe médica especializada para definição dos pacientes portadores de HPTEC que seriam inoperáveis. Por fim, há potencial risco da utilização off label desta tecnologia, devido à limitada capacidade cirúrgica no país para atender aos casos de tromboembolismo pulmonar.
Em tempo, off label é a utilização do medicamento diferente daquela recomendada em sua bula.
O fato de, como afirma o parecerista, o país não ter capacidade instalada para fazer tromboendarterectomias, que poderiam salvar vidas, e não possuir capacidade diagnóstica para HPTEC, segundo sua mesma alegação, não seria justificativa para a não-incorporação do riociguate. Afinal, médicos particulares poderiam diagnosticar HPTEC, submetendo sua decisão ao crivo de médicos especializados vinculados ao SUS. A alegação do parecerista poderia soar quase imoral para os portadores de HPTEC, quando se pensa um SUS que se pretende universal, integral e equitativo. Negar um tratamento porque não há capacidade para fazer diagnóstico é, no mínimo, paradoxal, e , porque não dizer, desumano, de um ponto de vista ético.
Sem comentários sobre a caixa-preta e discrepância de achados
Aspectos que não estão ao alcance de nossa avaliação, no referido relatório de recomendação, e, que, portanto, não podemos comentar, sem o risco de cometer erros graves, dizem respeito a informações que poderiam ser confirmadas ao exame detalhado dos cálculos e pressupostos adotados nos modelos econômicos apresentados pela fabricante (no pendrive entregue normalmente pelos demandantes da intervenção em saúde em análise) e pelo parecerista contratado pela Conitec. A descrição apontada pelo parecerista da referida Comissão no relatório para refutar a recomendação da fabricante não permite refazer os passos e cálculos que levaram este às suas conclusões pela negativa da recomendação.
No entanto, precisamos reconhecer, a bem da verdade, que as duas contestações (Figura 7) apresentadas pelo parecerista designado pela Conitec (Quadro 4, item 13, p. 22), em relação aos pressupostos do modelo apresentado pela fabricante são muito importantes.
Se o parecerista da Conitec estiver certo, os pressupostos apresentados a ele pela Bayer S.A. em seu modelo econômico estão totalmente errados! Mas este é o tipo de informação que só pode ser esclarecida ao exame dos cálculos feitos pela CONITEC para refutá-los. E a esta informação não temos acesso, como aqui já informamos exaustivamente. Observe que a coluna do meio na Figura 7 corresponde à alegação da demandante da nova tecnologia (Bayer), segundo relata a Conitec. E a coluna do canto direito mostra os comentários do parecerista externo contratado pela Conitec para a elaboração da análise.
Da mesma forma, quanto à análise econômica, as diferenças entre os resultados oferecidos pela Bayer e aqueles obtidos pelo parecerista da CONITEC são bastante aberrantes.
A Bayer diz, segundo a CONITEC (Figura 8), que a diferença em anos de vida ajustados pela qualidade (QALY) é de 7,32 QALYs para riociguate e 4,59 QALYs para cuidados de suporte (página 23), o que significa 2,73 QALYs ganhos pelos pacientes que usam riociguate, segundo a demandante.
Já o cálculo feito pelo parecerista da CONITEC, com um modelo matemático diferente, apresenta o resultado de 0,23 QALY (menos de 10% do valor obtido pela Bayer!).
Na avaliação de especialistas independentes consultados, aqui residiria o ponto mais polêmico do parecer e que poderia ter contribuido fortemente para a recomendação inicial de não-incorporação do riociguate ao SUS.
No entanto, tal dado, pelas razões já apresentadas anteriormente, não é passível de contestação por qualquer pessoa de fora do processo. Somente as partes nele envolvidas mediante um diálogo franco, ‘sem cartas na manga’, poderão saber a razão de diferença tão expressiva entre os cálculos apresentados pelo demandante e pela CONITEC, abrindo as respectivas planilhas de seus cálculos ao exame de cada uma das partes envolvidas no processo.
Discrepância tão acentuada entre as avaliações econômicas apresentadas pelo laboratório e a análise feita pelo parecerista da CONITEC recomendaria uma reunião entre as partes, para revalidação dos dados apresentados, e a explicação do rationale empregado por ambos. Seria uma forma ética de mostrar à sociedade que o que está em jogo, no final, é a saúde e bem-estar dos pacientes, ainda mais com uma doença tão incapacitante e mortal como a HPTEC.
ABRAF critica relatório
Paula Fajardo Menezes, presidente da Associação Brasileira de Apoio a Família com Hipertensão Pulmonar e Doenças Correlatas (ABRAF), não poupa críticas ao relatório da CONITEC, em alguns pontos, além daqueles já aqui apontados.
Um é a alegação de possivel uso off-label do riociguate pelos pacientes. “Isso já foi exaustivamente conversado com as autoridades e os médicos especialistas em HP no Brasil se dispuseram a analisar todos os casos antes do fornecimento da medicação”, explica ela.
Outro diz respeito a uma percepção com relação ao tempo perdido até o lançamento de novos medicamentos indicados para HPTEC. Segundo o relatório da CONITEC, o monitoramento do horizonte tecnológico realizado revelou que dois medicamentos potenciais para tratamento da HPTEC estariam recrutando voluntários para testes clínicos Fase 3:
- macitentana;
- selexipague.
Paula Menezes argumenta que o lançamento de tais produtos no mercado pode demorar e os pacientes não têm como esperar.
Segundo ela, a persistir a decisão da CONITEC em não incorporar o riociguate após a consulta pública haverá pacientes debilitados, aumento da necessidade de cuidadores, afastamento das atividades laborais, depressão e morte, sem contar com o aumento da judicialização.
As inconsistências aqui apontadas falam a favor da necessidade de mais diálogo e transparência entre as partes após a publicação dos relatórios de recomendação da CONITEC. Tal medida criaria um círculo virtuoso onde ganham a sociedade, os pacientes, o governo e a indústria.
Um experiente profissional da farmacoeconomia por nós consultado diz que verdadeira transparência nestes processos se daria quando acontecesse algo como teve a oportunidade de conhecer e que ocorreu no Food and Drug Administration (agência que controla drogas e alimentos nos EUA). As duas partes envolvidas discutiram seus modelos na presença de um painel de 14 especialistas independentes que, ao final das argumentações de ambos os lados, deram seu veredito sobre os modelos em disputa.
Até que esta experiência da FDA seja mais extensivamente reproduzida, suspeitas de lado a lado continuarão a ocorrer, com nítido prejuízo para a ponta mais fraca nestas relações: os pacientes.
Como você já sabe, todo cidadão pode participar das Consultas Públicas, dando sua opinião sobre as decisões da CONITEC. Para participar desta consulta pública nº 73, sobre a recomendação preliminar de não-incorporação de Riociguate, acesse:
Link para o relatório:
Link para a página da Consulta Pública:
http://conitec.gov.br/consultas-publicas
Link para a sua contribuição à Consulta Pública:
http://formsus.datasus.gov.br/site/formulario.php?id_aplicacao=52814