Cláudio Cordovil

Limiares de custo-efetividade: tecnocracia ou democracia?

A Conitec está promovendo a Consulta Pública Conitec/SCTIE nº 41/2022 para elaboração do documento intitulado “Uso de Limiares de Custo-Efetividade nas Decisões em Saúde: Recomendações da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUSO prazo final para recebimento de contribuições da sociedade é de 11 de julho. 31 de julho!

Não devemos ter muitas ilusões. O tema é altamente complexo, envolve discussões bastante técnicas, que muitas vezes escapam aos maiores interessados (os pacientes) e podem dificultar ainda mais o acesso a medicamentos por pessoas que vivem com doenças raras e graves. Tais medicamentos muitas vezes são os únicos no gênero para suas necessidades médicas não atendidas. 

Basicamente, na consulta pública, os interessados devem manifestar sua opinião sobre recomendações propostas (ver abaixo) pela Conitec e, naturalmente, a respeito do “uso de limiares de custo-efetividade” nas decisões que dizem respeito ao SUS.

Advertência

O que você lerá aqui refere-se à conveniência e adequação das recomendações para o público de pessoas que vivem com doenças raras. Não é nossa intenção avaliar a propriedade de tais recomendações para pessoas com doenças prevalentes.

Índice do post

Mais abaixo, nossas opiniões sobre as recomendações.

O que é limiar de custo-efetividade?

Antes de saber do que se trata, convém recordar o que é análise de custo-efetividade, um assunto muito abordado neste blog. 

A análise de custo-efetividade/custo-utilidade está relacionada ao campo da Farmacoeconomia e é usada por entes públicos (no Brasil, o SUS) e privados (planos de saúde) para comparar os custos e os resultados de opções alternativas (em nosso caso, relacionadas a medicamentos). O produto de tal análise é uma razão de custo-efetividade incremental que basicamente representa a magnitude de saúde adicional obtida por unidade adicional de recursos gastos.  Tal unidade pode ser expressa em reais (R$), por exemplo.

Já os limiares de custo-efetividade supostamente permitem identificar razões de custo-efetividade incremental que representem uma boa ou muito boa relação qualidade/preço. Ou, como descrito na página oficial da Conitec:

“O limiar de custo-efetividade é um parâmetro para melhor compreender a relação entre o valor de custo e o ganho de saúde gerado por uma tecnologia no sistema de saúde”.

“Tecnologias de saúde” podem ser definidas como:

Medicamentos, materiais, equipamentos e procedimentos, sistemas organizacionais, educacionais, de informação e de suporte, bem como programas e protocolos assistenciais, por meio dos quais a atenção e os cuidados com a saúde são prestados à população.

(POLANCZYK; VANNI; KUCHENBECKER, 2010)

O contexto da consulta pública

A discussão a que a consulta pública se refere assume dimensão pública no país com a proposição de Projeto de Lei do Senado (PLS) de autoria do então senador Cássio Cunha Lima (PSDB-PB) (PLS 415, de 2015) que mais tarde viria a dar origem à Lei 14.313 de 21/03/2022

Este dispositivo legal altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990 (também conhecida como Lei Orgânica da Saúde), para dispor, segundo seu caput, sobre os processos de incorporação de tecnologias ao Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre a utilização, pelo SUS, de medicamentos cuja indicação de uso seja distinta daquela aprovada no registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

No projeto de lei, a preocupação do legislador com relação à possibilidade de eventual exercício de “discricionariedade técnica de baixa qualidade” da Conitec já se fazia notar:

“Também não está claro o fundamento legal segundo o qual a Conitec analisa custo-efetividade de um procedimento médico, nem qual é o limiar adotado para considerar que um procedimento é custo-efetivo, lacuna que propicia, por vezes, a adoção, pela administração pública, de discricionariedade técnica de baixa qualidade”. 

Outro foco de preocupação do legislador em relação à matéria e constante na justificativa no PLS seria o risco de que os relatórios de recomendação da Conitec fossem um ‘jogo de cartas marcadas’.

“A esse respeito, assinalamos que (…) também carecem de definição legal os critérios balizadores da distribuição dos processos para análise especializada. Tal omissão pode introduzir problemas intransponíveis na avaliação de uma determinada tecnologia. É necessário conferir maior transparência nesse procedimento administrativo para minimizar possíveis vieses de seleção de avaliadores com conflito de interesses.”

Um dado curioso:

Em agosto de 2017, o atual Ministro da Saúde Marcelo Queiroga, conterrâneo do senador paraibano Cássio Cunha Lima, participara de audiência pública requerida pela senadora Ana Amélia (PP-RS) na condição de diretor de ATS da Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista manifestando seu apoio ao PLS 415. Ao que pude saber na ocasião, Queiroga teria tido grande participação na elaboração do referido projeto de lei.

Audiência pública sobre o PLS 415/2015, realizada em 24/08/2017.

No caso de o vídeo acima ser retirado do ar, você ainda pode vê-lo aqui.

Curiosamente, na ocasião, o representante da Conitec na referida audiência pública, o tecnologista Gustavo Laine de Araújo Oliveira (DGITS), manifestara sua posição contrária ao PLS 415/2015.

É o que podemos depreender de notícia publicada no site oficial da Conitec , no dia 25 de agosto de 2017.

Ao propor a consulta pública ora em vigor, a Conitec parece ter mudado de opinião em relação ao tema, fato naturalmente motivado pela publicação da Lei 14.313 de 21/03/2022, já mencionada.

Entre as maiores entusiastas da nova proposta, encontra-se a Dra. Marisa Santos, infectologista e coordenadora do Núcleo de Avaliação de Tecnologias em Saúde (NATS) do Instituto Nacional de Cardiologia (INC) e do Grupo de Discussão em Avaliação de Tecnologias em Saúde (GRUDA).

Desde março de 2014, os NATS são parceiros da Conitec e têm por função “aprimorar os processos decisórios que envolvem a incorporação de novas tecnologias” ao SUS.

Dra. Marisa Santos, entusiasta dos limiares de custo-efetividade, explica do que se trata.

O que está em jogo na Consulta Pública Conitec/SCTIE nº 41/2022?

Esta consulta mais uma vez encena a disputa entre concepções opostas de saúde pública, a princípio inconciliáveis, em conflito sem solução aparente.

Ao dar centralidade ao conceito de custo-efetividade e a busca de limiares explícitos para tal, ela coloca em lados opostos os interesses das pessoas que vivem com doenças raras e a eficiência econômica de sistemas de saúde (no caso, o SUS).

A grande ausente destes debates, como de resto da cena nacional, é a ética. A questão do valor a ser atribuído aos medicamentos órfãos não é apenas técnica, mas também moral.

Pela simples razão de que a efetivação do direito à saúde não pode prescindir da consideração das necessidades de toda a sociedade. E estas não serão totalmente atendidas se não abordarmos o sofrimento dos mais desfavorecidos. No caso, as pessoas que vivem com doenças raras e graves.

Conciliar a dimensão moral da existência humana com as pragmáticas Análises de Custo-Efetividade convencionais, que são o pano de fundo para a definição dos tais limiares de custo-efetividade, é tarefa difícil, senão impossível.

Se análises de custo-benefício e assemelhadas são imprescindíveis para a sustentabilidade de sistemas de saúde públicos ou privados (algo com que podemos concordar), que se pensem em alternativas flexíveis, de abrangência suficiente para abarcar os direitos destas minorias representadas pelas pessoas que vivem com doenças raras e que sejam objetivas e reprodutíveis.

E elas existem!

As pessoas que vivem com doenças raras e seus simpatizantes precisam colocar uma coisa em sua cabeça. O QALY é o exterminador de seu futuro. E o QALY está no centro das recomendações da Conitec, ora em consulta pública.

Duas concepções de equidade e princípios éticos em disputa

A análise de custo-efetividade/custo-utilidade convencional que está por trás das recomendações da Conitec, ora em discussão, complica a avaliação de medicamentos órfãos de inúmeras maneiras.

Uma das questões fartamente exploradas sobre o tema na literatura internacional situa-se na interface entre ética e economia e no conflito entre ideais de saúde pública distintos.

Central aqui é o conflito entre equidade horizontal e vertical.

A equidade horizontal diz respeito a tratar de forma igual os iguais. Em uma perspectiva ética, trata-se de uma abordagem utilitarista, já bem detalhada em post de nosso outro blog. No caso que ora discutimos isto poderia se dar aplicando-se o mesmo limiar de custo-efetividade para todas as doenças, raras ou não.

A equidade vertical refere-se ao tratamento desigual de desiguais e, em nosso, caso diria respeito, por exemplo, a levar-se em conta, nas avaliações econômicas e na definição de limiares de custo-efetividade, a raridade de uma doença.

As recomendações propostas pela Conitec na consulta pública parecem considerar a especificidade das doenças raras, ao propor limiares alternativos de 3 vezes o PIB per capita para tais enfermidades. Em valores atuais algo em torno de R$ 120 mil. No entanto, trata-se de valor arbitrário, já desautorizado pela Organização Mundial de Saúde desde 2016, e objeto de duras críticas das entidades representativas de pessoas que vivem com doenças raras.

A este propósito, Antoine Daher, presidente da Febrararas e da Casa Hunter, assim se pronunciou.

“Se uma proposta como essa é aprovada, criaremos barreiras à vinda de novas tecnologias para os pacientes brasileiros. Triplicar o valor para adultos ou crianças não vai permitir que a Conitec incorpore mais produtos destinados ao tratamento das doenças raras no Brasil. É um grande limitador, na verdade”

Antoine Daher

Sim. O limiar de custo-efetividade ora proposto pela Conitec é uma estratégia de racionamento explícito de recursos em saúde, assim como o são as Avaliações de Tecnologia de Saúde realizadas pela Conitec desde sempre. Pretende colocar um limite aos gastos com medicamentos órfãos, que pode inviabilizar a assistência farmacêutica em doenças raras e ultrarraras.

Não se discute a necessidade de se criar um parâmetro para disciplinar a administração de recursos escassos como aqueles destinados à saúde. É impossível prover todos de tudo que necessitam em termos de saúde. Mas estes parâmetros precisam ser justos.

O que se discute é o emprego sistemático de padrões que discriminam pessoas com deficiência (que cursam muitas vezes com doenças raras), idosos e portadores de doenças crônicas graves (como são as raras). Este é o caso do QALY e das análises convencionais de custo-efetividade/custo-utilidade tão incensadas pela Conitec.

O espaço não permite nos alongarmos mais sobre o tema neste post, mas deixo aos curiosos alternativas à análise de custo-efetividade convencional e seus limiares que não discriminam aqueles em pior estado de saúde (worst off).

Consagrado entre gestores e economistas da saúde, o QALY, derivado das Análises de Custo-Efetividade/Custo-Utilidade convencionais, tende a desfavorecer grupos minoritários e em desvantagem.

Não basta dar “uma no cravo e outra na ferradura”, como faz a Conitec, ao propor a criação de limiares alternativos e arbitrários, já desautorizados pela OMS, para pessoas que vivem com doenças raras, dentre outras. Necessário é abolir a adoção do QALY como principal desfecho”, tal como expresso nas recomendações.

Dá trabalho estudar métodos mais justos de avaliação econômica. E todos têm sua complexidade inerente. Há uma curva de aprendizado aí que não sei se o governo está disposto a assumir. Mas a sociedade brasileira tem diante de si a tarefa de decidir se vai continuar a adotar análises convencionais de custo-efetividade, que primam pela desconsideração da justiça distributiva que plasmou a Reforma Sanitária, ou reivindicar outros modelos que contemplem as necessidades das pessoas que vivem com doenças raras e graves.

Os grandes defensores da proposta ora em consulta parecem ter como alvo adicional a judicialização da saúde. Já chegaram a afirmar que Limiares de Custo-Efetividade em contexto de judicialização galopante de nada adiantarão. A idéia talvez seja suprimir das pessoas com doenças raras a possibilidade de recorrer à Justiça quando sentirem-se lesadas em seu direito de existir.

Voltaremos ao tema em breve, porque o assunto merece mais dois dedos de prosa.

Nossa posição sobre algumas recomendações em consulta pública

Recomendação 1: Este posicionamento apresenta sérios problemas no que se refere a pessoas que vivem com doenças raras. Isto porque é fartamente conhecida na literatura especializada a afirmação de Michael Drummond (2007) de que: “Se procedimentos-padrão em ATS forem aplicados a medicamentos órfãos, praticamente nenhum deles será custoefetivo”. Em tempo, Drummond é um dos pais da Economia da Saúde.

E sim, a Conitec não adota procedimentos distintos dos padronizados, para deliberar sobre medicamentos para doenças raras. Não há registro de protocolos específicos para lidar-se com tais medicamentos na referida Comissão. Logo, na prática, a recomendação 1 em nada altera o modo de atuação da Conitec, que tem se caracterizado por negativas de recomendação de medicamentos órfãos muitas vezes calcadas na absurda noção de que não são custo-efetivos (muito poucos o serão, lembra do Drummond?). Quanto a não dever ser um parâmetro isolado na tomada de decisão, já não costuma ser faz tempo, o que não impede que a custo-efetividade (custo-utilidade) seja elemento preponderante na tomada de decisão da Conitec.

Recomendação 2: o custo por QALY (anos de vida ajustados pela qualidade) é unidade de medida de custo-efetividade. Na prática, esta recomendação, para pessoas que vivem com doenças raras, apresenta o mesmo problema do Recomendação 1. Se o QALY for considerado como principal desfecho, poucos medicamentos órfãos serão incorporados ao SUS. A ressalva de que a decisão não deve ser limitada ao QALY não altera em nada o prognóstico de tais decisões. Nas plenárias, de acesso público, da Conitec se fala sobre tudo, mas o QALY tende a ser critério determinante para tomada de decisão. Estudos internacionais revelam que o QALY discrimina pessoas com deficiência e doenças graves. Como muitas das doenças raras cursam com deficiência, não lhe deve ser espantoso que medicamentos com custo por QALY desfavorável não sejam incorporados ao SUS. O problema é que eles dificilmente serão custo-efetivos. E como se faz? Não se incorpora?

Recomendação 3: O “custo de oportunidade” é um argumento frequentemente esgrimido contra pessoas que vivem com doenças raras em processos de Avaliação de Tecnologias de Saúde. Trata-se de um dos mais importantes conceitos da Economia da Saúde e, não por outra razão, frequentemente evocado pelos membros da Plenária da Conitec. “Custo de oportunidade” é o valor da melhor opção de que abri mão, quando fiz escolha por outra. Ou seja, o “valor da segunda melhor opção”.

Com um exemplo fica melhor de entender. Imagine um gestor dizendo “Por que vou entregar este medicamento de alto custo para este único paciente quando poderia tratar milhares de mulheres com depressão pós-parto com o mesmo recurso?” O “custo de oportunidade” de entregar tal medicamento ao único paciente seria quantas mulheres foram deixadas de tratar com depressão pós-parto neste exemplo meramente ilustrativo.

De uma perspectiva utilitarista, o argumento procede. Mas quando se leva em conta a necessidade de observância do princípio da equidade vertical (ver acima), ele é insuficiente.

Recomendação 5: Em 2016, a Organização Mundial de Saúde reconheceu a impropriedade deste quantitativo (3 x PIB) com base no fato de que não apresentava a especificidade necessária para países distintos e poderia levar a decisões equivocadas de alocação de recursos.

Recomendação 6: Remete-se para as calendas gregas discussão altamente relevante para as pessoas que vivem com doenças raras. Eles não podem esperar.

Concluindo

A participação de minorias em debates que dizem respeito à sua manutenção como espécie (especialmente pessoas que vivem com doenças raras) passa por vontade de lutar e apetite por conhecer de sua parte, de seus familiares e de simpatizantes.

Saber de seus direitos, inteirar-se das propostas que as autoridades lhes fazem, checar sua propriedade e conveniência para a sua realidade e sobretudo participar ativamente da vida pública. A isso os antigos chamavam de “sociedade civil”. A democracia não é um dado; é uma construção trabalhosa.

Sem ampla discussão com a sociedade (que não se resume a uma consulta pública e que envolve fatores mais complexos como a educação de todo um povo), a chance de os doentes raros comprarem gato por lebre é imensa. Como nos lembra Eleanor Perfetto, consulta não é participação.

Necessário se faz repolitizar a saúde pública, tal como originalmente concebida! Saúde pública é Justiça Social! Soluções tecnocráticas, adotadas com o frenesi típico dos cabeças-de-planilha, despolitizam este campo de lutas caracteristicamente politizado desde sempre, que é a Saúde Pública

2 comentários em “Limiares de custo-efetividade: tecnocracia ou democracia?”

  1. Fico me perguntando quantos – no Universo brasileiro das raras – são capazes de ler e entender este excelente texto. Então, sim, todo o problema começa por aí; ou, como dizia minha sábia avó, o buraco é mais em baixo.

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    • Obrigado, Rosana. De fato este é um problema que tende a prejudicar as pessoas que vivem com doenças raras. Não basta viver a doença . Há que se estudar o assunto em uma perspectiva cidadã para não ser vítima de trapaças institucionais. Saber é poder.

      Responder

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