Inovação social farmacêutica em doenças raras

Nota da redação

Reproduzimos, abaixo, artigo de Fernando Aith (USP) originalmente publicado no JOTA onde ele dá conta de pesquisa de três anos de duração conduzida por investigadores brasileiros (entre os quais eu me incluo, Cláudio Cordovil Oliveira, ENSP/Fiocruz), canadenses, franceses e holandeses. O convite para que Fernando Aith coordenasse o time brasileiro do Projeto Social Pharmaceutical Innovation (SPIN) for Unmet Social Needs (financiado pela FAPESP dentre outras agências de fomento) partiu de mim. Prontamente aceito, não poderia ter sido mais oportuno. Nos dias 9 e 10 de março, estaremos em Utrecht, Holanda, divulgando alguns resultados deste fascinante projeto, em evento que será transmitido online.

No dia 28 de fevereiro diversas atividades ao redor do mundo foram realizadas para lembrar o Dia Mundial das Doenças Raras.

O conceito de doenças raras varia de país para país. No Brasil, são consideradas doenças raras aquelas definidas pelo número reduzido de pessoas afetadas com relação à totalidade da população. Para ser considerada rara, a doença deve ter a proporção de 65 indivíduos a cada 100 mil pessoas.

Atualmente, há em torno de 7 mil doenças raras descritas, sendo 80% de origem genética e 20% de causas infecciosas, virais ou degenerativas. Estima-se que em torno de 13 milhões de brasileiros vivam com essas enfermidades, e que para 95% das doenças raras descritas ainda não há tratamento, restando somente os cuidados paliativos e serviços de reabilitação.

Dia Mundial das Doenças Raras é ótimo motivo para refletir sobre a atenção integral à saúde de quem é acometido por elas

As dificuldades que se apresentam para uma pessoa com doença rara são enormes. Para chegar ao diagnóstico, um paciente chega a consultar até dez médicos diferentes, e a maioria é diagnosticada tardiamente. Aproximadamente 75% das doenças raras ocorrem em crianças e jovens.

Uma vez diagnosticada a doença, para muitos pacientes em todo o mundo, medicamentos e tratamentos médicos não estão disponíveis ou são inacessíveis, seja porque os pacientes vêm de contextos econômicos pobres – e não são vistos como um mercado viável pela indústria farmacêutica –, seja porque os pacientes com doenças raras não representam uma base de consumidores grande o suficiente para justificar os significativos investimentos em pesquisa da indústria farmacêutica necessários para o desenvolvimento de novos tratamentos.

No domínio das doenças raras, têm sido implementadas políticas específicas em diferentes países que têm resultado em algum crescimento do número de medicamentos para estas doenças. No entanto, muitas condições ainda carecem de tratamentos e, quando estão disponíveis, geralmente são muito caros e, portanto, inacessíveis e insustentáveis.

Nos últimos anos, surgiram formas de Inovação Social Farmacêutica (Social Pharmaceutical Innovation ou SPIN), que são novos modelos de pesquisa, desenvolvimento, produção e acesso que buscam abordar as desigualdades e vulnerabilidades em saúde relacionadas a doenças raras e outras necessidades médicas não atendidas.

As inovações sociais farmacêuticas não são direcionadas exclusivamente para fins lucrativos e são caracterizadas por colaborações entre empresas privadas, instituições públicas e diversos grupos interessados (incluindo organizações de pacientes). Pesquisa desenvolvida por equipes de pesquisadores de Canadá, Brasil, França e Holanda, que tenho a satisfação de coordenar no Brasil, vem mapeando e divulgando casos de inovação social farmacêutica nesses países.

No Brasil, a pesquisa conta com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e visa fornecer uma compreensão detalhada dos contextos médicos, sociais, econômicos, políticos e regulatórios que moldam essas iniciativas SPIN.

Considera-se inovação social as experiências que tem como objetivos oferecer uma nova abordagem para lidar com vulnerabilidades sociais ou ambientais, como pobreza, desigualdades na saúde, efeitos indesejáveis das mudanças climáticas etc., que afetam pessoas com doenças raras (pequenas populações de pacientes) e com doenças negligenciadas (doenças prevalentes em países de renda média e baixa).

Para ambas as categorias de doenças, o mercado está falhando: é incapaz de atender as populações de pacientes em questão. A inovação social não tem como objetivo principal o lucro; ao contrário, visa gerar impactos socioambientais positivos ou prevenir impactos negativos. Procura equilibrar os interesses públicos e privados e melhorar e equilibrar as responsabilidades dos diversos atores envolvidos (ou seja, inovação responsável).

A inovação social usualmente estabelece parcerias entre empresas privadas, instituições públicas e diversos grupos interessados (ou seja, inovação colaborativa), devendo necessariamente incluir os usuários no processo de inovação. Na área da saúde, a categoria de usuários é bastante ampla, pois inclui pacientes (que consomem o medicamento), médicos especialistas (que prescrevem e supervisionam o uso), farmacêuticos (que distribuem) e seguradoras de saúde (que pagam).

Essas categorias de usuários podem estar envolvidas como indivíduos, mas também representadas por organizações (por exemplo, grupos de defesa de pacientes) ou até mesmo empreendedores sociais (por exemplo, um farmacêutico ou um grupo de profissionais que se reúnem para fabricar medicamentos a preços baixos).

Medicamentos são bens peculiares. Antes de chegarem ao mercado, os medicamentos são testados quanto à segurança para uso humano e passam por ensaios clínicos em larga escala e em vários locais para uma indicação, colocados sob jurisdição nacional – por exemplo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no Brasil ou a Health Canada no Canadá – ou supranacional de agências reguladoras – como a Agência Europeia de Medicamentos (EMA).

Uma vez confirmada sua segurança e eficácia clínica, os medicamentos passam por avaliação econômica, associada à sua efetividade, sendo esta a base para as negociações de preços entre as empresas farmacêuticas e as autoridades relevantes no que diz respeito aos medicamentos que serão cobertos pelos sistemas públicos ou seguros privados de saúde.

Este processo visa assegurar custo-efetividade dos medicamentos, e estabelece um modelo linear sequencial de inovação farmacêutica: na primeira etapa, o valor clínico do medicamento é testado; na etapa seguinte, avalia-se seu valor econômico. Além disso, a base epistemológica da tomada de decisão é bastante convencional e exclusiva de determinados atores, nomeadamente empresas e agências reguladoras.

Esse enquadramento regulatório e institucional tem seus próprios limites quando se trata do desenvolvimento de medicamentos para doenças raras. Pequenas populações de pacientes em doenças raras impedem grandes ensaios clínicos, e estudos randomizados controlados por placebo não são adequados para medicamentos pediátricos ou medicamentos para a fase terminal de doenças como cânceres, HIV/Aids ou outras doenças degenerativas.

Para outras condições, o tamanho ou o status socioeconômico das populações de pacientes não representam um retorno suficiente do investimento para a indústria farmacêutica e/ou biotecnológica.

Para enfrentar as limitações do modelo sequencial e linear de inovação farmacêutica e as falhas do mercado de medicamentos, políticas específicas foram desenhadas em diferentes regiões do mundo e para diferentes condições. No Brasil, esses esforços se iniciam apenas em meados da década de 2010, em momento politicamente instável do país, razão pela qual ainda não se fizeram sentir pelos doentes raros.

Dependendo das legislações nacionais ou supranacionais, essas políticas incluem flexibilização tecnológica, incentivos econômicos específicos e assistência científica a empresas que queiram desenvolver tais medicamentos.

No entanto, componentes significativos do setor farmacêutico e de biotecnologia mudaram suas estratégias de negócios e inovação do desenvolvimento de medicamentos de grande sucesso para “nichebusters” como parte de um movimento mais amplo em direção à medicina personalizada1.

Esta mudança resultou em medicamentos cujos preços são excessivamente elevados, muitas vezes na ordem das centenas de milhares ou até milhões de dólares/euros por doente por ano((Côté & Keating, 2012)). Esses preços não são apenas inacessíveis para pacientes individuais, mas também são uma ameaça para a sustentabilidade dos sistemas públicos de saúde.

É aqui que entram em cena abordagens socialmente inovadoras para o desenvolvimento e cobertura de drogas. Essas abordagens, que podem ser denominadas de “inovação farmacêutica social”, visam articular modelos socialmente robustos e economicamente viáveis de P&D de produtos farmacêuticos, caracterizados por novas parcerias nos setores público, sem fins lucrativos e privado.

No Brasil, o Ministério da Saúde, por meio da Portaria 199/2014, instituiu a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, aprovou as Diretrizes para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e instituiu incentivos financeiros de custeio. No entanto, até o presente momento, esta norma ainda não surtiu os efeitos esperados.

Nos próximos dias 9 e 10 de março será realizada a Conferência Internacional sobre Inovação Social Farmacêutica para Doenças Raras, na Universidade de Utrecht (Holanda), onde os resultados com diversas experiências serão divulgados publicamente. O evento é gratuito e poderá ser acompanhado online.

O Brasil, por meio da Universidade de São Paulo e da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), estará presente como organizador do evento, colocando-se como um ator importante para que essa agenda se desenvolva e considere, sobretudo, as necessidades dos doentes raros que habitam o Sul Global.

Estarão presentes para falar de experiências brasileiras representantes do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), da sociedade civil e do governo.

Espera-se, com essa iniciativa, encontrar novos e inovadores caminhos para a atenção à saúde integral das pessoas com doenças raras, visando a plena realização do direito à saúde, da dignidade humana e da justiça social para os raros.

  1. Collier, 2011 []

1 comentário em “Inovação social farmacêutica em doenças raras”

  1. Ainda insisto em que a incorporação, pela Anvisa, de medicamentos para doenças raras deve seguir o critério da relevância clínica e não do custo-efetividade. Pois não é só a cura que deve ser considerada benefício, mas também a desoneração dos sistemas de saúde e assistência social, na medida que o paciente demandará menos benefícios previdenciários, menos medicamentos, menos intercorrências e menos internações hospitalares.

    Responder

Deixe um comentário

error: Corta e cola, não!
Verified by MonsterInsights