Apesar de o prazo para contribuições da sociedade à Consulta Pública Conitec/SCTIE nº 41/2022 (CP 41) ter se encerrado no dia 1 de agosto, o debate sobre a definição de limiares de custo-efetividade para incorporação de tecnologias em saúde ao SUS deveria prosseguir, pelas consequências que tais limiares podem ter sobre a vida de todos os cidadãos brasileiros.
Eis que chega a nosso conhecimento, ainda que tardiamente, uma Nota Política (Policy Note) publicada pelo Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento, datada de 25 de julho deste ano e de autoria de Isabela Callegari.
Nela, a proposta da Conitec é definida sem meias tintas: a definição de um teto de gastos para medicamentos como mais um passo em uma agenda contínua de arrocho orçamentário e de negação de direitos baseada em um entendimento econômico muito particular.
Para Callegari, representando o IFFD, “qualquer limite financeiro arbitrário que negue direitos à população, e que não apresente um estudo econômico integrado, de longo prazo, e nem um planejamento acerca de como o Estado pretende atender toda a população” deve ser entendido como um descaso para com esta.
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A nota coloca toda a discussão sobre LCE em outro patamar, a nosso ver inédito, em todo debate sobre a CP 41.
O documento vincula a Saúde a uma lógica de Desenvolvimento e Justiça Social. Em outras palavras, inscreve o tema em uma verdadeira perspectiva de Saúde Pública, que poderia soar em certos momentos como pouco palatável a representantes da iniciativa privada. Paciência.
Passou da hora de os brasileiros problematizarem o alto custo dos medicamentos órfãos e o sucateamento da capacidade tecnológica nacional.
Por trás das recomendações constantes na CP 41, para quem tem olhos de ver, como o IFFD, vislumbra-se todo um projeto de país. Resta saber se este é o Brasil que queremos.
A nota técnica basicamente classifica a proposta da Conitec como derivada de uma lógica neoliberal, de valorização do Estado mínimo e do dogma do “teto de gastos”.
Seu mote pode ser localizado já no início do documento:
A nota explicita a fundamentação macroeconômica da proposta da Conitec e enumera razões éticas e argumentações jurídicas para a ela se opor.
Vamos tentar resumir seus principais pontos. De todo modo, recomendamos a sua leitura integral aos interessados.
Aspectos éticos problemáticos de LCE
Citando a famigerada matéria da UOL que recentemente tratou a questão do “remédio mais caro do mundo”, aludindo ao Zolgensma®, numa perspectiva semelhante à propaganda nazista, a nota nos recorda uma declaração absolutamente infeliz do ex-ministro da saúde Nelson Teich, antes mesmo de assumir o cargo, e que, ao que parece, já tínhamos esquecido.
Recordemos o momento infeliz (talvez involuntário) do agora ex-ministro:
Vidas com preço
“Saúde não é mercadoria” era um dos slogans preferidos dos pais fundadores da Reforma Sanitária Brasileira, que deu origem ao Sistema Único de Saúde.
Curiosamente, ao propor limiares de custo-efetividade aos tratamentos a serem incorporados ao SUS, a Conitec exacerba a precificação da vida e ressignifica o caráter mercantil da saúde. Sobre isso, a nota se posiciona de forma incisiva:
A nota destaca algo que apontamos em post nesse blog com relação às recomendações constantes no documento da Conitec (CP 41).
Apesar de reconhecer que o QALY não pode ser o único critério a definir o que será ou não incorporado ao SUS, este “permaneceu como único critério objetivo e explícito apresentado no documento e na consulta pública, enquanto os demais critérios permanecem não ditos e relegados a uma avaliação [futura] caso a caso [pela Conitec], de forma subjetiva”.
E prossegue:
Decorrência natural da adoção do QALY como padrão-ouro das futuras decisões da Conitec (o que não quer dizer que jamais fora antes), a julgar pelas recomendações que colocaram em consulta pública, está a desconsideração de terapias e tratamentos que beneficiem pessoas idosas, em final de expectativa de vida.
A este respeito, a nota do IFFD assim se pronuncia:
Direito à saúde
É importante que você que nos lê agora saiba que o direito à saúde não é uma invencionice, um mero capricho, um bibelô que se presta a polarizações ideológicas tão em voga nos dias de hoje.
O direito à saúde é um fato mundialmente reconhecido. Não se trata de algo subjetivo ou uma questão de opinião. No entanto, ele não vem de mão beijada. Precisa sempre ser reivindicado.
Dados os limites de espaço deste post, não nos alongaremos na descrição dos instrumentos jurídicos internacionais que têm no Direito à Saúde um de seus princípios basilares.
Entre eles, destacamos
- A Constituição da Organização Mundial de Saúde
- A Declaração Universal dos Direitos Humanos
- O Pacto Internacional sobre os Direitos Sociais, Culturais e Econômicos
- A Carta da Organização dos Estados Americanos
- A Convenção Americana dos Direitos Humanos
Direito de todos e dever do Estado
A nota do IFFD destaca o artigo 196 da Constituição Federal que “obriga os entes públicos a garantir a efetivação do direito fundamental à saúde“
O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação
(Constituição Federal, art. 196, § 1º)
O princípio do não-retrocesso
Aspecto que passou despercebido do debate público sobre os LCE e é mencionado no documento do IFFD foi o princípio do não-retrocesso. Basicamente ele impede que Estados e legisladores revoguem, no todo ou em parte essencial, direitos já adquiridos anteriormente. Por este princípio, “novos pacientes não poderiam ficar sem acesso aos mesmos medicamentos e tratamentos fornecidos” a outrem, em virtude de um teto de gastos definido pelos limiares de custo-efetividade.
Isso feriria também, segundo a autora da nota e o IFFD, o princípio da isonomia entre indivíduos: a idéia de que todos são iguais perante a lei, prevista no caput do artigo 5 da Constituição Federal.
A dignidade humana, que, segundo o filósofo Immanuel Kant, é conferida ao ser humano pela simples razão de ele existir também é mencionada na nota do IFFD.
Para Kant, vidas humanas não têm preço:
Licença compulsória ou “quebra de patentes”
A dependência de poucos laboratórios farmacêuticos para a produção de medicamentos de alto custo não escapou do radar do IFFD. Segundo a nota, as patentes inviabilizam “o desenvolvimento de medicamentos alternativos, resultando em concorrência inexistente e preços inacessíveis”, o que tornaria justificável o emprego do estatuto da licença compulsória, amparada pela legislação brasileira (Lei nº 9.279/1988) e que prevê a “quebra de patentes” nos casos de:
- Abuso de poder econômico
- Emergência nacional e extrema urgência
- Interesse público
- Remediação de práticas anticompetitivas e concorrência desleal
- Falta de produção local, e
- Existência de patentes dependentes
A licença compulsória foi empregada no Brasil em 2006, para quebra de patente do Efavirenz®, medicamento utilizado no tratamento da AIDS, e do medicamento órfão Soliris® mais recentemente. Foi cogitada na recente crise sanitária global provocada pela pandemia e em casos envolvendo o Spinraza®, indicado para o tratamento da Atrofia Muscular Espinhal.
A nota do IFFD ressalta a natureza supostamente falaciosa da argumentação de que a “licença compulsória” inibiria o investimento privado em pesquisa e inovação.
Segundo ela, a austeridade fiscal na prática já faria com que o Estado se negasse a efetivar seu poder econômico de único comprador de medicamentos de alto custo, retirando dos fabricantes o incentivo para sua produção.
A concentração da produção de medicamentos de alto custo nas mãos de umas poucas empresas multinacionais não escapa da análise da autora da nota. Razão pela qual irá defender a perspectiva do Complexo Econômico Industrial da Saúde (CEIS) como receita para o desenvolvimento soberano do país. Mas este é assunto para um outro post, futuramente.
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Gasto público não é necessariamente ruim
Aqui cabe um destaque para a perspectiva incomum adotada pela nota e que tem relação com a filiação teórica do IFFD.
Criado em 2021, o instituto filia-se à perspectiva das “finanças funcionais”, desenvolvida em 1943 por Abba Lerner. “O paradigma das Finanças Funcionais advoga a necessidade de avaliar os resultados dos gastos públicos em termos de seus efeitos macroeconômicos em emprego, produção, inflação e, principalmente, em termos do atingimento de objetivos socialmente determinados“. Desta forma, nem todo gasto público seria necessariamente ruim, como a mídia mainstream insiste em lhe convencer.
Assim, por esta lógica, gastos públicos, a depender de sua finalidade e propósito, poderiam ser vistos como investimentos. Na visão dos seus defensores, o teto de gastos em saúde, definido pela Emenda Constitucional 95, por exemplo, seria produto de certa miopia conceitual acerca do sistema monetário-econômico vigente em todo o mundo, e não resistiria a uma análise macroeconômica mais fundamentada.
A nota do IFFD destaca-se por sua originalidade e tem como principal virtude a nosso ver o reagendamento da Saúde Pública como fator de desenvolvimento e justiça social, na abordagem que faz dos limiares de custo-efetividade. Ela retira a Saúde Pública da perspectiva equivocada perfilhada por muitos doentes raros que a concebem como mera provedora de medicamentos pelo Estado.
Já passou da hora de os doentes raros se verem como cidadãos e não como meros consumidores de medicamentos de alto custo.
Fonte
CALLEGARI, Isabela. Uso de Limiares de Custo-Efetividade nas Decisões em Saúde: recomendações da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD). Policy Note n. 4. Brasil, julho de 2022.