QALY: Análises de custo-efetividade convencionais são discriminatórias

Quem acompanha a cena das Avaliações de Tecnologias de Saúde no Brasil e no exterior já sabe. Se a decisão da tal agência for a de não incorporar este ou aquele tratamento a um sistema público de saúde, a indignação entre pessoas que vivem com doenças raras e seus familiares é generalizada.

Isto não é mimimi, tem uma razão de ser agora fundamentada pelo estado da arte das teorias econômicas, como veremos a seguir.

Este blog tem acompanhado esta cena há pelo menos cinco anos. E há cinco anos Academia de Pacientes é quase um samba de uma nota só, um mantra martelado à exaustão: as Análises de Custo-Efetividade e Custo-Utilidade empregadas por agências de Avaliação de Tecnologias em Saúde, como a Conitec , cometem injustiças para com as pessoas com deficiência (PCD), doenças raras e ultrarraras, especialmente as mais graves.

Como o tempo é o senhor da razão, eis que agora a Conitec divulga uma consulta pública sobre limiares de custo-efetividade na qual propõe em uma de suas recomendações algo que sugere que estaria disposta a atribuir pesos maiores a decisões envolvendo doenças raras. Só o tempo dirá.

Esta é uma recomendação que está de acordo com o estado-da-arte do que melhor se produz no mundo em termos de Farmacoeconomia: atribuir-se limiares diferenciados para doenças raras e ultrarraras.

No entanto, os limiares propostos pela Conitec podem ser insuficientes para a efetiva incorporação de medicamentos para doenças raras e ultrarraras ao SUS, dados os valores propostos para tal.


Mas hoje gostaria de me deter em fato já consagrado na literatura especializada sobre o caráter discriminatório das métricas empregadas em análises de custo-efetividade, representadas aqui pelo famigerado QALY ou Anos de Vida Ajustado pela Qualidade. Nove entre 10 pessoas com doenças raras que demandam medicamentos órfãos ao SUS conhecem toda a perfídia que estas quatro inocentes letrinhas podem carregar.

O caráter discriminatório do QALY traz sérias implicações para as pessoas que vivem com doenças raras, idosos e pessoas com deficiência. Além de abalarem flagrantemente um dos princípios sacrossantos do SUS: a equidade. E aqui é importante destacar que muitas doenças raras e ultrarraras cursam com deficiências.

Com a confirmação crescente do caráter discriminatório do QALY, fartamente empregado pela Conitec em seu processo de tomada de decisões acerca da incorporação de tecnologias ao SUS, há pelo menos 10 anos, pergunta-se:

  1. Vamos manter o QALY como principal métrica para decisões que afetam tão seriamente a vida das pessoas?

2. Que fatores sociais serão formalmente levados em consideração pela Conitec nestes casos para fins de equidade?

3. Quando veremos documentação formal da agência dando conta do modo de usar estes fatores e de sua aplicação aos processos de tomada de decisão?

O problema não é trivial e envolve aspectos complexos das teorias econômicas de difícil alcance para leigos.

Mas, na prática, desconhecer rudimentos da economia da saúde neste quesito representa permitir lesão importante do direito à saúde de pessoas já em situação de desvantagem socioeconômica.

A lei dos rendimentos decrescentes

Uma das leis mais fundamentais da Economia é a lei dos rendimentos decrescentes.

Em linguagem coloquial ela basicamente vai dizer o seguinte, em um exemplo ilustrativo:

Um aumento de mil reais ao salário de quem ganha 10 mil reais vale mais do que um aumento de mil reais no salário de quem ganha 50 mil reais.

Agora vamos transpor essa lei para o campo da saúde:

Vamos supor que você tenha refluxo gastroesofágico. Os métodos-padrão de análise de custo-efetividade (aqueles que empregam o QALY, por exemplo) mediriam sua qualidade de vida (QV) em cerca de 0,9 em uma escala de índice de saúde que vai de 0 (morte) a 1 (saúde ideal). Este valor que pode ir de 0 a 1 é denominado “utilidade”, em Farmacoeconomia.

A finalidade das “utilidades” é medir o grau com que ter uma forma particular de doença ou deficiência é vista como impactando negativamente a qualidade de vida, quando comparado à saúde perfeita.

E então, vem nossa primeira pergunta:

Quanto você estaria disposto a pagar pela cura total do refluxo gastroesofágico (ou seja, em nosso exemplo, adicionar 0,1 unidades extras de qualidade de vida)?

Pensou?

Agora vem a segunda pergunta,

Você pagaria mais, menos ou a mesma quantia por 0,1 unidades extras de QV se você estivesse nos últimos estágios da distrofia muscular de Duchenne (DMD), cujas consequências deixaram você com 0,25 QV?

Levantamentos realizados na sociedade e a própria intuição dos seres humanos indicam que as pessoas estariam dispostas a pagar mais para beneficiar aquelas pessoas com saúde mais prejudicada.

Mas, para as análises convencionais de custo-efetividade, não faz diferença alguma melhorar a Qualidade de Vida em 0,1 em situações tão distintas como a do exemplo acima, envolvendo refluxo gastroesofágico e DMD.

Assim, o problema das análises convencionais de custo-efetividade é que elas não fazem esta distinção na disposição a pagar, contrariando desta forma o senso comum, a vontade popular e levantamentos realizados a este respeito.

É daí que vem a expressão: “Um QALY é um QALY é um QALY”. Esta frase quer dizer que ele não faz acepção de pessoas, que ele é supostamente neutro e imparcial.

Mas, dependendo de quem olhe, isto pode ser uma maldição ou uma benção.

Para os tecnocratas é uma maravilha. Facilita os cálculos e retira aspectos ‘sentimentais’ ou os deixa em segundo plano (na verdade, sociais) nos processos de tomada de decisão: esta coisa de ‘vidas em jogo’ é algo que não deve preocupar um tecnocrata zeloso. Atrapalha o bom andamento dos trabalhos. No entanto, esta indistinção, para pessoas com deficiência (PCD), doenças raras, ultrarraras, idosos e crônicos, pode representar a diferença entre a vida e a morte.

Sim, leitoras e leitores, a Economia da Saúde lança mão da lei dos rendimentos decrescentes com frequência. Ela está em todo canto.

Adivinha onde ela não aparece? Nas Análises de Custo-Efetividade! A suposição de retornos decrescentes na qualidade de vida relacionada à saúde está ausente das mesmas. Cumpre ressaltar que este tipo de análise é muito presente nos relatórios de recomendação da Conitec e do NICE.

As implicações da retirada da lei dos rendimentos decrescentes em análises que dizem respeito à saúde dos cidadãos são vastíssimas. Na prática tornam todas as Avaliações de Tecnologias em Saúde realizadas pela Conitec e outras agências potencialmente lesivas a um princípio basilar do SUS que é o da equidade, as inscrevendo no campo de geradoras de iniquidades, quando o QALY está em jogo.

“Iniquidades” não são “desigualdades”.

Estas últimas representam diferenças nos estados de saúde. Algo normal, digamos assim.

Iniquidades são mais graves e preocupantes. Elas se definem como “diferenças que são desnecessárias e evitáveis, além de abusivas e injustas”, retirando de muitos a justa oportunidade de serem os mais saudáveis possíveis.

Não custa lembrar que pela Constituição Federal, “saúde é direito de todos e dever do Estado”.

Uma das formas de se apurar “utilidades” visando definir o QALY em determinada enfermidade ou deficiência é através da aplicação de um questionário: o EQ-5D. Existem outras como a “Aposta Padronizada” (standard gamble) e a Permuta com o Tempo (Time trade-off).

Nos próximos dias iremos te revelar mais aspectos discriminatórios do QALY que afetam, PCD, pessoas que vivem com doenças raras, idosos e até doentes crônicos!

Também apontaremos métodos alternativos que têm sido estudados para resolver os problemas envolvendo iniquidades suscitadas pelas análises de custo-efetividade convencionais.

Diante de tantos problemas envolvendo a equidade que deve nortear o direito à saúde, parece-me que colocamos o carro adiante dos bois quando discutimos limiares de custo-efetividade, como sugerido pela CP 41.

Pessoas com doenças raras, deficiências, idosos, doentes crônicos e sociedade em geral deveriam estar discutindo o caráter discriminatório de métodos como as análises de custo-efetividade convencionais e o que fazer com as decisões já tomadas que as empregaram, sobretudo aquelas que recomendaram a não-incorporação de tecnologias para as subpopulações acima mencionadas.

P.S.: Há autores que consideram as análises de custo-utilidade (QALY) como um subdomínio das análises de custo-efetividade.

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Aviso

A expressão “integridade da pesquisa” (research integrity) vem sendo utilizada para demarcar um campo particular no interior da ética profissional do cientista, entendida como a esfera total dos deveres éticos a que o cientista está submetido ao realizar suas atividades propriamente científicas.

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Como citar este post:

Cordovil-Oliveira, Cláudio. Análises de custo-efetividade convencionais são discriminatórias. Academia de Pacientes [blog]. 20/07/2022. Disponível em <http://academiadepacientes.com.br/analises-de-custo-efetividade-convencionais-sao-discriminatorias/> [data de acesso]

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