Cláudio Cordovil

Acordos de compartilhamento de risco: esperança para os raros

MBE, políticas públicas

Você não precisa ser muito inteligente para imaginar que os desafios lançados a sistemas públicos de saúde (especialmente aqueles de caráter universal, como o SUS) por medicamentos novos e de alto custo não são privilégio do Brasil. Todos os países do mundo que, de alguma forma, ousaram enfrentar o problema representado pelas doenças raras defrontam-se, em maior ou menor grau, com a questão do preço destas novas tecnologias em saúde.

A diferença entre eles e o Brasil é que aqueles buscaram soluções para resolver tais impasses e garantir, em algum grau, a assistência integral à saúde a pessoas que vivem com doenças raras. O Brasil ainda engatinha nesse campo.

A solução que aqui mostraremos tem sido adotada por inúmeros países da Europa e por Estados Unidos, Nova Zelândia, Austrália, Canadá, dentre outros. Apresenta seus desafios (como acordar pela manhã também os têm). Mas, segundo analistas, são plenamente factíveis em realidades como a do SUS, desde que se tomem as cautelas usuais, visando o sucesso de políticas públicas. Para eles, é mera questão de tempo a possibilidade de serem adotados no Brasil.

Trata-se dos “acordos de compartilhamento de risco” (ACR). Nele, o Estado concorda com a incorporação temporária de novo medicamento (incorporação condicionada), enquanto a indústria farmacêutica aceita receber um preço pelo produto que será determinado conforme o desempenho do mesmo em reais condições de uso. Trata-se de um contrato de caráter inovador, na medida em que foge às etapas tradicionais dos processos de análise, incorporação e precificação de fármacos, como aquelas empregadas pelos órgãos vinculados à assistência farmacêutica no SUS.

Para não desperdiçar as conquistas provenientes da inovação tecnológica na área de fármacos, para as quais investem pesadamente, diversos países do mundo, especialmente os mais desenvolvidos, têm experimentado inúmeros instrumentos na área de administração pública, visando reduzir as incertezas relacionadas a seu ingresso nos sistemas públicos de saúde, bem como seu impacto orçamentário.

De um modo geral, todas funcionam com o mesmo princípio. A coleta adicional de informações sobre medicamentos e outras tecnologias em saúde, enquanto permitem seu acesso pela população, integral ou parcial; livre ou controlado.

As informações complementares a serem reunidas e coletadas nesta modalidade de contrato podem envolver:

  • impacto orçamentário
  • benefícios clínicos
  • desempenho em reais condições de uso do medicamento
  • relação de custo-efetividade
  • ou ampliação e aperfeiçoamento de acesso à saúde.

Uma das vias usuais para confrontar o real valor terapêutico de um fármaco ou outra tecnologia de saúde a seu preço final tem sido as Avaliações de Tecnologias em Saúde (ATS), muito abordadas neste blog. Por outro lado, as “medidas alternativas” a que nos referimos neste post também se baseiam nas ATS.

A unir as tais “medidas alternativas”, como já mencionado, o fato de serem medidas que promovem acesso da tecnologia ao mercado público para geração de evidências complementares quanto ao seu valor. Trata-se de recursos para, de algum modo, contornar as incertezas presentes na oportunidade do registro, precificação e incorporação de novos medicamentos ou outras tecnologias em sistemas de saúde.

Através destes contratos, as partes (Estado e indústria farmacêutica) firmam um acordo no qual manifestam concordância sobre o fato de a definição do preço do medicamento ou outra tecnologia se dar no futuro, conforme resultados provenientes de suas reais condições de uso por um prazo determinado. Seu desempenho será medido em termos de desfechos alcançados para a saúde, como ocorre normalmente nas ATS.

Aspectos clínicos da tecnologia (como os benefícios terapêuticos quando comparados a uma tecnologia já disponível) e/ou aspectos financeiros (como impacto orçamentário com efetiva quantidade de pacientes sendo tratados) podem ser critérios para avaliação do desempenho do novo produto.

Não há informação oficial até o momento de que o Brasil tenha adotado acordo de compartilhamento de risco ou outras medidas alternativas para incorporação e aquisição de tecnologias ao SUS. No entanto, nada impede que já estejam eventualmente em curso, dado que muitas vezes estes acordos são sigilosos. No entanto, penso que para que entrem em vigor necessárias seriam novas medidas regulatórias, por se tratar de proposta de relação totalmente inédita no país entre Estado e indústria farmacêutica.

De fato, de acordo com a legislação brasileira, atualmente em vigor, não é possível alterar os preços de medicamentos acordados entre Estado e indústria, por conta de eventuais resultados de testes clínicos a posteriori, em fase de comercialização do fármaco. Assim, hoje, eventual desequilíbrio futuro entre o preço e a efetivação das promessas terapêuticas identificadas na fase de testes clínicos nos processos convencionais de regulação sanitária é assumido exclusivamente pelo Estado.

Com os acordos de compartilhamento de risco, tal situação se modifica totalmente, na medida em que esta responsabilidade é compartilhada entre a indústria e o Estado, por conta da possibilidade de ajuste do preço final do fármaco condicionada aos resultados de testes clínicos em condições reais de uso (Fase IV dos testes clínicos, p. ex.).

Desta forma também fica de alguma forma equacionado o problema das “evidências”, que habitualmente, no caso de doenças raras, são muito tímidas, quando do momento de registro de um novo medicamento em órgãos de vigilância sanitária, nas modalidades convencionais de assistência farmacêutica empregadas em todo o mundo.

Potencial adequação ao SUS e vantagens para a sociedade

Renata Curi Hauegen (pesquisadora da Fiocruz, como eu), defendeu, em 2014, tese de doutorado orientada por Carlos Medicis Morel, junto ao Instituto de Economia da UFRJ. Nela, enumerou, com propriedade, os principais motivos a recomendar a experimentação prioritária dos APR no Brasil, além de demonstrar a factibilidade de adoção pelo SUS.

* O uso do acordo de partilha de risco requer, necessariamente, fortalecimento dos instrumentos de análise pós-mercado, tanto quanto ao desempenho [do medicamento] como quanto ao volume [de vendas]. Significa dizer que, independente do resultado quanto ao preço ao final do contrato, o sistema público de saúde se beneficiará do investimento e experiência no acompanhamento dos medicamentos em condições reais de uso.

* Para o uso adequado do acordo de partilha de risco é preciso que a indústria farmacêutica e o Estado estabeleçam diálogo sobre os desfechos esperados. As negociações entre essas partes sugerem um benefício por si só, uma vez que o Estado prefere, pontualmente, a relação colaborativa no lugar da regulação; através do acordo de partilha de risco, o Estado abandona, ainda que momentanea ou parcialmente, o recurso da regulação vertical e centralizada, para propor uma relação de parceria e colaboração com a indústria farmacêutica.

* O APR também fortalece a relação entre a indústria farmacêutica e o Estado na medida em que oferece a ambas as partes evidências quanto ao real valor da tecnologia a partir de critérios eleitos pelas partes e com a contribuição de interessados. A troca de informações quanto às pretensões do Estado e sociedade e a coleta de dados científicos têm o potencial de interferir nas prioridades do desenvolvimento de novas tecnologias em saúde.

* Nessa mesma linha, a possibilidade de associações de pacientes, pacientes, profissionais de saúde e outros setores da sociedade participarem da discussão sobre desfechos esperados do medicamento atende ao princípio consagrado na Constituição Federal que requer a gestão estratégica e democrática das políticas públicas em saúde no âmbito do SUS.

* Outro efeito mediato do APR é o aperfeiçoamento do uso racional de medicamentos, uma vez que a análise de desempenho permite identificar os grupos de pacientes aos quais o medicamento se destina.

* Ainda, produz efeitos regulatórios, inibindo o acesso ao mercado de medicamentos menos eficientes que o esperado ou mais caros do que realmente valem. Nesse tocante, cabe lembrar que a modalidade de partilha de risco quanto ao volume tem especial importância como regulador de mercado, uma vez que a indústria farmacêutica tem obrigações financeiras (interpretadas como penalidades por alguns autores), na hipótese de consumo além do limite estabelecido.

* O APR, ao prever que o desfecho do uso do medicamento tem efeitos tanto sobre o preço como na decisão quanto à incorporação definitiva, acaba por absorver o conteúdo e finalidade da Incorporação Condicionada.

* Inúmeros autores relacionaram o APR como um modelo de acordo que, se utilizado adequadamente, pode servir como uma forma de estimular e premiar a verdadeira inovação. Os acordos de partilha de risco são instrumentos sem os quais a incorporação de determinado tratamento seria retardado, acarretando em diminuição do índice de vendas das companhias, o que, em última análise, serve como desestímulo à inovação. O acordo eficiente ajusta o preço ao real valor da tecnologia, mas a cooperação entre companhias e governos pode importar na sustentabilidade de programas em saúde e adequada compensação pelas inovações desenvolvidas.

* Por fim, ainda que ao final da análise de desempenho não haja diminuição do preço em todos os casos, a proposta maior do APR implica a promoção do acesso ao medicamento enquanto evidências necessárias à decisão administrativa são obtidas.

Assim, acreditamos que os acordos de compartilhamento de risco seriam uma medida sensata a ser cogitada pelo governo, no que tange à assistência farmacêutica a pessoas que vivem com doenças raras. Trata-se de solução que mitiga a justificada necessidade dos governos de terem acesso a evidências robustas sobre eficácia e segurança de medicamentos (dificeis de serem obtidas com medicamentos órfãos), na medida em que pode suscitar um continuum de evidências a acompanhar todo o ciclo de vida de uma tecnologia em saúde, e não mais suas fases iniciais somente.

A luta por evidências robustas para medicamentos órfãos deve ser de todos os envolvidos: pacientes, indústria e governo. Representa racionalidade no gasto em saúde e segurança para o paciente. No entanto, em se tratando de medicamentos órfãos, há um momento oportuno para obtê-las: exatamente o mesmo preconizado pelos acordos de compartilhamento de risco (a Fase IV dos testes clínicos).

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