[su_dropcap]N[/su_dropcap]o post anterior sobre este tema, vimos que a tragédia da talidomida motivou, em grande parte, a edição de uma emenda à lei em vigor desde 1938 nos EUA, que regulava a produção de medicamentos. Vimos também que esta emenda gerou involuntariamente o que ficou conhecido como “medicamentos órfãos”
A Emenda Kefauver-Harris teve por finalidade garantir a eficácia e segurança dos fármacos. Esta emenda afetou a forma como os medicamentos eram produzidos e a tomada de decisões da parte da indústria farmacêutica sobre que medicamentos produzir ou não. Os medicamentos órfãos representavam assim aqueles que a indústria não tinha mais interesse em produzir, dadas as novas regras motivadas pela publicação da emenda.
A nova regulamentação desenvolvida pela Food and Drug Administration (FDA) para dar suporte à Emenda de fato melhorou a segurança e definiu padrões de eficácia para aprovação de medicamentos. Mas ela teve um outro efeito, colateral: fez os custos de desenvolvimento de fármacos dispararem. Outras consequências da mesma foram a queda dos pedidos de patentes e uma crença generalizada a respeito do baixo retorno de investimentos. Ainda que provavelmente medicamentos para doenças raras e aqueles não-patenteáveis também representassem algo desinteressante para a indústria no passado, é somente neste momento que estes e outros medicamentos órfãos se revelam oficialmente desinteressantes para os fabricantes.
Uma curiosidade: em meados da década de 1970, outros produtos eram também considerados “medicamentos órfãos”, a saber:
- as vacinas
- os medicamentos para doenças crônicas
- medicamentos que podem prejudicar o curso de uma gravidez e outros envolvendo a possibilidade de problemas de responsabilidade legal
- os medicamentos para doenças negligenciadas
- os não-patenteáveis
- e os medicamentos para doenças raras.
Ou seja, na realidade, “medicamentos órfãos” podem ser considerados todos aqueles “pouco rentáveis”. Isso fica claro na publicação da Lei de Medicamentos Órfãos (link em inglês) que estabelece um teto de prevalência a separar medicamentos órfãos dos outros. Por esta lei, “medicamento órfão” é todo aquele usado para tratar doenças com menos de 200 mil afetados.
É importante que você saiba que o surgimento da categoria “doenças raras” é produto de um efeito inesperado de uma medida legal (a Emenda Kefauver-Harris, que já mencionamos) e de um processo de mobilização coletiva, que praticamente se dá 20 anos depois. Assim, não procedem alegações de alguns representantes do governo que afirmam que tal fenômeno seria resultado do interesse ganancioso da indústria farmacêutica.
No entanto, há que se reconhecer que, historicamente, a indústria sempre revelou menos interesses por drogas pouco rentáveis. É evidente, por exemplo, que, já anteriormente, a indústria manifestara desinteresse por oncológicos: em 1955, para ser mais preciso.
Já vimos aqui que a Emenda Kefauver-Harris gerou um efeito inesperado: a privação de tratamento para certos grupos de pacientes. De um dia para outro, medicamentos pelos quais a indústria não desejava realizar ensaios clínicos agora obrigatórios deixaram de ser fabricados. Estes abarrotarão as farmácias dos hospitais, como se estivessem “sob custódia”. Ficarão lá guardados, sem uso clínico, estocados.
Mobilização coletiva
Por conta disso, os pacientes começam a se mobilizar. De início individualmente. Posteriormente irão contar com a ação da Food and Drug Administration (agência que controla drogas e alimentos nos EUA) para se constituir em um coletivo, como um meio de remediar a externalidade que o poder público criou, e que tanto prejudicou a vida de pessoas com doenças pouco frequentes naquele momento.
Isso acontecerá mais precisamente em 1982 e 1984, quando a FDA irá promover duas audiências públicas sobre o tema, para as quais os pacientes serão convidados. Um detalhe importante: as “doenças raras”, nesse sentido que hoje conhecemos, surgem em 1983, tipificadas que são na Lei de Medicamentos Órfãos (Orphan Drug Act).
Assim, na velha brincadeira de quem nasceu primeiro, ovo ou galinha, podemos assegurar que primeiramente surgem os medicamentos órfãos (em 1962) e, depois, as doenças raras (em 1983). É também desta data a criação da National Organizaton of Rare Dieseases (NORD), a poderosa coalizão de associações norte-americanas de pessoas que vivem com doenças raras.
Em linhas gerais, tais legislações específicas conferem um status especial a determinados produtos farmacêuticos, justificado pelo fato de possuírem o potencial de diagnosticar, prevenir ou tratar uma doença rara. Assim, na maioria dos casos, consistem de incentivos regulatórios e de desenvolvimento (mecanismos push) combinados a incentivos fiscais e direito à exclusividade de mercado (mecanismos pull). Os mecanismos push têm como foco a redução de custos industriais. Já os mecanismos pull visam a criação de um mercado favorável. Na prática, tais incentivos dão aos patrocinadores de medicamentos órfãos uma espécie de direito de monopólio, o que, entre outras razões, acaba conferindo a estes um preço bastante elevado.
Bom para os pacientes
No entanto, na perspectiva da oferta, estes incentivos têm se revelado bem-sucedidos (dados de 2011).
Nos Estados Unidos, desde o lançamento da Orphan Drug Act, em 1983, cerca de 2 mil produtos receberam a caracterização de “medicamentos órfãos”, enquanto que aproximadamente 340 tiveram autorização para sua comercialização. Na União Européia, desde a implementação da legislação sobre medicamentos órfãos, em 2000, cerca de 744 produtos receberam tal caracterização. Além disso, 62 deles tiveram sua comercialização autorizada. A caracterização de um medicamento como “órfão”, concedida pelo FDA, nos EUA, e pela EMA, no âmbito da União Européia, é o primeiro passo para que o seu patrocinador tenha o medicamento aprovado com base nas legislações específicas daqueles blocos e possa desfrutar dos incentivos especiais anteriormente mencionados.
Um parênteses aqui para te fazer uma pergunta inocente: Você imagina o governo brasileiro estimulando a criação de associações de pacientes para discutir soluções para um imprevisto suscitado pelo Legislativo? Tá, não precisa responder! Mas foi exatamente isso o que aconteceu nos EUA.
Concluindo, pode-se dizer que os incentivos gerados pela Lei de Medicamentos Órfãos nos EUA contribuiram para a produção de medicamentos que de outro modo não seriam lançados no mercado.
No entanto, a solução proposta para tal, materializada na referida Lei parece longe de ser a mais adequada em termos de saúde pública. Desde meados de 1990, a referida lei tem sido criticada. Na verdade, os medicamentos órfãos hoje parecem ter se tornado a ‘galinha dos ovos de ouro’ da indústria farmacêutica, dados os altos preços que podem ser cobrados por estes medicamentos, em tempos do que ficou conhecido como “abismo de patentes” (link em inglês).
De algo que não dava lucro, logo desinteressante de um ponto de vista comercial, a produto altamente lucrativo, dados os incentivos concedidos pelo governo americano para sua fabricação. É por isso que muita gente boa tem pedido para reformular aspectos da Lei dos Medicamentos Órfãos, mas isso é assunto para um próximo post.