Você sabe como surgiram as tais “doenças raras”? (1)

Você deve já ter se perguntado: Como surgem as tais “doenças raras”? Sempre existiram? São invenção da indústria farmacêutica? De todo modo, penso que você deve ter curiosidade de saber como isso tudo começou, pois grande parte de sua vida, como já deve ter percebido, é fortemente determinada por estas duas palavrinhas quase inocentes.

Então vamos começar nossa viagem através desse conceito. Em primeiro lugar, você poderia pensar que “doenças raras” é sinônimo de “doenças pouco frequentes” ou “afecções pouco comuns”.

Na realidade, atualmente, é um conceito um pouco mais preciso que estes, mas ainda vago. Isso porque no Brasil, por exemplo, é qualquer doença que acometa até 65 a cada 100 mil indivíduos, ou até 1,3 pessoas a cada 2 mil. Na Europa, é aquela que atinge uma pessoa a cada 2 mil. Já, nos EUA, é qualquer doença que afete menos de 200 mil pessoas.

Para começo de conversa, você precisa saber que, antes de meados da década de 1970, ninguém poderia imaginar que milhares de patologias totalmente distintas (hoje algo entre 6 mil a 8 mil) poderiam ser agrupadas em uma categoria comum (“doenças raras”) somente tendo a baixa frequência a lhes unir.

Por exemplo, sabemos que, entre as décadas de 1950 e 1960, a expressão “doenças raras”, assim no plural, seria empregada somente para agrupar doenças em função de um órgão, ou de uma característica biológica ou clínica partilhada. Exemplos: doenças raras do esqueleto, doenças raras da pele ou complicações raras dos problemas cardíacos. E qual a função deste registro de doenças pouco frequentes na época? Auxiliar o clínico na identificação das mesmas, caso topasse com alguma delas em sua prática.

A passagem da medicina artesanal para a medicina industrial

O surgimento do conceito de “doenças raras”, tal como as concebemos hoje (ou seja, um agrupamento de doenças as mais variadas, tendo em comum somente sua raridade) se dá em um contexto de transformações substanciais na prática médica, ocorridas a partir da década de 1970. Há quem fale até mesmo na transição de uma medicina artesanal para uma industrial. E como se daria isso?

Se você se debruça sobre a história da medicina contemporânea ocidental pode constatar uma série de fenômenos convergentes e que poderiam ter modificado o estatuto dos pequenos números na prática médica, em movimento primeiramente iniciado nos Estados Unidos.

As transformações observadas pela medicina em meados do século passado geraram fatores predisponentes (mas não determinantes, como se verá mais adiante) à crescente marginalização das doenças pouco prevalentes.

O primeiro foi certa ênfase na estatística e na quantificação para a construção de evidências acerca da eficácia de tratamentos, como já mencionamos acima. O segundo foi o rearranjo institucional da Medicina, a partir do surgimento da bioética, com seus impactos notáveis sobre o conceito de “responsabilidade médica”.

Marginalização das doenças pouco frequentes pelas estatísticas

De fato, desde a década de 1970, observa-se um emprego crescente de métodos quantitativos na medicina, especialmente para a avaliação da eficácia de tratamentos. Assim, pode-se inferir que, a partir deste momento, as doenças pouco frequentes passem a ser marginalizadas, pelo prestígio crescente conferido ao emprego de ferramentas estatísticas na medicina, que naturalmente passará a se interessar por um número relevante de casos da mesma doença, maior do que aquele que uma doença pouco frequente poderia oferecer.

Marginalização das doenças pouco frequentes por uma nova divisão social do trabalho médico

Em meados do século passado, começa a se observar uma mudança do conceito de “responsabilidade médica”, em movimento em grande parte estimulado pelo surgimento da Bioética. Neste momento, os pesquisadores clínicos perdem algo de seu prestígio e os médicos vêem suas atividades profissionais agora reguladas por terceiros, Todo um aparelho burocrático é montado para regular a atividade médica, com predileção maior por situações frequentes, previsíveis e bem conhecidas.

Dessa situação, a divisão de tarefas que passa a operar na ordem médica é de natureza complexa, com ênfase na padronização de práticas e de produtos, características da produção de massa. Padronização de procedimentos que naturalmente se debruçará com mais interesse sobre doenças mais frequentes, dadas as dificuldades operacionais de se padronizar procedimentos em situações pouco frequentes.

É quando surge também a Medicina Baseada em Evidências, que nos dias de hoje assume um papel crucial e muitas vezes nefasto sobre a vida dos portadores de doenças raras, como iremos ver ao longo destes posts que aqui publicaremos.

Importante ressaltar também que a indústria farmacêutica (e a medicina) vive na década de 1970 uma transição importante, com o incremento de investimentos em tecnologia. E quem fala em indústria (qualquer que seja ela) fala em produção em massa. E produção em massa tem pouco a ver com o ocasional, o esporádico, o pouco frequente. Neste caso estaríamos falando de produção artesanal, não é mesmo?

Daí podemos inferir o surgimento de maior pragmatismo com relação a decisões sobre que medicamentos produzir. Passa a ficar desinteressante para a indústria produzir medicamentos e outras tecnologias de saúde para ‘meia dúzia de gatos pingados’.

Vê-se aqui que, desde meados do século passado, vão se dando as condições que culminarão em certo desprestígio de doenças pouco frequentes, em movimento iniciado pelos Estados Unidos, que depois alcançará o mundo. Mas a razão definitiva e crucial para o surgimento da expressão “doenças raras” não será nenhuma destas mencionadas. Vai ficar para nosso próximo post!

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