Cláudio Cordovil

Síndrome de Rett: Aceitar é perder

Rett

Por Aline Voigt Nadolni (Colaboradora convidada)

Outubro é o mês internacional de conscientização sobre a Síndrome de Rett, uma desordem neurológica e de causa genética. A maioria das pessoas com Rett não é capaz de falar, andar e ter uso funcional das mãos  e, comumente, apresentam epilepsia e problemas gastrointestinais, respiratórios e ortopédicos. Sendo assim, essas pessoas parecem estar presas a um corpo que não responde às suas vontades.

Com o aumento do fluxo de informações sobre Rett que ocorre neste mês, é importante estarmos atentos para o fato de que algumas delas são equivocadas e capazes de impactar, de forma negativa, a maneira como é feita a atenção à pessoa com Rett. A informação que eu considero mais impactante – e que precisa ser corrigida com urgência – é a afirmativa de que a Síndrome de Rett é uma doença degenerativa.

Após conviver com altos e baixos e ver um renascimento de minha filha, lhes afirmo que não se trata de uma síndrome degenerativa. No ano de 2013 ela entrou em estado de mal epilético. Depois de sete meses de sucessivas internações e todo tipo de intervenção optamos por uma gastrostomia e levamos Maria para casa. Ela não era capaz de engolir saliva, sustentar a cabeça e praticamente não esboçava reação alguma. Hoje ela distribui sorrisos e se supera a cada dia. Não conseguimos reverter toda a devastação daquele período. Mas, quem a viu naquela época e quem a vê hoje, não tem dúvidas de que sua melhora não é compatível com doenças degenerativas. Não foi fácil. Exigiu dedicação, equilíbrio e cumplicidade imensa entre nós, cuidadores, médicos e terapeutas de diferentes especialidades. Mas, foi possível.

É consenso que a Síndrome de Rett traz perdas importantes. Porém, passado o estágio de regressão psicomotora na infância, o que se observa é um longo período no qual a atenção clínica interdisciplinar e um intenso trabalho terapêutico são capazes de proporcionar uma boa qualidade de vida à pessoa com Rett, possibilitando sua chegada à quinta e até a sexta décadas de vida.

Maria não é caso isolado. A história se repete, felizmente. Compreendo que relatos de caso possam não ser suficientes para combater um mito tão difundido. Então, é preciso olhar para o que vem acontecendo no mundo científico. Desde que, em 2007, os sintomas da Síndrome foram revertidos em modelos animais, os estudos sobre a Rett ganharam um grande impulso no sentido de buscar uma cura. No referido estudo já se tinha a ideia de que Rett era mais uma severa desordem de desenvolvimento do que uma doença degenerativa e que, apesar dos neurônios terem morfologia diferenciada, não havia morte neuronal.

Os testes conseguiram reverter significativamente os sintomas da Síndrome em ratos já adultos, através do restabelecimento de níveis apropriados de proteína MeCP2, rebatendo a ideia de dano neuronal irreversível. Atualmente, várias frentes de pesquisa estão em andamento. Desde a ciência básica da Síndrome, o uso de modelos com células pluripotentes, passando por testes de medicamentos, chegando à terapia genética, reativação do gene MECP2 e reposição da proteína MeCP2.

O último estudo publicado une técnicas de edição genética na criação de “minigenes” que, quando usados em terapia genética em modelos animais, amenizaram os sintomas de Rett. Os resultados dos testes em modelos animais e os resultados de testes clínicos (como o trofinetide) mostram, de forma cada vez mais clara, que os sintomas da Síndrome estão mais relacionados a problemas de “software” (conexões neuronais) do que de “hardware”(estrutura dos neurônios) e que, mesmo após a manifestação dos sintomas, é possível amenizá-los ou revertê-los de forma a impactar significativamente a vida da pessoa com Rett e de sua família.

Infelizmente, a ideia de doença degenerativa é bastante difundida e combate-la é fundamental, mesmo nos dias atuais em que não temos nenhum tratamento aprovado para Rett. Na prática, grande parte dos profissionais de saúde do Brasil associam Rett a perdas irreparáveis e, o que é pior, tendem a encarar como normais os sintomas que são comuns. É fundamental ter em mente que entre “comum” e “normal” existe um grande abismo que separa o “continuar lutando” do “conformar-se”. Esta conduta do “Rett é assim mesmo!” é muito danosa para nossos filhos, pois muita coisa deixa de ser feita!

Enquanto a cura não vem, temos que nos libertar destas amarras. Sempre há o que fazer para melhorar a vida das pessoas com Rett. Sempre há o que fazer para lhes dar mais conforto e confiança e para manter seu corpo apto para se beneficiar com um futuro tratamento. Isso precisa ser um mantra pois é uma questão de respeito, humanidade e compaixão pelos pacientes e seus familiares! Precisamos com urgência de uma mudança na forma como tratamos as pessoas com esta síndrome tão cruel. E essa mudança tem que começar HOJE!

Movidos pela esperança de dias com menos sofrimento, famílias brasileiras iniciaram, neste ano, um movimento de apoio à Rett Syndrome Research Trust (RSRT), nos Estados Unidos, que é a entidade de maior destaque hoje, no que diz respeito a programas de pesquisa para cura da Síndrome de Rett. O movimento já se iniciou, pois, apesar de contar com pesquisadores excelentes, o Brasil infelizmente não possui pesquisas voltadas para Rett, da forma que acontece lá fora. Isto é sinal de que o que as famílias almejam é, mais do que um medicamento capaz de trazer melhoras momentâneas ou em sintomas isolados, um tratamento capaz de trazer melhoras significativas e sustentáveis.

Então, estas famílias se juntaram a muitas outras ao redor do mundo e enviaram itens para leilões de arrecadação de fundos à RSRT e criaram campanhas na plataforma Rett Give. No Rio de Janeiro, cerca de 200 familiares e amigos de meninas e mulheres com Rett se uniram à Corrida e Caminhada Cure Rett, que foi uma fantástica demonstração de amor e solidariedade. O valor arrecadado com a venda do kit de corrida será todo revertido para pesquisa.

Corrida Cure Rett.

Apesar de me sentir numa luta inglória com relatos de sofrimento de várias famílias brasileiras, sinto muita felicidade quando encontro profissionais de saúde que também querem quebrar paradigmas, olhando o diagnóstico como um balizador, não como uma sentença. É assim que tem que ser! Quem chegou a pensar que um dia, num congresso europeu, haveria uma palestra intitulada “Recuperação da marcha na Síndrome de Rett”? Quem imagina ser possível uma mulher Rett chegar aos 60 anos caminhando? E isso acontece, e dá esperança, e dá energia às famílias brasileiras.

Existe um aspecto muito triste nessa questão toda, que é a falta de recursos das famílias, a redução de verbas para a ciência, o desmonte da saúde no Brasil, as dificuldades de implementação de Centros de referência para Tratamento de Doenças Raras e as grandes instituições que não aceitam pacientes com Rett para tratamento terapêutico, alegando que elas “não precisam porque Rett é assim mesmo!”. Mas isso são outras histórias… Por ora, já ganharemos muito se difundirmos a noção de que Rett não é degenerativa; que o “comum” não é “normal” e que, quando se trata de Rett, aceitar é perder.

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