A imprensa falada, escrita e televisada tem divulgado o desespero de doentes raros e seus familiares que, de uma hora para outra, há alguns meses, estão sem receber medicamentos a eles assegurados por ordem judicial. Recusar cumprir ordem judicial costumava ser crime, em governos legítimos e democráticos. Mas este não é o tema do post aqui.
A esta altura, você já sabe o que é a CONITEC e o que ela faz. Não se pode dizer que a CONITEC seja fraca em propaganda. Se não souber ainda, clique aqui.
Mas vamos refrescar sua memória: Criada em 2011, por meio de Lei Federal e regulamentada por Decreto Presidencial, a Conitec estabeleceu novas regras para incorporação de tecnologias em saúde no SUS. Através desta Lei Federal (Lei 12.401) a Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) foi institucionalizada como “critério indispensável para tomada de decisão sobre a incorporação de tecnologias em saúde no SUS”.
Resumindo bem, ATS é uma avaliação sistemática de propriedades, efeitos e/ou impactos de tecnologias de saúde. Seu principal propósito é auxiliar tomadores de decisão na definição de políticas de saúde. É parte de um movimento que ficou conhecido como Medicina Baseada em Evidências, que também já abordamos neste blog.
Mas o que você precisa entender com muita clareza é que originalmente as ATS foram criadas para avaliações envolvendo grandes populações acometidas por esta ou aquela enfermidade. As ATS convencionais, tais como as empregadas pela CONITEC, não servem para deliberações envolvendo medicamentos órfãos!!!! Esta é uma afirmação confirmada por vários estudiosos do tema na literatura científica internacional. Assim, a CONITEC usa UM MÉTODO INADEQUADO para decidir se deve incorporar o seu medicamento órfão ao SUS! Entende agora por que você precisa judicializar?
Ainda não entendeu? Então veja este vídeo de evento que coordenamos em março de 2014 em São Paulo, para discutir formas alternativas de acesso a medicamentos órfãos! Naquele tempo, nem sonhávamos em trabalhar na Fiocruz. Sabe do que mais? Na ocasião, convidamos a então diretora da CONITEC, Clarice Petramale, para participar das mesas. Ela foi ! Logo, não pode alegar desconhecimento das afirmações que ora fazemos neste post!
Aqui vão seis razões (entre muitas outras) pelas quais os métodos convencionais de ATS NÃO SERVEM para decidir sobre a incorporação de medicamentos órfãos aos sistemas públicos de saúde.
- Medicamentos órfãos diferem dos medicamentos convencionais, na medida em que são usados para tratar condições para as quais na maioria dos casos não há tratamentos alternativos disponíveis. Como as ATS exigem a comparação com outra medicação para a mesma indicação (e no caso das doenças raras ela muitas vezes inexiste), a avaliação fica totalmente prejudicada.
- Os custos de Pesquisa e Desenvolvimento destes medicamentos para doenças raras têm que ser cobertos por um número limitado de pacientes a nível mundial, elevando os custos de aquisição por paciente para qualquer terapia bem-sucedida. Por isso que tais medicamentos são de alto custo! São destinados a uma pequena clientela. Pense numa gravura com série numerada, de 1 a 100, de um grande artista plástico, para ser vendida a 100 felizardos. Vai custar caro, né? Com os medicamentos para doenças raras, é mais ou menos a mesma coisa.
No entanto, você precisa saber que o IMPACTO ORÇAMENTÁRIO de tais medicamentos ainda é baixo, neste momento em que escrevo para vocês. Em 2025, pode ser que a coisa mude, com a chegada de muito mais medicamentos órfãos anualmente ao mercado, que é o que os analistas prevêem. Mas o que nos interessa é o hoje! E hoje qualquer gestor que lhe informar que estes medicamentos representam um grande impacto orçamentário nas verbas destinadas a medicamentos em geral estará mentindo ! Em países em que se fazem estudos sobre o tema, o impacto tem sido baixissimo. No Brasil não há estudos sobre isso. Os burocratas brasileiros falam de orelhada! Ideologia, manja? Tipo Cazuza? Nos próximos dias, vamos voltar ao tema do impacto orçamentário, que já tratamos nesse blog.
3) Altos custos de aquisição (compra) elevam os limiares de razão de custoefetividade incremental (RCEI ou ICER, em inglês) para medicamentos órfãos, exponencialmente (ou em algumas ordens de grandeza). Consequentemente, ainda que inovadores e eficazes, tais tratamentos quase sempre não observam os padrões em termos de limiares (tetos) de custo-efetividade empregados em ATS. Isso deixa os governos à vontade para recusar-se a incorporar tais medicamentos em seus sistemas públicos de saúde, se empregarem métodos puramente contábeis para tal.
Mas a saúde humana exige a contemplação de outros valores, que não somente os financeiros. É por razões humanitárias, muitas vezes, que os sistemas de saúde mais respeitados do mundo incorporam medicamentos órfãos. Na ponta do lápis, “fazendo continha”, jamais serão incorporados, pois na maioria dos casos não são custoefetivos.
4. A ausência de medicamento comparador, já mencionada no item 1, pode ‘inchar’ o RCEI, na medida em que nestes casos O CUSTO DO TRATAMENTO está sendo comparado ao custo de NENHUM tratamento. Faz a conta aí! “Quanto é dois milhões de reais menos zero? Dois milhões de reais!” Inviável! Diz o sistema público de saúde que acaba de te pregar uma peça!
5. Embora a ATS seja um processo “baseado em evidências”, a base de evidências para medicamentos órfãos é usualmente mais limitada no momento em que se vai requerer a autorização de comercialização do medicamento na ANVISA, por exemplo, devido à raridade daquela condição clínica.
As evidências só ‘crescerão’ com o medicamento sendo empregado já em reais condições de uso. É por isso que os países que querem efetivamente respeitar o direito destes pacientes celebram acordos com os laboratórios para que as evidências sejam entregues dois anos após a comercialização do medicamento, por exemplo, em fase 4 dos testes clínicos. Não é o caso do Brasil.
Desta forma, toda vez que um estudo clínico entrar na CONITEC com um número de pessoas envolvidas nos testes pequeno (Pudera! É uma doença rara!), ela sempre poderá dizer que o estudo não possui “robustez estatística” e assim seu medicamento não será incorporado ao sistema público de saúde! Mais uma pegadinha sobre o pobre paciente raro.
Kruer e Steiner (2008) observam que a MBE (e a ATS) é particularmente recomendada para detectar diferenças em grandes coorte s. Além disso, segundo estes autores, necessário seria entender o que a MBE classifica como ‘evidências’. No caso em questão, evidências estão associadas à ‘robustez estatística’, o que, em se tratando de doenças raras, é algo difícil de se obter, dado o tamanho das populações envolvidas.
6. Os métodos de ATS convencionais frequentemente não levam adequadamente em conta valores sociais, tais como o fato de os contribuintes e cidadãos estarem dispostos a pagar mais para ajudar pacientes com condições genéticas raras, graves, autolimitantes e ameaçadoras, para as quais não existe alternativa de tratamento.
Dito isso, nada indica que a CONITEC empregue métodos de ATS diferenciados para doenças raras em suas decisões, com os dados a que temos acesso. Para concluirmos algo diferente disso, deveriam autorizar que pesquisadores independentes, como eu, acompanhassem o processo de deliberação acerca de um medicamento órfão in loco. Já solicitamos isso publicamente, em evento que a CONITEC participou. Não tivemos resposta.
Outra coisa que precisa ser dita com todas as letras é que as Avaliações de Tecnologias em Saúde são fundamentais e indispensáveis para tomadas de decisão acerca de doenças que acometem um grande número de pessoas. Infarto, hipertensão, diabetes, para tudo isso a ATS convencional é uma maravilha!
Para as doenças raras, não! É minha crença que a razão pela qual a CONITEC em seis anos de existência deve ter incorporado uns 10 pífios medicamentos específicos para raras ao SUS é o emprego de metodologia inadequada, que te leva a judicializar. Para saber se é certa, precisamos investigar, in loco.
Excelente ponto de vista. Como utilizar estes método padrão para avaliar a incorporação de tecnologias para doenças que não são o padrão.
De fato, será necessária uma mudança legal para prever este tipo de exceção às avaliações da Conitec. Aí a garantia fica explícita.
Agradecemos seu comentário, Marcus !