Cláudio Cordovil

Radar dos Raros: Hora da verdade do ‘advocacy’?

Na semana passada, noticiamos aqui o lançamento da segunda edição do relatório Radar dos Raros, que dá conta da performance do Congresso Nacional no que se refere a doenças raras ao longo de 20 anos. Naquela ocasião, o jornal Correio Braziliense promoveu o CB Talks – Radar dos Raros, para debater os resultados da enquete acima citada.

Hoje pretendo compartilhar com vocês algumas lições que podemos tirar a respeito da situação das doenças raras no Legislativo, a partir do que se viu e ouviu no CB Talks – Radar dos Raros. Como deve ser de conhecimento de todos sou pesquisador em saúde pública da Fiocruz, da área de Ciências Sociais aplicadas.

E é nessa perspectiva que vou compartilhar minhas impressões com você. Observe que dados mais precisos sobre o que vou falar necessitam de pesquisas empíricas que naturalmente ainda não foram realizadas. Por isso entenda minhas colocações aqui como impressões de alguém dotado de uma boa imaginação sociológica. A imaginação sociológica, segundo Wright Mills, representa a conexão entre os fenômenos para além da experiência individual com as instituições com as quais as pessoas convivem.

Talvez convenha lembrar a desprezível resultante de tanto esforço de advocacy promovida pela indústria e pelas ONGs com generosas dotações de verbas privadas, seja para influenciar o Legislativo ou a sociedade em geral no que alguns costumam definir como atividades de lobbying. Uma galinha dos ovos de ouro.

Assim, constata-se que ao longo de 20 anos de atuação, o Congresso Nacional aprovou 0,3% de projetos de lei ligados a doenças raras quando se leva em consideração todos os PL destinados à saúde. Em números mais precisos isso quer dizer que apenas oito projetos de lei transformaram-se em leis, sendo que destes cinco foram para a criação de datas de conscientização para esta ou aquela doença.

Os mais jovens talvez não se lembrem da mítica Sucupira, governada pelo populista Odorico Paraguassu, da novela televisiva O Bem Amado. Se o Brasil fosse Sucupira, teríamos muito que celebrar com cinco datas comemorativas para doenças raras entre oito projetos de lei aprovados. Avante, Sucupira!

As pessoas que vivem com doenças raras, seus cuidadores familiares e as entidades que alegam os representar, a meu ver, padecem de certa alienação política. Esta é como aqueles antolhos que colocamos nos animais de carga para evitar que desviem o olhar para os lados enquanto cavalgam. Retiremos os antolhos que nos limitam a visão panorâmica por alguns instantes. Ao invés da árvore, miremos a floresta que a cerca.

Fonte: Radar dos Raros – Reprodução

BBB Premium

Nosso país tem um Legislativo comandado por três bancadas: Bala, Boi e Bíblia (BBB).

Ao redor destes temas gravitam majoritariamente os interesses dos nobres deputados e senadores, que disputam quase a tapa verbas parlamentares para agradar suas bases eleitorais e chantageiam o governo federal em busca de cargos no Executivo.

Pois bem, é com esse Congresso que os doentes raros e seus familiares precisam contar para aprovar leis que os beneficiem. Esse é resumidamente o contexto macro.

É fundamental que os pacientes e seus familiares abram mão do auto-engano nessa hora. O auto-engano é uma forma de mentir para si mesmo. Deixem de lado aquela selfie bonita com o deputado ou senador e reflitam um pouco. E sobretudo olhem para a floresta e não para a árvore.

Agora vamos descer às minúcias do referido debate. Em dado momento, o deputado Frederico Westphalen reage a uma pergunta dos moderadores sobre tal fiasco legislativo acima mencionado.

Na avaliação do deputado, a sociedade conferiu a ele e a seus colegas uma procuração para representar seus interesses na Câmara Federal. Está certo. No entanto, em sua visão, o que falta é maior mobilização dos interessados na aprovação de leis para procurar seus representantes nas casas legislativas e exercer alguma pressão.

Eu tendo a concordar com o deputado, mas esta tarefa é um tanto hercúlea para quem mora nos grandes centros urbanos do país (e mesmo nos grotões) e precisaria se deslocar com passagens aéreas a preços astronomicos do próprio bolso para fazer valer seus interesses.

Sobraria então para a industria farmaceutica procurá-los e fazer valer os seus interesses (os dela mesma) . E é o que acontece. Mas será que os laboratórios têm a mesma legitimidade dos pacientes para falar de suas mazelas?

Um agravante: A concentração das ONGs em federações

A organização em coalizões desta natureza a meu ver só permite tratar com os representantes no Congresso de temas ‘no atacado’, quando este ou aquele líder das mesmas viaja a Brasilia, não raro marcando reuniões em gabinetes das quais seus filiados não tomam sequer conhecimento. Especialmente em uma delas.

As associações dentro destas coalizões me parece que se situam em uma zona de conforto. “Eu fico no sofá porque a Federação está zelando pelos meus interesses”. Em sua inocência, acreditam que as lideranças destas federações (SEJAM ELAS QUAIS FOREM!) irão tratar com minúcia de suas necessidades, ‘no varejo’. E desmobilizam-se.

Não me parece claro o benefício concreto para estas associações em participar destas federações. Isso deveria ser objeto de um estudo independente, naturalmente.

A não ser aumentar o poder de barganha de seus lideres, quando estes não estão se digladiando em uma guerra fratricida no melhor estilo “dividir para conquistar”, que é o que hoje acontece, em movimento insuflado proativamente por uma das duas federações mencionadas.

O fiasco legislativo pode ser em parte atribuído a esta guerra fratricida entre Federações. Dividir para conquistar tem seu preço para os peões deste tabuleiro. E efeitos colaterais importantes para o coletivo.

Deputados não são experts em doenças raras

Um elemento de prova deste meu raciocínio se deu no CB Talks quando uma espectadora virtual indagou à mesa sobre o porquê de a discussão de Projeto de Lei que potencialmente beneficiaria pacientes com a Síndrome de Ehlers-Danlos ter sido retirado da pauta.

Ao que o deputado Diego Garcia respondeu. Fora retirada da pauta por total desconhecimento dos deputados acerca da temática. Mas voltará à baila.

Doenças raras são assunto de alguma complexidade e não se deve esperar que deputados da bancada BBB Premium, assoberbados com bois, balas e bíblias, e de outras inclinações os dominem.

Haveria que ter pressão dos pacientes in loco para esclarecê-los de suas dificuldades. Estas associações talvez estivessem acreditando que as Federações ou a industria estariam cumprindo este papel e se acomodaram.

Não estão; a julgar pelo pífio desempenho do Congresso no tema. Oito projetos, cinco de datas festivas. Sucupira rules!

O assunto vai longe e já me alonguei aqui o suficiente, correndo o risco de perder o interesse do leitor dada a extensão do texto. Voltaremos a discutir o tema nos próximos posts.

Spoiler: Comentaremos a fala do presidente do SIndusfarma, Nelson Mussolini, que, a pretexto de discutir o PL das Pesquisas Clinicas, afirmou que ele sofre “embates ideologicos importantes”, especialmente da parte dos representantes do Conselho Nacional de Saúde.

Como nos lembra o intelectual Terry Eagleton em boutade bem humorada, “ideologia é como mau hálito: Só o outro tem”. Ou talvez como o ronco.



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