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Cláudio Cordovil

Como fazer as doenças raras entrarem na Saúde Coletiva?

saúde coletiva, SUS

 

Quem depende do Sistema Único de Saúde , tendo uma doença rara ou sendo familiar de uma pessoa vivendo com ela, tende a desconhecer a cultura política que plasmou o SUS na década de 1980. Por isso talvez não compreenda parte importante dos problemas que enfrenta quando precisa recorrer a ele, nesta condição.

Na verdade, o SUS é um dos poucos sistemas de saúde do mundo que aceitou o desafio de oferecer cobertura universal em saúde para mais de 100 milhões de habitantes. Em alguns pontos é bem-sucedido neste intento (como na atenção básica), mas em outros talvez deixe a desejar, como no setor de alta complexidade, que em algum momento será demandado pelos portadores de doenças raras que não possam arcar com os custos dos planos de saúde.

O SUS na realidade é fruto do que ficou conhecido como Reforma Sanitária e que nada mais foi do que um projeto de reforma política do País, a partir do vetor da saúde, em contexto de resistência contra a ditadura. Suas bases teóricas, metodológicas e operacionais assentam-se no que se conhece como Saúde Coletiva, uma jabuticaba, produto tipicamente nacional, por assim dizer, que apresenta diferenças com aquele campo de que provavelmente você já ouviu falar: a Saúde Pública.

Assim de forma bem resumida, podemos dizer que a Saúde Coletiva enquanto campo de estudos e pesquisas se baseia em um tripé: Epidemiologia, Ciências Sociais e Avaliação de Políticas Publicas. E aí começam os problemas para doentes raros.

Quando se trata de Epidemiologia, temos limitações em ver os interesses dos doentes raros contemplados de forma adequada porque a epidemiologia convencionalmente é uma ciência de grandes números! E os raros em cada uma de suas doenças são em pequeno número, não é mesmo?

Em termos de Ciencias Sociais, o problema é um pouco diferente. Aqui,  tem a ver com as abordagens usualmente empregadas para investigar fenômenos sociais em Saúde. Em Ciências Sociais da Saúde, três abordagens teóricas são mais usuais. Mas existem sérias limitações nestas abordagens que têm dominado a análise sociológica convencional das transformações dos cuidados em saúde (economia política/Marx, dominância profissional/Talcott Parsons e governamentalidade/Foucault). Embora úteis para evidenciar as relações entre poder, desigualdade e dominação e reivindicar justiça distributiva, tais abordagens convencionais se revelam insuficientes para estudar as mútuas relações entre conhecimento/inovação e organização dos sistemas de saúde, que é o caso, quando se pensa em doenças raras.

Finalmente, temos o campo das Avaliações de Políticas Públicas como parte do tripé que compôe a tal da Saúde Coletiva. Aqui, os portadores de doenças raras podem ter alguma esperança de ver estudos interessantes que lhes esclareçam sobre limitações e vantagens das políticas relacionadas às doenças raras no Brasil, como a Portaria 199.  O professor Natan Monsores, colaborador deste blog, escreveu com Adriana Modesto um interessante artigo sobre raras com esta perspectiva.  Mas, como as políticas públicas sobre raras ainda são relativamente recentes no País, ainda carecemos de mais artigos nesta perspectiva.

Em parte por conta desta cultura política que funda o SUS, os doentes raros enfrentarão desafios na efetiva consolidação de seus direitos. O campo do acesso a medicamentos de alto custo (para raras a grande maioria dos medicamentos é de alto custo) é altamente problemático por uma certa visão empobrecida do que seja “valor” por parte das autoridades regulatórias (mas essa conversa fica para depois).

Enfim, eu diria que, somente com novas perspectivas teóricas, ainda não dominantes no Brasil ou sequer presentes na Saúde Coletiva, os doentes raros e seus familiares, assim como a comunidade científica, verão o tema que lhes diz respeito adequadamente tratado em termos epistemológicos e sociológicos.  Este blog representa o primeiro passo mais sistemático neste sentido.

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