O Comitê de Deus: Ele decide quem deve viver e quem deve morrer

Em 9 de novembro de 1962, a já extinta revista Life estampou em suas páginas uma matéria impactante, de autoria de Shana Alexander.

Ela retratava o Admissions and Policy Committee (Comitê de Admissões e Política) do Centro de Hemodiálise de Seattle. O Comitê fora criado naquele ano para selecionar as poucas pessoas que seriam admitidas na nova e minúscula unidade de hemodiálise criada pelo Dr. Belding Scribner, o inventor do shunt arteriovenoso.

O comitê era composto por sete membros anônimos: um pastor, um advogado, um empresário, uma dona de casa, um líder sindical e dois médicos.

Alguém mais espirituoso o apelidara de “Comitê de Deus”.

Vale citar o bioeticista Albert Jonsen, a seu respeito:

Não sei quem apelidou esse grupo de Comitê de Deus, mas não foi Shana Alexander, que escreveu o artigo na LIFE. Provavelmente deveria parecer algo espirituoso na época, uma maneira de aliviar um dever sombrio, mas é um apelido estranho. Ele escolhe uma característica do Deus dos cristãos e judeus: aquele que dá vida e que também a tira. No entanto, ignora outras características desse Deus: alguém que é compassivo, que se preocupa amorosamente com o indivíduo e que é um Deus pessoal, e não alguém com identidade ocultada pelo anonimato.

Todos os meses, o Comitê de Deus recebia uma pilha de tabelas sobre pessoas com doença renal em estágio terminal. Uma avaliação médica prévia já os tinha classificado como candidatos à hemodiálise. A tarefa do Comitê era pinçar um ou dois sortudos (de uma dúzia), para ocupar os lugares disponíveis. Os outros eram deixados para morrer.

Abaixo, um trecho verídico dos diálogos ali travados:


ADVOGADO: Os médicos nos disseram que em breve terão mais duas vagas no Kidney Center e apresentaram uma lista de cinco candidatos para escolhermos.

DONA DE CASA: Todos estão igualmente doentes?

Dr. MURRAY: (John A. Murray, MD, Diretor Médico do Kidney Center.) Os pacientes número um e número cinco podem durar apenas mais algumas semanas. Os outros provavelmente podem demorar um pouco mais. Porém, para fins de sua seleção, todos os cinco casos devem ser considerados de igual urgência, porque nenhum deles pode aguentar até que outra instalação de tratamento se torne disponível.

ADVOGADO: Alguma idéia inicial?

BANQUEIRO: Por que não começamos com o número um – a dona de casa de Walla Walla.

CIRURGIÃO: Essa paciente não podia se deslocar de Walla Walla para o tratamento, então teria que encontrar uma maneira de mudar com sua família para Seattle.

BANQUEIRO: Exatamente o que quero dizer. Diz aqui que o marido não tem dinheiro para fazer essa mudança.

ADVOGADO: Então você está propondo que eliminemos essa candidata com o argumento de que ela não poderia aceitar o tratamento se este fosse oferecido?

PASTOR: Como podemos comparar uma situação familiar onde existem dois filhos, como a dessa mulher em Walla Walla, com uma família de seis filhos, como o paciente número quatro – o trabalhador da indústria de aviação?

SERVIDOR PÚBLICO: Mas temos certeza de que o trabalhador da indústria da aviação pode ser reabilitado? Observem que ele já está doente demais para trabalhar, enquanto o número dois e o número cinco, o químico e o contador, ainda são capazes de continuar.

LÍDER SINDICAL: Sei, por experiência própria, que a empresa de aeronaves onde esse homem trabalha fará todo o possível para reabilitar um empregado com incapacidade.

DONA DE CASA: Se ainda estamos considerando os homens com o maior potencial de prestar serviços à sociedade, acho que devemos considerar que o químico e o contador têm os melhores níveis de instrução entre os cinco candidatos.

CIRURGIÃO: Como vocês se sentem em relação ao número três _ o microempresário com três filhos? Estou impressionado com o fato de o médico ter se interessado pelo seu caso a ponto de mencionar que esse homem é atuante no trabalho da igreja. Isso é uma indicação para mim de caráter e força moral.

DONA DE CASA: O que certamente o ajudaria a se adequar às exigências do tratamento….

ADVOGADO: Isso também o ajudaria a suportar uma morte lenta….

SERVIDOR PÚBLICO: Mas isso iria parecer imputar uma penalidade àqueles mais prudentes….

PASTOR: E essas duas famílias também têm três filhos.

LÍDER SINDICAL: Pelo bem das crianças, precisamos contar com a oportunidade dos pais remanescentes de se casar novamente, e uma mulher com três filhos tem mais chances de encontrar um novo marido do que uma viúva muito jovem com seis filhos.

CIRURGIÃO: Como podemos ter certeza disso? ….

Ao final de 90 minutos de discussão, dois pacientes foram escolhidos: um foi o trabalhador na indústria de aviação. Outro era o microempresário. Os restantes… Bem, você pode imaginar o que aconteceu com eles.


As decisões do Comitê de Deus eram tomadas com base em um suposto “valor social” dos pacientes, uma avaliação prévia e um tanto subjetiva da contribuição daqueles desafortunados para a sociedade.

Mais tarde, a Bioética iria denunciar a desumanidade daqueles procedimentos.

Após vários anos desse trabalho angustiante, as emendas à Lei de Seguridade Social norte-americana forneceram apoio financeiro para diálise e transplante renal, permitindo ao Comitê de Deus uma despedida honrosa.

Assim, em 1972, no governo Nixon, o peso sobre os ombros do Comitê de Deus diminuiu.

Foi criado o End Stage Renal Disease Program (ESRD), que universalizou  a hemodiálise para todos aqueles cidadãos beneficiários da seguridade social, vinculado ao Medicare.

Este último é o seguro de saúde norte-americano. É voltado para pessoas com doença renal crônica elegíveis para a Seguridade Social, ou com mais de 65 anos. ou pessoas mais jovens vivendo com deficiências ou acometidas pela Esclerose Lateral Amiotrófica. Em 2018, o Medicare atendia a cerca de 60 milhões de norte-americanos.

Se o Comitê de Deus original deixou de existir, ele ainda opera, impune e por debaixo dos panos, com apoio oficial generoso, em muitos países que optaram por não revelar detalhadamente o fundamento de suas decisões acerca da não-recomendação deste ou daquele tratamento para incorporação a um dado sistema público de saúde.

É por isso que transparência é fundamental. nestes processos. Para que os repugnantes Comitês de Deus sejam uma página virada da nossa história.

O Comitê de Deus poderia figurar entre os contos mais fabulosos de Franz Kafka. Ou de meu finado amigo, Victor Giudice, com quem trabalhei no Jornal do Brasil, e que revelou toda a desumanidade da flexibilização do trabalho e a coisificação de seres humanos, em seu fabuloso conto premiadíssimo “O Arquivo” (video).

O Comitê de Deus, em suas versões passadas e presentes, nada mais faz do que coisificar seres humanos, e a eles atribuir um preço. Resta-nos reivindicar que faça isso com alguma decência.

E transparência.

 

2 comentários em “O Comitê de Deus: Ele decide quem deve viver e quem deve morrer”

  1. Esse é um tema absolutamente relevante e que dificilmente chegará a termo em nossa sociedade. Considero tão difícil quanto à questão da eutanásia.
    Vivemos em uma sociedade que tem imensos paradoxos. Veja, por exemplo, a pandemia do Covid19: enquanto alguns advogam que precisamos preservar as pessoas do contágio, outros acham que o contágio é inevitável e que devemos preservar a economia, pois se ela ruir, outros morrerão de fome. Só faço um parênteses para comentar que, de fato, é bem provável que a maioria da população será contaminada ao longo do tempo, se não for descoberta uma vacina – mas o que se deseja é evitar a explosão de casos, quando a mortalidade aumentará pela incapacidade de absorver todos os casos ao mesmo tempo.
    Mas, voltando ao assunto do “comitê de Deus”, o que me parece mais inadequado é que umas poucas pessoas tomem decisões que afetam o destino de centenas, quiçá milhões. Quem garante que essas poucas pessoas são capazes de traduzir a opinião da maioria da sociedade? Na continuidade, quem garante que a opinião da maioria da sociedade é adequada? Afinal, a maioria da sociedade está saudável, portanto não experimenta o sofrimento da minoria que está doente.
    O que é mais ético? Permitir que os desfavorecidos sofram ou morram, para que a maioria permaneça viável e sustentável? Ou usar vultosos recursos para manter a vida dos desfavorecidos e, assim, diminuir a oferta de recursos que podem melhorar a qualidade de vida dos demais? Dito desta forma, parece egoísta, até nazista, mas sempre há um momento em que precisamos tomar tais decisões. Se um parente seu é terminal, você decide manter a vida dele a qualquer custo ou permite que ele deixe a vida com alguma dignidade?
    Para as doenças raras, uma reflexão: até hoje, os tratamentos disponíveis conseguem minorar o sofrimento e até corrigir as deficiências, mas não alteram a carga genética. E todo humano (Ou a maioria) deseja ter uma vida completa, inclusive tendo filhos. Sabendo que a prole pode apresentar a mesma doença, o portador está sendo ético ao decidir ter um filho? Não sei a resposta, mas eu mesmo já passei pela experiência de ter um filho que faleceu por doença genética e optei por não ter outro, pois me sentiria muito mal se outra criança passasse pelo que o primeiro passou.
    Mas, antes de finalizar, mais um pensamento: os tratamentos para doenças raras não apenas minoram o sofrimento, mas permitem avançar em direção à cura. Portanto, nada do que eu citei deve ser interpretado como uma posição determinística (do tipo sim ou não para as decisões), mas sim um chamado às reflexões e, principalmente, um libelo em favor da busca por consensos, ética e avanço da ciência

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