Matéria atualizada em 24/12/2020
[su_dropcap style=”flat”]H[/su_dropcap]á poucas semanas, trouxemos para você uma grande notícia a respeito das radicais mudanças que se desenham no horizonte em relação ao National Institute for Health and Care Excellence (NICE), que supostamente inspira (é o que dizem) a nossa CONITEC.
Se você não leu as matérias anteriores clique nos links abaixo:
Quando a CONITEC será NICE? (I)
Modificadores: uma conquista para os doentes raros
Agora, passamos a destacar um novo aspecto das mudanças propostas e de interesse para você, doente raro, ou familiar de uma pessoa vivendo com doença rara.
Antes de um novo medicamento ser disponibilizado em sistemas públicos de saúde tanto para pacientes na Inglaterra, no País de Gales (ou no Brasil), ele precisa apresentar uma boa relação custo-benefício, digamos assim.
Para avaliar isso, o NICE usa o que chamamos de “modelagem econômica”. Assim, consegue verificar o que é ou não é custoefetivo. Ou seja, o medicamento (em nosso caso) que apresenta um melhor custo em relação ao benefício provável.
Desta forma, muitas das decisões envolvendo reembolso de medicamentos no NICE (ou sua incorporação ao SUS) são determinadas por esta análise de custo-efetividade (ou custo-utilidade). Com os recentes avanços da medicina, no campo das terapias celulares, terapias gênicas e tecidos engenheirados, o NICE está realizando uma revisão de seus métodos, verificando como suas recomendações são feitas no momento e avaliando o que pode ser mudado, para melhor, da perspectiva do paciente e do sistema de saúde local.
É por isso que precisamos conversar sobre “desconto” (discounting).
Você pode pensar que o desconto é sobre o corte de preços, mas em relação às avaliações do NICE, ele significa algo bem diferente.
Nos modelos econômicos usados pelo NICE durante seus processos de avaliação, os custos futuros associados a um novo medicamento são frequentemente previstos para ocorrerem em momentos distintos ao longo do tempo.
O mesmo é verdadeiro para benefícios de saúde, futuros, que podem ocorrer em diferentes momentos ao longo da vida de um paciente.
O desconto é um processo usado pelo NICE para ajustar esses custos e benefícios ao seu valor presente. Desta forma, o NICE pode decidir se um novo medicamento representa um bom investimento para seu sistema público de saúde.
Basicamente, o desconto permite que o NICE atribua um valor presente para custos e benefícios para a saúde que ocorrerão no futuro.
Mas como as taxas de desconto são determinadas? Ou seja, quais ajustes precisamos fazer nos custos e benefícios que ocorrerão no futuro para determinar seu valor presente?
As taxas de desconto (discount rates) são informadas por dois componentes:
- preferência temporal;
- efeito-riqueza.
Primeiro, vamos explicar a preferência temporal.
A sociedade prefere que os benefícios para a saúde sejam experimentados no presente, em vez de no futuro. Por outro lado, preferimos que os custos sejam experimentados no futuro, em vez de no presente. Isso é chamado de preferência temporal.
Se eu dissesse que tenho mil reais para lhe dar, você preferiria recebê-los agora ou no futuro? Agora se eu te dissesse que a oferta de dinheiro que lhe fiz não era uma doação mas sim um empréstimo, você preferiria me restituir este valor amanhã ou daqui a seis meses?
É isso, você prefere obter o benefício no presente (a doação do meu exemplo) e arcar com seus custos no futuro, quando eu lhe disser que era um empréstimo. É por isso que você prefere comprar mercadorias a prazo, mas recebê-las agora e sem entrada, entende?
O outro componente, o “efeito-riqueza”, é um conceito da teoria econômica que define a disposição de uma pessoa de gastar mais à medida que o valor de seus ativos (imóveis ou investimentos) aumenta ao longo do tempo. A pessoa se sente mais rica com a simples valorização do seu imóvel, por exemplo, ainda que sua receita e custos fixos sejam os mesmos de antes. Ele reflete a disposição da sociedade em consumir mais à medida que sua riqueza aumenta com o tempo.
No campo da saúde, há evidências que sugerem que, em certas enfermidades, intervenções podem produzir ganhos econômicos para os pacientes e para as economias nacionais. Esses benefícios incluem melhorias na produtividade dos pacientes e seus cuidadores em atividade e economia de gastos para outros setores, como educação e assistência social.
No entanto, há algum debate entre os economistas sobre se o “efeito- riqueza” deve ser incluído nos modelos econômicos que informam as decisões do NICE (e assemelhadas, como a CONITEC).
O Tesouro britânico atualizou recentemente sua orientação e sugere que o benefício dos cuidados em saúde não varia com a riqueza individual. Isto sugere que o “efeito riqueza” deva ser excluído da taxa de desconto para cuidados em saúde.
Pela proposta que foi recentemente submetida à consulta pública pelo NICE, a taxa de desconto para cuidados em saúde deveria ser reduzida dos atuais 3,5% para 1,5%. No Brasil, segundo as Diretrizes de Avaliação Econômica em Saúde a taxa de desconto padrão é de 5% para custo e efetividade.
Mudar a taxa de desconto para cuidados em saúde para 1,5%, como pretende o NICE, garantiria que os benefícios de saúde de longo prazo oferecidos por tecnologias de saúde, como medicamentos, fossem melhor representados em sua metodologia e, em última instância, em suas decisões.
Isso faz mais sentido ainda para medicamentos para doenças raras, cujos benefícios podem ser observados em um futuro relativamente distante, na perspectiva do paciente.
Reduzir a taxa de desconto significa, na prática, dar mais valor à vida dos pacientes.
É por isso que este debate é fundamental para os doentes raros (e outros). Vamos torcer para que o NICE diminua a taxa de desconto para cuidados em saúde como parte de sua próxima revisão metodológica (cuja primeira etapa de consulta pública encerrou-se em 18 de dezembro) e que está prevista para ser formalmente anunciada em outubro de 2021.
O que isso pode representar para os doentes raros?
O efeito de uma menor taxa de desconto, conforme proposto na consulta pública recentemente encerrada, seria relevante para tecnologias (medicamentos) com elevados custos iniciais (upfront) e benefícios que ocorrem no futuro e / ou podem durar por toda a vida. Este é o caso de terapias para muitas doenças raras.
Exemplos que se encaixam nesta situação são terapias de dose única, programas de vacinação e tecnologias potencialmente curativas, como terapias gênicas e outras terapias médicas avançadas (ATMPs).
Uma taxa de desconto menor diminuiria sua desvantagem relativa em comparação com tecnologias para as quais os custos são distribuídos de maneira mais uniforme ao longo da vida dos pacientes, ou tecnologias onde os custos são mais prováveis de aumentar nos anos futuros (no caso de doenças degenerativas, por exemplo).
Você já deve ter reparado, no caso brasileiro, que tecnologias muito avançadas quando são objeto de decisão da CONITEC parecem enfrentar maiores dificuldades para serem incorporadas ao SUS. Se tal mudança proposta pelo NICE fosse aplicada no Brasil, este problema tenderia a ser reduzido.
Está mudança, se aprovada, terá um impacto relevante na tomada de decisão do NICE, razão pela qual a própria entidade afirma que inúmeros aspectos da mudança proposta deverão ser melhor examinados, antes que possa ser verdadeiramente implementada.