Judicialização da saúde no Supremo Tribunal Federal

Recente decisão do STF traz um novo capítulo sobre o tratamento judicial do fenômeno nacional da judicialização da saúde

O sistema de saúde brasileiro é bastante complexo, abrangendo as esferas pública e privada, diferentes entidades de prestação de serviço e regulatórias estatais, divisão de competências entre os entes federativos, financiamento público vinculado constitucionalmente, além de um intrincado conjunto de regras jurídicas que compõe o campo do direito da saúde no Brasil.

A magnitude econômica do setor saúde também é expressiva, representando aproximadamente 10% da renda nacional e em constante crescimento. Por suas características, e por lidar com um valor jurídico tão sensível como a saúde, o sistema de saúde brasileiro é palco de conflitos políticos, econômicos e judiciais, conflitos esses que se judicializam e que, por terem como base um direito constitucional fundamental (direito à saúde), chegam até a mais alta Corte brasileira, o Supremo Tribunal Federal (STF).  

A participação do Poder Judiciário na efetivação do direito à saúde, que se dá por meio da chamada “judicialização da saúde”, é um fenômeno que expressa ao mesmo tempo o reconhecimento constitucional da saúde como um direito e, também, a disputa estrutural da sociedade na busca por recursos e por acesso à serviços e produtos de saúde. A judicialização da saúde atinge tanto o Sistema Único de Saúde (SUS) quanto o sistema de saúde suplementar, afetando direta ou indiretamente todos os brasileiros, sejam eles cidadãos usuários do SUS, sejam eles clientes de planos de saúde e serviços médicos particulares em geral.  

Um importante estudo financiado pelo Conselho Nacional de Justiça (Judicialização da Saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de soluções, CNJ/Insper/USP, 2018) identificou e analisou em torno de 800 mil ações judiciais envolvendo conflitos relacionados ao direito à saúde no país.

Pela sua escala, a judicialização da saúde tornou-se relevante não apenas para o sistema de assistência à saúde, mas para o próprio judiciário, que tem que lidar com centenas de milhares de processos, vários dos quais sobre temas recorrentes e quase sempre contendo pedidos de antecipação de tutela ou liminares. Daí que o papel do STF se torna cada vez mais estratégico para a definição do conteúdo jurídico constitucional do direito à saúde e para a harmonização nacional da real extensão do direito à saúde no país. 

A literatura científica sobre judicialização da saúde é um excelente termômetro sobre o grau de complexidade do fenômeno. Uma parte dos estudos analisa a judicialização da saúde a partir da perspectiva do direito constitucional à saúde, um direito fundamental que gera direito de ação ao cidadão sempre que este julgar que seu direito à saúde foi ou está para ser violado.

Tal perspectiva aponta evidências mostrando que a judicialização pode servir para corrigir políticas públicas equivocadas (como foi o caso da política de HIV/AIDS no Brasil, p.e.) ou ainda pode servir como último recurso de vida de um cidadão ou de uma coletividade quando a necessidade de acesso a algum tipo de produto ou serviço de saúde for urgente para a proteção da vida.  

Outra parte dos estudos destaca eventuais iniquidades ou prejuízos sociais gerados pela judicialização, na medida em que esta protege especialmente quem possui recursos ou conhecimentos para acessar a Justiça e, consequentemente, acessar seu direito à saúde, em detrimento daqueles que não tem nem acesso à Justiça e nem acesso aos produtos e serviços de saúde de que necessitam.

Estes estudos também destacam que decisões judiciais podem provocar prejuízos às políticas públicas de saúde, na medida em que retiram recursos das políticas de saúde planejadas pelo Poder Executivo para contemplar decisões tomada pelo Poder Judiciário, por vezes diferentes ou até contrárias à política pública instituída. Alegam que ao retirar recursos da política coletiva para destinar a um atendimento pessoal o Judiciário interfere indevidamente na esfera de execução da política pública que compete sobretudo ao Poder Executivo. 

Considerando que o fenômeno da judicialização da saúde é na realidade um mosaico de ações judiciais muito diferentes pedindo saúde, formando não uma, mas várias, “judicializações” da saúde, de todos os tipos. A judicialização no norte e nordeste do país é muito diferente da judicialização do sul e sudeste; a judicialização que pede um medicamento que consta da Relação Nacional do SUS é muito diferente da judicialização de um medicamento sequer registrado na Anvisa; e assim por diante. Cada tipo de judicialização tem como pano de fundo uma causa diferente, e muitas vezes estrutural, a ser enfrentada e resolvida. 

A inafastabilidade da competência do Poder Judiciário em apreciar qualquer lesão ou ameaça ao direito figura como uma garantia geral da democracia e do Estado Democrático de Direito (CF/88, artigo 5o, XXXV), na medida em que assegura a todos (individual ou coletivamente) a possibilidade de levar ao Poder Judiciário demandas de qualquer natureza, inclusive contra decisões executivas ou legislativas tomadas pelos demais poderes.  

Ao longo das últimas décadas o STF vem sendo provocado para decidir sobre o direito à saúde em demandas variadas, tais como: obrigatoriedade do Estado brasileiro de fornecer medicamentos de alto custo a pacientes do SUS; responsabilidade solidária da União, dos estados e dos municípios para a efetivação do direito à saúde; constitucionalidade de aspectos da Lei dos Planos de Saúde (9.656/98); constitucionalidade de aspectos da Lei de Biossegurança (11.105/05).

Destaque especial deve ser dado ao papel do Supremo na pandemia da Covid-19, quando agiu fortemente na definição das competências dos Estados para definir o que eram as atividades essenciais; na decisão sobre a constitucionalidade da vacinação obrigatória; ou ainda na determinação para que a União elaborasse e implementasse com urgência uma política pública de proteção da saúde indígena contra o coronavírus.  

Em sessão virtual encerrada em 30 de junho passado, o Plenário do STF tomou uma decisão com repercussão geral (Tema 698) que pode impactar a judicialização da saúde no Brasil, no âmbito do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 684612. A decisão fixou parâmetros para nortear decisões judiciais a respeito de políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, como o direito à saúde. A tese de repercussão geral fixada foi a seguinte: 

  • A intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos poderes.
  • A decisão judicial, como regra, em lugar de determinar medidas pontuais, deve apontar as finalidades a serem alcançadas e determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado;
  • No caso de serviços de saúde, o déficit de profissionais pode ser suprido por concurso público ou, por exemplo, pelo remanejamento de recursos humanos e pela contratação de organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP) .

Aparentemente, a decisão do STF procura reforçar os efeitos positivos já conhecidos da judicialização no Brasil, em especial o poder de indução das políticas públicas de saúde voltadas à proteção efetiva do direito à saúde.

A partir de um caso concreto, o Judiciário deve ser capaz de compreender o interesse público envolvido na disputa e forçar o Poder Executivo a adotar as medidas mais adequadas para a solução dos conflitos e das necessidades concretas de saúde da população que chegam ao Judiciário, mesmo que essas medidas envolvam mudanças estruturais.  

Também vale destacar o item específico da decisão voltado à recomposição dos recursos humanos voltados à saúde, instando o Poder Executivo a complementar sua força de trabalho em saúde com concursos públicos ou com parcerias junto à entidades filantrópicas (OSs e OSCIPs).  

Como se pode perceber, o direito constitucional à saúde conquistou no Brasil um espaço especial de proteção jurídica, tendo no STF um dos grandes balizadores dos reais contornos desse direito. Espera-se que, com esta recente decisão, o Poder Judiciário mantenha seu firme compromisso com a defesa dos direitos humanos fundamentais e com a proteção do direito à saúde, como forma de proteção da dignidade humana e, no limite, da própria vida.

Outros temas ainda estão no STF aguardando importantes decisões, tais como o uso da canabis para fins terapêuticos, a descriminalização do uso de drogas, a descriminalização do aborto e a apuração de crimes cometidos por gestores públicos por gestão catastrófica do sistema de saúde brasileiro durante a pandemia. Aos poucos, e em ritmo mais lento do que o desejável, o Estado Democrático de Direito brasileiro vai dando suas respostas aos problemas da sociedade. 


FERNANDO AITH – Professor titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Professor visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Paris. Diretor do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da USP.

Reproduzido do site JOTA


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