[su_dropcap]N[/su_dropcap]ovas informações sobre o artigo que comentei ontem aqui, de autoria de Tatiane Bonfim Ribeiro e cols, intitulado Avaliação crítica de estudos de custo-efetividade de medicamentos oncológicos recomendados para incorporação pela Conitec no Brasil.
Como já mencionado neste blog, ele trata das recomendações de incorporação de medicamentos oncológicos ao SUS pela referida Comissão, desde sua criação até junho de 2019. Nenhum deles parece destinado a doenças raras, mas o caso se revela pitoresco. Por isso dele trato aqui.
O artigo, em sua conclusão, afirma, em linhas gerais, que foram observadas limitações metodológicas relevantes na maioria dos estudos pesquisados pelos autores.
Extraio uma passagem do referido artigo:
“(…) Apenas metade das recomendações para incorporação no SUS de medicamentos oncológicos tinha estudos econômicos, ou seja, existe uma incompatibilidade entre as evidências recomendadas e as efetivamente utilizadas, provavelmente havendo outros critérios utilizados na recomendação final da Conitec.
Aqui, os autores, elegantes, em boa prosa acadêmica, impossibilitados de avançar nas suposições por dever de ofício, preferem não especular sobre o que explicaria a dispensa da exigência de avaliações econômicas nestes casos acima mencionados. E, diplomáticos, fazem observação perspicaz.
No entanto, para a completa compreensão deste tema seria importante analisar os fatores políticos e institucionais que afetam o uso de evidências no processo de tomada de decisão; na maioria dos casos, não se utilizam apenas dados técnicos e administrativos, mas também critérios políticos.
A afirmação acima é no mínimo curiosa. Não que represente algo novo para cientistas sociais interessados na economia da saúde, como é meu caso.
Mas esta parece ser uma dimensão envergonhada da atuação destas agências, pois suas lideranças sempre fazem questão de afirmar, para os pacientes e público em geral, que nada há de político em suas decisões. Nelas predominaria a boa técnica.
Mas,prossigo na análise deste interessante e revelador artigo.
A certa altura, ele apresenta um quadro onde se verifica que, no período entre 2012 e 2019, oito medicamentos oncológicos foram recomendados pela Conitec para 10 indicações terapêuticas. Entre estas, três (30%) foram demandas internas (setor público de saúde, judiciário e outros agentes públicos), mais precisamente da Secretaria de Atenção à Saúde (SAS). Seguem-se mais uma do DGITS (que atua como, secretaria executiva da Conitec) e outra da SCTIE, secretaria à qual a Conitec se subordina.
Entre as cinco indicações restantes, apenas três foram provenientes de demandas externas, de laboratórios (Roche e AstraZeneca, sendo que uma delas em parceria com a Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica – SBOC). As outras duas demandas externas restantes bem-sucedidas foram provenientes da SBOC.
A quantidade de oncológicos recomendados pela Conitec sem avaliação econômica à primeira vista poderia surpreender. Mas acrescente-se que cinco destes posicionamentos favoráveis, segundo o artigo, foram provenientes da Secretaria de Atenção à Saúde (SAS) e da SCTIE/Conitec.
É fato notório que, no mesmo período, entre os quadros executivos de ambas, destacava-se uma servidora pública, oncologista, com notáveis serviços prestados em passagens anteriores por instituições de tratamento do câncer vinculadas ao Governo Federal.
Pode-se até admitir que, por idealismo, senso de dever ou conhecimento de causa dos quadros do Ministério lotados nestas unidades, houve empenho para se incorporar medicamentos que buscam tratar aquela que é a segunda maior causa de mortalidade do mundo.
Mas também pode-se cogitar favorecimento excessivo a uma patologia em detrimento de outras, eventualmente alavancado por ONGs com mais capital político e poder de pressão junto àquela pasta.
Rosangela Caetano e cols., em artigo publicado em 2017, já observavam que, entre janeiro de 2012 e junho de 2016, “demandas internas por incorporação de medicamentos obtiveram mais sucesso quando comparadas com as originadas externamente”. Neste caso, para medicamentos em geral ou outras tecnologias em saúde. Segundo os autores, “82,8% dos pedidos que receberam deliberação favorável de inclusão procediam do próprio Ministério, da Anvisa ou das SES/SMS”. Aqui parece que, tal como a pimenta, evidência nos olhos dos outros é refresco.
E prosseguem Caetano e cols.
Todos os indeferimentos por não-conformidade observados tiveram origem externa, em que pese a presença de alguns relatórios bem simplificados provindos de “demandas internas”, muitas vezes apresentando apenas meras descrições da tecnologia e estimativas bastante simples dos impactos orçamentários. Os dados disponíveis, contudo, não permitem avançar na investigação das possíveis razões para esse tratamento aparentemente diferenciado.
E mais adiante indagam:
Até que ponto interfere nas decisões o fato de a Comissão responsável pela avaliação da incorporação de novos medicamentos pertencer à estrutura do próprio Ministério que financia o que é incluído, é aspecto que merece ser mais aprofundado em estudos ulteriores, dado que a literatura internacional discute que a estrutura organizacional ‘ideal’ para os órgãos encarregados da ATS, a nível nacional, seriam programas hierarquicamente independentes, mesmo que financiados por fundos públicos.
O mesmo artigo aponta que “seis medicamentos sem registro na Anvisa foram incorporados no período, todos decorrentes de demandas internas”. Aqui os autores destacam que “a incorporação de medicamentos sem registro contraria um critério claramente disposto no regimento legal para a avaliação da submissão de incorporação”
Em artigo publicado em 2018, Tania Yuba e cols constataram que, no período de julho de 2012 a dezembro de 2016, dentre as demandas internas junto à Conitec, a recomendação de incorporação da nova tecnologia fora acatada em 70,9% dos casos. Destes, apenas 9,6% incluíram Avaliações de Tecnologias em Saúde completas. O caso é totalmente diferente quando se observam as demandas externas. Segundo as autoras, a incorporação da nova tecnologia foi recomendada para 17,3% destes casos, sendo que em 76,9% deles existiam ATS completas .
Para este fenômeno, Yuba e cols. arriscam, especulativamente, uma explicação.
As diferenças entre as demandas internas e externas em termos de uso de evidências indicam que outros fatores estão em jogo no desenvolvimento de recomendações consensuais. As demandas internas podem ter tido maior legitimidade política, já tendo sido analisadas e validadas em outros setores do MS, estimulando a recomendação.
O que talvez você não saiba é que a Portaria n° 26, de 2015, autoriza que demandas internas à Conitec dispensem a exigência da apresentação de avaliações econômicas.
Vê-se que os problemas apontados na literatura acadêmica sobre incorporação de tecnologias de saúde ao SUS, e aqui alinhavados, revelam situações que podem comprometer a legitimidade das decisões da referida comissão.
Em Economia da Saúde não se discute o fato de que limites precisem ser definidos, pois os recursos são escassos.
Creio que nenhum paciente em sã consciência acredite que há dinheiro para tudo. Até porque parte dele precisa ser drenado pela corrupção nossa de todos os dias (especialmente se você vive no Rio de Janeiro).
O que sempre se pode problematizar e questionar é de que forma foram tomadas as decisões para limitar o acesso neste ou naquele caso. Ou melhor dizendo, diante dos casos acima expostos, de que forma foram tomadas decisões para facilitar o acesso neste ou naquele caso.
Dispensar a avaliação econômica para certos medicamentos e indicações, quando elas são impositivamente exigidas para outros medicamentos, pode lançar dúvidas sobre a legitimidade das decisões tomadas por quaisquer agências que deste modo atuem. Ou abrir brechas para casuísmos e favorecimentos pouco republicanos, de acordo com a cara do freguês.
É importante novamente ressaltar que o câncer é a segunda maior causa de morte no mundo. Natural que esteja entre as principais preocupações de gestores conscienciosos.
Mas seria desejável que todos os medicamentos passassem pelo mesmo crivo, quando necessário fosse deliberar sobre sua incorporação a sistemas de saúde. Trata se de um princípio elementar de isonomia, a meu ver.
Se avaliações econômicas são mandatórias segundo o Decreto 7.646/2011, no que tange a incorporações tecnológicas ao SUS, não se justifica, salvo melhor entendimento, a adoção de dois pesos e duas medidas nestes casos. Mesmo que portaria posterior tenha criado exceções á norma.
Ao longo de seus anos de existência observa-se, segundo os estudiosos, uma queda no número de submissões de medicamentos à Conitec. Não me espantaria se, diante dos problemas apontados na literatura, os laboratórios pensassem duas vezes antes de pleitear sua incorporação ao SUS. Na ponta, como sempre, na briga entre o mar e o rochedo, sofre o marisco-paciente, zeloso pagador de impostos e cidadão ordeiro. A este, nestas circunstâncias, só restará a tão demonizada ida aos tribunais ou resignar-se com sua sorte.
Gostou deste artigo? Então compartilha e/ou comenta!