Cláudio Cordovil

COVID-19: Estamos protegendo as pessoas com deficiência e doenças raras?

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Foto de Anna Shvets

O que estamos fazendo para proteger as pessoas com deficiência”? E os doentes raros, um dos grupos mais vulneráveis neste século, segundo o Conselho de Ética da Alemanha? A julgar pelos especialistas, muito pouco! E o Brasil não fica fora dessa triste situação. Não tenho conhecimento de iniciativas mais consistentes dos ministérios visando proteger especificamente estas populações mais vulneráveis em termos de direito à assistência diferenciada etc.

Se alguém conhecer, posta nos comentários, por favor, que teremos prazer em divulgar.

O que vi foi uma assim chamada “cartilha” que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos fez publicar (sempre as cartilhas, o bibelô dos burocratas!) com “Orientações sobre a epidemia de coronavirus (Covid-19) para as pessoas com doenças raras”. Passam longe das questões mais específicas que envolvem a cidadania e o direito à saúde das pessoas com deficiência, como as ilustradas mais abaixo.

Recentemente ouvi de uma líder de associação de pacientes com doenças raras, que prefere não se identificar:

“As pessoas gostam de falar nos vulneráveis, mas na verdade elas não têm noção do perigo e sofrimento que a falta de cuidados médicos e farmacêuticos nos faz. Quem está aguardando o oxigênio por exemplo , vai continuar esperando no sofrimento. E ainda tem o problema dos medicamentos caros, que agora nem comprar pode. A dificuldade de conseguir uma video consulta… . Simplesmente nos colocaram num canto dizendo que é para segurança nossa, tudo bem , mas …. e o tratamento como é que fica ? Quem tem coragem de sair do isolamento vai ao hospital se aventurar atrás de uma receita ou consulta urgente”.

Dito isso, concluo que  nenhuma autoridade oficial está falando de Direitos Humanos de Pessoas com Deficiência e Doenças Raras . Mas a nível internacional a situação não é muito diferente. Como você vai ver abaixo.

Precisamos falar sobre Direitos Humanos

A Relatora Especial da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, Catalina Devandas foi categórica. Pouco tem sido feito para fornecer às pessoas com deficiência a orientação e o apoio necessários para protegê-las durante a pandemia do COVID-19.

“As pessoas com deficiência sentem que foram deixadas para trás”, disse a especialista em direitos humanos da ONU. “Medidas de contenção, como distanciamento social e auto-isolamento, podem ser impossíveis para quem depende do apoio de outras pessoas para comer, vestir e tomar banho”, acrescentou.

E cobra medidas práticas que nenhuma “cartilha” pode prover. “Esse apoio é básico para sua sobrevivência, e os Estados devem adotar medidas adicionais de proteção social para garantir a continuidade do apoio de maneira segura durante a crise”.

O pronunciamento dela é muito esclarecedor e você pode conhecê-lo na íntegra aqui. Mas gostaria de destacar outro ponto muito importante enfatizado por ela nesse momento crítico nas emergências de todo o país.

Devandas ressaltou que as pessoas com deficiência merecem ter certeza de que sua sobrevivência é uma prioridade. Ela convocou os Estados a  estabelecer protocolos claros para emergências de saúde pública, visando estas populações específicas.  Isto para garantir que, quando os recursos médicos forem escassos, bem como o acesso aos cuidados de saúde, incluindo medidas de salvamento,  pessoas com deficiência não sejam discriminadas. 

A Relatora Especial da ONU sabe do que fala. No mundo inteiro começam a surgir denúncias de unidades hospitalares desenvolvendo procedimentos para decidir quem tem prioridade de acesso aos hoje tão cobiçados ventiladores mecânicos em UTIs. Para trás ficam idosos, incapazes, pessoas com deficiências e outras categorias de vulneráveis.

“Escolha de Sofia”

O Escritório de Direitos Civis do governo americano abriu investigações  de denúncias envolvendo profissionais de saúde e gestores de unidades hospitalares. Elas dariam conta de casos de discriminação de acesso com base em deficiências, idade, raça e outros fatores, quando se tinha que decidir quem iria receber cuidados médicos intensivos durante a pandemia.

O diretor do Escritório, Roger Severino, foi taxativo: “Nossas leis de direitos civis protegem a igual dignidade de toda vida humana frente a um utilitarismo cruel”.  O utilitarismo é uma doutrina ética que propõe que devamos  “agir sempre de forma a produzir a maior quantidade de bem-estar” para o maior número de pessoas.

Para te dar um exemplo hipotético do que isso representa, basta dizer que, numa perspectiva utilitarista, um gestor poderia sacrificar a compra de medicamento caro para um doente raro sob a alegação que ele poderia tratar com o mesmo recurso trezentas mulheres com depressão pós-parto, digamos assim. Entende? O problema de levar-se o utilitarismo ao pé-da-letra nas políticas públicas é que, obviamente, os mais vulneráveis sempre ficarão deixados para trás.

Severino foi claro ao dizer que as denúncias vinham de “um amplo espectro de grupos de direitos civis, grupos pelo direito à vida, ativistas de direitos de pessoas com deficiência, de destacados membros do Congresso americano, sejam democratas ou republicanos, e de pessoas comuns que estariam preocupadas com seus direitos civis nestes tempos de crise”.

Diversos Estados e hospitais nos EUA estão desenvolvendo planos de atuação para o caso de o número de pacientes a exigir leitos de UTI excederem sua capacidade de atendimento. Enquanto a indústria não produz ventiladores mecânicos em quantidade suficiente para atender a demanda, estes planos do tipo “escolha-de-sofia” já estão sendo elaborados para o caso de o número de pacientes infectados a requerer tratamento alcançar nível crítico.

“Escolha de Sofia” é título de um filme e virou expressão coloquial para definir a imposição de se ter de tomar uma decisão difícil mediante enorme sacrifício pessoal. Nele, a protagonista Meryl Streep precisa escolher com qual de seus dois filhos vai fugir de um campo de concentração nazista.

O plano do Estado do Alabama, por exemplo, determinava que, em caso de racionamento de recursos em saúde para atender pacientes com a COVID-19, pessoas com retardo mental severo ou profundo fossem consideradas como candidatos improváveis ao suporte da ventilação mecânica. Da mesma forma que aqueles que apresentassem demência moderada a severa. Após publicada esta denúncia pelo New York Times, o plano de contingência do Alabama foi retirado do ar.

Em Washington a situação não é muito diferente pois há a orientação  de que as equipes de triagem considerem transferir pacientes hospitalares com “perda de reservas em energia, capacidade física, cognição e saúde geral” para ambulatórios ou cuidados paliativos. Alguns planos, segundo o New York Times, vão mais longe e instruem hospitais a não oferecerem ventiladores mecânicos para pessoas acima de certa idade ou com condições particulares de saúde.

Vive La République?

Na França, o berço da República e dos Direitos Humanos, a situação não é muito diferente . “Eu não posso imaginar que isso aconteça”. Assim se pronunciou o Ministro da Saúde, Olivier Véran, ao reagir a um comunicado  de um coletivo de 48 associações que alertava para o fato de que muitas pessoas viram recusado seu acesso a hospitais e reanimação pelo simples fato de viverem com uma deficiência. Os signatários do comunicado classificam a situação como “absolutamente indigna”.

E prosseguiu o ministro, com ênfase: “As pessoas com deficiência devem se beneficiar dos mesmos cuidados que o resto da população. A deficiência não deve ser um critério para a recusa de cuidados quer se fale de uma simples hospitalização ou de uma reanimação”, sentenciou.  E prosseguiu: “Está totalmente fora de questão criar obstáculos nestes casos”.

O líder do coletivo que assina o comunicado, Arnaud de Broca,  já calejado por tantos pronunciamentos oficiais, que muitas vezes dão em nada, assim reagiu à fala do ministro. “Não é que tudo mude, estamos conscientes disso e permaneceremos vigilantes, mas era importante que o governo demonstrasse seu apoio às pessoas com deficiência e o reconhecimento do trabalho prestado pelos profissionais do setor. Embora temamos que, apesar de tudo, muitas pessoas com deficiência permaneçam isoladas em casa ou em seu estabelecimento”.

Mais voltado para o campo dos direitos humanos e para a cidadania, que é o que mais importa quando se fala de deficiências, e onde a cura não se revela próxima, a Aliança Internacional de Deficiências (IDA) publicou um interessante decálogo sobre orientações práticas (e não necessariamente profiláticas) para gestores e sociedade em geral sobre os direitos das pessoas com deficiência em tempos de pandemia.

No campo acadêmico, destacamos o extenso (mas precioso) Comunicado do Grupo de Trabalho (GT) Estudos Críticos sobre Deficiências, do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO), que traz interessantes reflexões que passam despercebidas em uma sociedade que pratica ativamente o capacitismo e renega, à condição de marginais ou cidadãos de segunda classe, grandes contingentes de grupos vulneráveis. Capacitismo é a discriminação e o preconceito social contra pessoas com alguma deficiência.

Vamos agir?
Se você conhece algum caso de pessoa com deficiência ou doença rara que foi discriminada por estas condições em atendimentos para Covid-19 ou durante a pandemia para tratar de outro problema escreva para nós. Teremos o maior prazer de apurar estes casos e/ou divulgá-los!

 

leia também

COVID-19: 10 Recomendações da Aliança Internacional de Deficiências

Quem está protegendo as pessoas com deficiência? _ Especialista em direitos das Nações Unidas

Comunicado do Grupo de Trabalho “Estudos Críticos sobre Deficiência

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Cláudio Cordovil Pesquisador em Saúde Pública
Jornalista profissional. Servidor Público. Pesquisador em Saúde Pública (ENSP/Fiocruz). Especializado em Doenças Raras, Saúde Pública e Farmacoeconomia . Mestre e Doutor em Comunicação e Cultura (Eco/UFRJ). Prêmio José Reis de Jornalismo Científico concedido pelo CNPq.

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