O que estamos fazendo para proteger as pessoas com deficiência”? E os doentes raros, um dos grupos mais vulneráveis neste século, segundo o Conselho de Ética da Alemanha? A julgar pelos especialistas, muito pouco! E o Brasil não fica fora dessa triste situação. Não tenho conhecimento de iniciativas mais consistentes dos ministérios visando proteger especificamente estas populações mais vulneráveis em termos de direito à assistência diferenciada etc.
Se alguém conhecer, posta nos comentários, por favor, que teremos prazer em divulgar.
O que vi foi uma assim chamada “cartilha” que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos fez publicar (sempre as cartilhas, o bibelô dos burocratas!) com “Orientações sobre a epidemia de coronavirus (Covid-19) para as pessoas com doenças raras”. Passam longe das questões mais específicas que envolvem a cidadania e o direito à saúde das pessoas com deficiência, como as ilustradas mais abaixo.
Recentemente ouvi de uma líder de associação de pacientes com doenças raras, que prefere não se identificar:
“As pessoas gostam de falar nos vulneráveis, mas na verdade elas não têm noção do perigo e sofrimento que a falta de cuidados médicos e farmacêuticos nos faz. Quem está aguardando o oxigênio por exemplo , vai continuar esperando no sofrimento. E ainda tem o problema dos medicamentos caros, que agora nem comprar pode. A dificuldade de conseguir uma video consulta… . Simplesmente nos colocaram num canto dizendo que é para segurança nossa, tudo bem , mas …. e o tratamento como é que fica ? Quem tem coragem de sair do isolamento vai ao hospital se aventurar atrás de uma receita ou consulta urgente”.
Dito isso, concluo que [su_highlight]nenhuma autoridade oficial está falando de Direitos Humanos de Pessoas com Deficiência e Doenças Raras[/su_highlight]. Mas a nível internacional a situação não é muito diferente. Como você vai ver abaixo.
[su_heading size=”26″]Precisamos falar sobre Direitos Humanos[/su_heading]
A Relatora Especial da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, Catalina Devandas foi categórica. Pouco tem sido feito para fornecer às pessoas com deficiência a orientação e o apoio necessários para protegê-las durante a pandemia do COVID-19.
“As pessoas com deficiência sentem que foram deixadas para trás”, disse a especialista em direitos humanos da ONU. “Medidas de contenção, como distanciamento social e auto-isolamento, podem ser impossíveis para quem depende do apoio de outras pessoas para comer, vestir e tomar banho”, acrescentou.
E cobra medidas práticas que nenhuma “cartilha” pode prover. “Esse apoio é básico para sua sobrevivência, e os Estados devem adotar medidas adicionais de proteção social para garantir a continuidade do apoio de maneira segura durante a crise”.
O pronunciamento dela é muito esclarecedor e você pode conhecê-lo na íntegra aqui. Mas gostaria de destacar outro ponto muito importante enfatizado por ela nesse momento crítico nas emergências de todo o país.
Devandas ressaltou que as pessoas com deficiência merecem ter certeza de que sua sobrevivência é uma prioridade. Ela convocou os Estados a [su_highlight]estabelecer protocolos claros para emergências de saúde pública, visando estas populações específicas.[/su_highlight] Isto para garantir que, quando os recursos médicos forem escassos, bem como o acesso aos cuidados de saúde, incluindo medidas de salvamento, [su_highlight]pessoas com deficiência não sejam discriminadas.[/su_highlight]
A Relatora Especial da ONU sabe do que fala. No mundo inteiro começam a surgir denúncias de unidades hospitalares desenvolvendo procedimentos para decidir quem tem prioridade de acesso aos hoje tão cobiçados ventiladores mecânicos em UTIs. Para trás ficam idosos, incapazes, pessoas com deficiências e outras categorias de vulneráveis.[su_heading size=”26″]”Escolha de Sofia”[/su_heading]
O Escritório de Direitos Civis do governo americano abriu investigações de denúncias envolvendo profissionais de saúde e gestores de unidades hospitalares. Elas dariam conta de casos de discriminação de acesso com base em deficiências, idade, raça e outros fatores, quando se tinha que decidir quem iria receber cuidados médicos intensivos durante a pandemia.
O diretor do Escritório, Roger Severino, foi taxativo: “Nossas leis de direitos civis protegem a igual dignidade de toda vida humana frente a um utilitarismo cruel”. O utilitarismo é uma doutrina ética que propõe que devamos “agir sempre de forma a produzir a maior quantidade de bem-estar” para o maior número de pessoas.
Para te dar um exemplo hipotético do que isso representa, basta dizer que, numa perspectiva utilitarista, um gestor poderia sacrificar a compra de medicamento caro para um doente raro sob a alegação que ele poderia tratar com o mesmo recurso trezentas mulheres com depressão pós-parto, digamos assim. Entende? O problema de levar-se o utilitarismo ao pé-da-letra nas políticas públicas é que, obviamente, os mais vulneráveis sempre ficarão deixados para trás.
Severino foi claro ao dizer que as denúncias vinham de “um amplo espectro de grupos de direitos civis, grupos pelo direito à vida, ativistas de direitos de pessoas com deficiência, de destacados membros do Congresso americano, sejam democratas ou republicanos, e de pessoas comuns que estariam preocupadas com seus direitos civis nestes tempos de crise”.
Diversos Estados e hospitais nos EUA estão desenvolvendo planos de atuação para o caso de o número de pacientes a exigir leitos de UTI excederem sua capacidade de atendimento. Enquanto a indústria não produz ventiladores mecânicos em quantidade suficiente para atender a demanda, estes planos do tipo “escolha-de-sofia” já estão sendo elaborados para o caso de o número de pacientes infectados a requerer tratamento alcançar nível crítico.
“Escolha de Sofia” é título de um filme e virou expressão coloquial para definir a imposição de se ter de tomar uma decisão difícil mediante enorme sacrifício pessoal. Nele, a protagonista Meryl Streep precisa escolher com qual de seus dois filhos vai fugir de um campo de concentração nazista.
O plano do Estado do Alabama, por exemplo, determinava que, em caso de racionamento de recursos em saúde para atender pacientes com a COVID-19, pessoas com retardo mental severo ou profundo fossem consideradas como candidatos improváveis ao suporte da ventilação mecânica. Da mesma forma que aqueles que apresentassem demência moderada a severa. Após publicada esta denúncia pelo New York Times, o plano de contingência do Alabama foi retirado do ar.
Em Washington a situação não é muito diferente pois há a orientação de que as equipes de triagem considerem transferir pacientes hospitalares com “perda de reservas em energia, capacidade física, cognição e saúde geral” para ambulatórios ou cuidados paliativos. Alguns planos, segundo o New York Times, vão mais longe e instruem hospitais a não oferecerem ventiladores mecânicos para pessoas acima de certa idade ou com condições particulares de saúde.
[su_heading size=”26″]Vive La République?[/su_heading]
Na França, o berço da República e dos Direitos Humanos, a situação não é muito diferente . “Eu não posso imaginar que isso aconteça”. Assim se pronunciou o Ministro da Saúde, Olivier Véran, ao reagir a um comunicado de um coletivo de 48 associações que alertava para o fato de que muitas pessoas viram recusado seu acesso a hospitais e reanimação pelo simples fato de viverem com uma deficiência. Os signatários do comunicado classificam a situação como “absolutamente indigna”.
E prosseguiu o ministro, com ênfase: “As pessoas com deficiência devem se beneficiar dos mesmos cuidados que o resto da população. A deficiência não deve ser um critério para a recusa de cuidados quer se fale de uma simples hospitalização ou de uma reanimação”, sentenciou. E prosseguiu: “Está totalmente fora de questão criar obstáculos nestes casos”.
O líder do coletivo que assina o comunicado, Arnaud de Broca, já calejado por tantos pronunciamentos oficiais, que muitas vezes dão em nada, assim reagiu à fala do ministro. “Não é que tudo mude, estamos conscientes disso e permaneceremos vigilantes, mas era importante que o governo demonstrasse seu apoio às pessoas com deficiência e o reconhecimento do trabalho prestado pelos profissionais do setor. Embora temamos que, apesar de tudo, muitas pessoas com deficiência permaneçam isoladas em casa ou em seu estabelecimento”.
Mais voltado para o campo dos direitos humanos e para a cidadania, que é o que mais importa quando se fala de deficiências, e onde a cura não se revela próxima, a Aliança Internacional de Deficiências (IDA) publicou um interessante decálogo sobre orientações práticas (e não necessariamente profiláticas) para gestores e sociedade em geral sobre os direitos das pessoas com deficiência em tempos de pandemia.
No campo acadêmico, destacamos o extenso (mas precioso) Comunicado do Grupo de Trabalho (GT) Estudos Críticos sobre Deficiências, do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO), que traz interessantes reflexões que passam despercebidas em uma sociedade que pratica ativamente o capacitismo e renega, à condição de marginais ou cidadãos de segunda classe, grandes contingentes de grupos vulneráveis. Capacitismo é a discriminação e o preconceito social contra pessoas com alguma deficiência.
[su_box title=”Vamos agir?” style=”soft” box_color=”#2215d5″ title_color=”#f0ce48″ radius=”5″]Se você conhece algum caso de pessoa com deficiência ou doença rara que foi discriminada por estas condições em atendimentos para Covid-19 ou durante a pandemia para tratar de outro problema escreva para nós. Teremos o maior prazer de apurar estes casos e/ou divulgá-los![/su_box]
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