Consultora explica decisão de Gilmar Mendes (STF) sobre medicamentos

Nota da Redação

Na noite de ontem (11/4), o Ministro Gilmar Mendes Mendes suspendeu todos os processos na Justiça Federal que versem sobre medicamentos registrados na Anvisa e não padronizados no SUS. Procuramos Letícia Lemgruber, consultora da Associação Brasileira de Mucoviscidose (ABRAM) para trocar em miúdos esta decisão para você.

Muitos pacientes estão aflitos com a decisão divulgada ontem, de que “o Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu, na noite desta terça-feira (11/4) todos os julgamentos em andamento no país que discutem a legitimidade da União e da Justiça Federal das demandas que versem sobre o fornecimento de medicamentos registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas não padronizados no Sistema Único de Saúde (SUS)”.


A questão é bem técnica, vou tentar explicar em termos não jurídicos.


A Constituição Federal diz no art. 23, inciso II, que a União, Estados, Distrito Federal e Municípios são responsáveis solidários pela saúde. “Responsabilidade solidária” significa que todos eles são responsáveis, tanto perante um paciente específico quanto perante um grupo de pacientes. Se todos são responsáveis, em tese o paciente pode escolher contra quem ele quer pedir um determinado remédio ou um tratamento de saúde.

Para entender melhor, pense em uma dívida com devedores solidários, o credor pode escolher contra quem ele irá cobrar o total da dívida (se ele vai cobrar de todos ou apenas de quem ele acha que tem mais condições de pagar).


Ou seja, para o que nos interessa, significa que o paciente que pretende obter um remédio ou um tratamento que ainda não existe no SUS pode escolher se ele vai entrar com um processo contra o Município, contra o Estado ou contra a União (ou contra os três juntos).


Caso ele escolha entrar contra a União, tem que ajuizar na Justiça Federal. Se for só contra o Município ou Estado, será justiça estadual.


Na prática temos poucas sedes da justiça federal, principalmente no interior. Por isso muitos pacientes acabavam ajuizando processos só contra o Estado ou Município.
E quando o SUS foi estruturado, a Lei Orgânica do SUS e as portarias que regulamentam essa lei previram como ele deve funcionar, qual ente público deve pagar isso ou aquilo, qual ente público deve prestar esse ou aquele serviço. Em relação ao fornecimento de remédios, dividiram em grupos, dizendo que as medicações do grupo tal devem ser custeadas pela União, do outro grupo tal pelo Estado, e assim por diante.


Essa é uma organização do serviço, no âmbito do Poder Executivo. E aí, na prática, o que ocorre é que o paciente entra com um processo contra o Estado e o juiz manda o Estado fornecer um remédio que, pela organização do SUS, deveria ser fornecido pela União, por exemplo.


Para tentar dar uma organizada nessa confusão, ao longo do tempo o Supremo Tribunal Federal foi fixando parâmetros para judicialização.

Parâmetros para a judicialização


Quando votaram o Tema 500 da Repercussão Geral, os Ministros do STF decidiram que toda vez que o paciente queria pedir um remédio que não está registrado na ANVISA, ele deveria processar a União (ou seja, perante a Justiça Federal), independente de incluir no processo também o Estado e o Município (só não pode deixar de incluir a União).

Outra questão é quando o paciente pretendia um remédio que está registrado na ANVISA, mas ainda não foi incorporado ao SUS.


Como vocês sabem, no dia 18 de maio o STF vai fixar os requisitos que deverão ser preenchidos pelos pacientes nesses casos (definição da Tese do Tema 6 da Repercussão Geral). Dentre os requisitos a serem fixados, com base no que os Ministros adotaram quando julgaram o Tema 500, é possível que partam da mesma lógica.

Ou seja, sendo a CONITEC o órgão encarregado do SUS para analisar a incorporação de novos medicamentos, e estando ela incluída na estrutura organizacional da União, o processo judicial que peça o fornecimento de medicação ainda não incorporada necessariamente deverá ser ajuizado em face da União.


Essa questão poderia ser decidida no Tema 6. Mas, na prática, o STF discute isso em vários temas de repercussão geral.


No Tema 793 o STF discutiu a responsabilidade solidária dos entes pelo dever de prestar assistência à saúde. E decidiram que:

“Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”.


Ou seja, o paciente poderia escolher contra quem ele ajuízaria o processo dele e caberia ao juiz direcionar o cumprimento, conforme as regras de divisão de competências e determinar o ressarcimento a quem tiver pago o que ele determinou.


Quando isso foi julgado, o Ministro Fachin (que era o Relator), foi claro ao dizer que ainda que a legislação (Lei 8.080/90, Decreto 7.508/11, pactuações realizadas na Comissão Intergestores Tripartite) diga qual ente público (União / Estado / Municípios) deve prestar aquele serviço de saúde ou fornecer aquela medicação, o paciente pode escolher contra quem ele entra com o processo, afinal todos eles são responsáveis solidários do dever de prestar saúde.


Mas aí o Ministro Fachin pontuou o seguinte: se por acaso o paciente processar um ente e a responsabilidade por aquilo que ele pediu for de outro ente, o juiz deveria incluir esse outro ente no processo. Por exemplo, se o paciente entrou contra o Estado pedindo um remédio para câncer que deve ser fornecido pela União, o juiz deveria mandar incluir a União no processo (e, nesse caso, remeter o processo para justiça federal, pois todos os processos contra União precisam tramitar na justiça federal).


E o Ministro Fachin também disse o seguinte: se aquela medicação/tratamento que está sendo solicitada não tiver incluída no SUS a União tem que constar no processo (ou seja, o processo vai para justiça federal).


O problema é que na prática isso não deu certo. Por várias razões:

  • Porque muitas vezes nem o juiz sabe quem deve pagar o quê na estrutura do SUS, e por isso não consegue direcionar os processos;
  • Porque entender que tudo que não foi incluído no SUS deve ser cobrado da União aumentaria muito o serviço na justiça federal;
  • Muitos pacientes acabariam desassistidos, porque são poucas as sedes da justiça federal no interior e eles teriam mais dificuldade de ajuizarem os processos, etc).


Com o tempo, o Superior Tribunal de Justiça (e o próprio STF, em alguns processos) passou a dizer que aqueles critérios que foram propostos pelo Ministro Fachin não constaram expressamente na redação da Tese (do Tema 793) e por isso o paciente pode sim continuar escolhendo contra quem ele entra com a ação e só no momento do cumprimento da sentença é que o juiz deveria direcionar esse cumprimento.


Ou seja, na prática, se o paciente entrou contra o Estado (na justiça estadual), pedindo um remédio que ainda não consta do SUS, o juiz não deveria mandar incluir a União e remeter para justiça federal, continuaria com o processo na justiça estadual e lá na frente, na hora de cumprir aquela sentença, ele direcionaria (por exemplo, se o Estado pagou por aquele remédio mandaria a União ressarcir).


E outra parte do Judiciário estava entendendo de forma contrária, que os requisitos que o Ministro Fachin exigiu deveriam ser cumpridos. Para o que nos interessa: se o paciente ajuizou contra o Estado pedindo remédio fora da lista do SUS o juiz deveria remeter para justiça federal.


Isso estava gerando muitos recursos.

No fundo o que a gente está discutindo é isso: se o paciente pode ou não escolher contra quem ele ajuíza e se é ou não obrigatório ajuizar contra a União quando o remédio não foi incorporado.


Na minha opinião, em termos de acesso ao Judiciário e garantia do direito à saúde, me parece que a questão deveria ser resolvida dessa forma: O STF define como deve ser e pronto. Depois o SUS e os entes públicos que se virem em mecanismos internos de ressarcimento de um ente para outro, etc.


Mas o Ministro Gilmar Mendes entendeu que a situação é mais complexa, que essa discussão abrange as relações das estruturas federativas (União, Estado, Municípios) e a política pública precisa ser aperfeiçoada.

Ou seja, o Judiciário (no caso, o STF) precisa enfrentar esse tema não apenas dizendo se o paciente pode ou não escolher contra quem ajuíza e em qual justiça esse processo vai tramitar (estadual ou federal).

Para Gilmar, o STF precisa discutir “desde o custeio até a compensação financeira entre os entes federativos”. O STF, então, é que deve dizer quais os “mecanismos, protocolos e fluxogramas necessários para assegurar o acesso efetivo da população a direito fundamental, sem desequilíbrio financeiro e desprogramação orçamentária”.


E aí isso será discutido em outro julgamento, do Tema 1234 (“Legitimidade passiva da União e competência da Justiça Federal, nas demandas que versem sobre fornecimento de medicamentos registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, mas não padronizados no Sistema Único de Saúde – SUS”).


Até que isso seja discutido nesse Tema (de novo, né rs), os recursos que tramitam no STJ e no STF devem ficar suspensos.

Ou seja, aquela discussão dos juízes nos processos ajuizados pelos pacientes contra o Estado (na justiça estadual), pedindo remédio registrado na Anvisa mas ainda não incluído no SUS, não deve ser analisada pelo STJ e STF nesses casos individuais, deve esperar esse julgamento do STF para definir as balizas. (Os juízes podem continuar analisando esses processos, inclusive as liminares, só a briga sobre quem deve pagar o que e onde o processo deve tramitar é que fica para depois).


No caso do Trikafta®, como já orientamos várias vezes, o ideal é que os processos sejam ajuizados contra a União, na Justiça Federal, para evitar esse tipo de discussão.

Até porque, da forma como o Ministro Gilmar está propondo que ocorra essa discussão, levará décadas para o STF disciplinar todo um mecanismo de fluxograma de custeio e divisão orçamentária para cumprimento dessas decisões.


Letícia Lemgruber é consultora da Associação Brasileira de Mucoviscidose (ABRAM).

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