Cláudio Cordovil

Conitec recebe críticas após aprovação da recomendação final sobre limiares de custo-efetividade no SUS

A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) aprovou uma recomendação final sobre o uso de limiares de custo-efetividade nas decisões em saúde, durante reunião realizada em 31 de agosto. Apesar de ter se passado quase um mês da decisão, o tema recebeu pouca atenção da mídia e diversos atores do setor não tomaram conhecimento da definição.

Até o momento, não houve nenhuma publicação oficial, mas medicamentos que foram analisados e discutidos na pauta da mesma reunião já foram publicados no Diário Oficial da União na semana passada. A recomendação final deve passar pelo crivo de Sandra Barros, secretária de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (SCTIE) do Ministério da Saúde.

A aprovação endossa a proposta que a Avaliação de Tecnologia em Saúde (ATS) deve adotar o valor-referência de 1 PIB per capita por ano de vida ajustado pela qualidade (QALY), o equivalente a 40 mil reais, para inclusão de novas tecnologias no Sistema Único de Saúde (SUS), que vão desde vacinas até tratamentos oncológicos. Em casos excepcionais, como em doenças raras, o valor pode chegar a 3 PIB. A ideia é trazer mais sustentabilidade ao sistema público e garantir a inclusão de tecnologias custo-efetivas ao país, assim como atender a lei 14.313 de 2022, que cobra a regulamentação e divulgação dos critérios utilizados para a avaliação econômica de tecnologias.

Entidades e especialistas entendem que a Conitec não promoveu o debate com todos os atores necessários e envolvidos com os limiares de custo-efetividade

“Temos que ter outros critérios, e tenho certeza que a Conitec está trabalhando nisso, para decidir e priorizar a incorporação de tecnologia. Limiares de custo-efetividade são um dos critérios. Nós concordamos que eles são importantes, mas a nossa grande preocupação quando tudo se torna uma regra é que ela seja aplicada com bom senso e consciência”, afirma Carisi Polanczyk, coordenadora-geral do Instituto de Avaliação de Tecnologia em Saúde (IATS).

O documento reforça que esse não deve ser o único parâmetro adotado de forma isolada para a inclusão de uma tecnologia, além de indicar a possibilidade de adotar a abordagem de fronteira de eficiência, que analisa outros indicadores. Contudo, a recomendação não estabelece critérios específicos sobre diversos pontos, o que tem causado insegurança às sociedades, pacientes, médicos e outros interessados no tema.

Alterações e falta de debate

Fato é que pouco se modificou da recomendação inicial para a que foi aprovada, o que contribuiu para que dois membros do plenário da Conitec se mostrassem contrários à aprovação: Alceu José Peixoto Pimentel, representante do Conselho Federal de Medicina (CFM), e Nelson Augusto Mussolini, representante do Conselho Nacional de Saúde (CNS), mas que não teve seu posicionamento registrado por ter conflitos de interesse, já que é presidente-executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma).

“Nós [CFM] não estamos sendo contrários porque estamos nos negando a discutir. Não estamos sendo contra que se inclua parâmetros para que as decisões da Conitec venham a melhorar a eficiência do sistema. Nós estamos entendendo que esse assunto precisa ser mais debatido com a sociedade”, afirmou Pimentel, do Conselho Federal de Medicina, durante o seu posicionamento.

A maior crítica gira em torno da falta de debate. Apesar da discussão com técnicos e especialistas ocorrer desde 2016, a participação da sociedade como um todo só foi feita através do envio de sugestões na consulta pública e da audiência pública, realizadas entre junho e agosto deste ano. Durante a 112º reunião da Comissão, os membros discutiram alguns pontos que foram levantados pelas 227 contribuições, mas que em sua grande maioria não foram acatados e pouco serviu para estimular mudanças.

“Esse é um primeiro passo. Nenhuma política pública é feita da noite para o dia. A gente vem aprimorando há muitos anos na parte da avaliação das evidências, e agora estamos aprimorando na parte econômica. Primeira etapa de muitas que virão, como qualquer outra instituição de ATS”, explicou Vania Cristina Canuto Santos, diretora do Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias e Inovações em Saúde (DEGITS), durante a reunião.

Mas para Eduardo Calderari, presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), faltou mesmo ampliar o debate: “A gente acredita que esse tipo de discussão e decisão tem que ser feito de uma forma muito ampla e com todos atores da cadeia. A partir do momento que você cria um grupo reduzido que não contempla todos esses atores, fica extremamente difícil concordar com o que está sendo debatido e proposto”. A Interfarma participou da consulta pública e da audiência pública, enviando contribuições, mas vê com preocupação e pesar que elas tenham sido rechaçadas.

Poucas definições pela Conitec

Durante as 4 horas que membros da Conitec se debruçaram sobre o tema, houve respostas a alguns pontos questionados, como os valores propostos e falta de definição de termos. A definição de doenças raras, por exemplo, passa a seguir o entendimento da Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, que indica que são aquelas patologias com 65 pessoas afetadas em cada 100.000 indivíduos. Já para “doenças graves” houve longa discussão sobre a definição ideal, e os membros encontraram dificuldades em apontar uma descrição melhor, permanecendo semelhante à proposta original.

Também houve a adição do uso de limiares alternativo para quando não for possível calcular por QALY, adotar a unidade por ano de vida ganho (sigla LYG, do inglês “life years gained”), que será equivalente a 35 mil reais. O valor referência de 1 PIB por QALY também foi questionado, mas não houve alterações. Segundo os membros, o valor foi baseado nos estudos do Instituto de Efectividad Clínica y Sanitaria (IECS), organização independente afiliada à Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires (UBA).

O Brasil não é a Inglaterra, a Argentina ou nenhum outro país. O Brasil é o Brasil. Não adianta se basear em um estudo seja de qual instituição for, porque qual a necessidade do país e a disponibilidade de recursos que temos? São perguntas que não temos respostas. A subjetividade de todos argumentos colocados é extremamente alta e o impacto que isso vai gerar é muito mais alto ainda”, argumenta Calderari, da Interfarma.

O debate na reunião explicita que diversos pontos parecem claros aos membros da Conitec. Contudo, se não estiverem postos a todos interessados, podem gerar ruído e desconfiança sobre a criteriosidade do processo, além de deixar subjetivos a quem os interpretar. Durante as falas, membros apontam que diversos pontos devem ser mais detalhados no documento final, sem previsão de ser publicado. Outros pontos foram indicados para serem definidos em reuniões e conversas posteriores, mas que também não se sabe quando ocorrerão.

“Sempre o amplo me preocupa porque acaba dando espaço para questões de viés, dá oportunidade para as pessoas fazerem interpretações diferentes da lei. Por trás de qualquer recomendação, e isso tem sido em outras áreas, você tem um detalhamento metodológico, um aprimoramento do que tem que ser feito, quais os custos que tem que ser incluídos”, afirma Carisi, coordenadora-geral do IATS.

Critérios e cronograma

Soraya Araújo, sócia e especialista em Relações Institucionais e Governamentais da Colabore com o Futuro, entidade de advocacy com foco em Saúde, lembra que o documento em si não é uma regulamentação: “A gente não tem a regulamentação disso. É um documento que não diz como vai ser isso. E quando a gente não sabe como vai acontecer, nossa primeira reação é dizer que não quer. A crítica que faço é que não temos visibilidade de como vai ser a regulamentação. A intenção entendo e acredito ser boa. Pode de alguma forma organizar esse sistema e está refletindo o que outros países vêm fazendo”.

A posição da especialista vai ao encontro dos posicionamentos do CFM, CNS e Interfarma. O tema ter sido debatido de forma aberta por pouco tempo, cerca de 3 meses entre a abertura da consulta pública e a aprovação da recomendação final, é parte da insatisfação dos envolvidos.

Durante a reunião da Conitec, membros apontam que esse tema está sendo discutido há 6 anos, e que houve tempo hábil para as discussões. “Está sendo debatido desde 2016, mas para quem e com quem? Muito fechado. É acadêmico, pessoas de dentro do próprio governo, etc. Ficou fechada a discussão e a hora que saiu parecia um negócio novo, porque não colocou todos atores que tinham que colocar ao longo dos 6 anos”, questiona Soraya.

Eduardo Calderari, da Interfarma, concorda que a proposta “não está clara, não está estruturada. Existem vários pontos de interrogação por parte dos demais atores da cadeia, no que diz respeito a metodologia de aplicação, a criteriosidade, a peso sobre os fatores, e até mesmo qual instrumento jurídico que vai regulamentar essa implementação”. Ainda, o presidente da associação é enfático ao apontar que mesmo a Organização Mundial da Saúde (OMS) desaconselha o uso de limiares de custo-efetividade para a tomada de decisão.

Outro ponto criticado é a falta de um cronograma, já que não há uma agenda disponível que aponte quais os próximos passos desse processo. Na reunião seguinte, agendada para essa quarta-feira (5), só estava previsto na pauta a assinatura da ata da deliberação passada, que aprovou a recomendação final. 

“Se houver algum cronograma é interno. Eu nunca vi um planejamento dizendo quais tópicos serão abordados no próximo mês ou se irão constituir uma reunião de trabalho com diferentes especialistas. Acho que é frágil. Estamos em período eleitoral e isso dificulta muito. Infelizmente, todo um corpo técnico à disposição para trabalhar e acaba ficando preso por decisões políticas e não vai adiante”, afirma Carisi, do IATS.

O Ministério da Saúde foi procurado, mas não se posicionou até o fechamento da matéria. Assim que se manifestar, o posicionamento será acrescentado.

1 a 3 PIB per capita é pouco?

Muito se discutiu sobre o valor proposto de 1 a 3 PIB per capita por anos de vida ajustado pela qualidade (QALY). Mesmo que seja preciso definir critérios e limites para tornar o sistema sustentável, entidades ligadas a pacientes com doenças raras e ultrararas, argumentam que esses valores podem acabar limitando o acesso de pacientes aos melhores tratamentos.

Com o avanço da tecnologia e o surgimento de tratamentos cada vez mais específicos, que chegam à casa dos milhões de reais, existe a preocupação de que eles nunca sejam incluídos no SUS, já que não seriam considerados custo-efetivos. “Entendo que existe recurso finito no Brasil e em todos os países do mundo. Mas estabelecer um limiar de 120 mil reais para uma doença rara, como você vai garantir inovação aos pacientes e trazê-las ao país?”, aponta o presidente da Interfarma.

A associação fez um levantamento do custo de medicamentos incorporados ao sistema público entre 2016 e 2022. Analisando 42 decisões relacionadas a doenças não raras e não pediátricas, encontraram razão incremental de custo-efetividade (RCEI) acima de 1 PIB para 7 medicamentos incorporados, para diferentes tipos de câncer, diabetes tipo 1 e outras doenças. Mesmo se considerarmos que eles sejam plausíveis de limiares alternativos, 5 tratamentos ultrapassam 3 PIB atuais. A não incorporação deles poderia impactar mais de 250 mil pessoas, de acordo com o documento.

“Estamos só no começo da primeira onda de novas tecnologias que devem ser lançadas no mercado e que vão tornar esse desafio mais complexo daqui para a frente. A rota de pesquisa do pipeline das indústrias está saindo do modelo de medicamentos para grande população de pacientes elegíveis para uma medicina muito mais personalizada. Onde você vai ter soluções para subgrupos de subgrupos de certas patologias, com um número de pacientes muito menor que vão se beneficiar disso”, aponta Eduardo.

Mesmo que o uso de limiares de custo-efetividade não seja o único critério a ser levado em consideração pela avaliação de tecnologia em saúde, faltam definições de quais e quando outros critérios serão adotados, assim como outras abordagens como a fronteira de eficiência.

“Existem considerações éticas e sociais. Não podemos com isso deixar que distorções ocorram, que doenças raras deixem de ser tratadas, que a gente trate da mesma forma uma doença de final de vida com uma outra que está relacionada ao bem-estar temporário, e acabe punindo a sociedade. No momento que se estabelece algo explícito dessa forma também tem que ter a sensibilidade de criar outros critérios para que não seja duramente aplicado como uma regra, como uma lei”, alerta Carisi Polanczyk, do IATS.

Soraya Araújo, da Colabore para o Futuro, defende que além da análise de tecnologia, que confere a segurança, eficácia e custo-efetividade, é preciso levar em consideração a perspectiva do paciente, já que é ele que vai ser beneficiado ao final do processo. A ideia é que ele possa participar da incorporação daquele medicamento. “Estamos discutindo muito o que é valor em saúde e a partir de qual perspectiva. Por isso, entendemos que é necessário considerar o olhar do paciente para as escolhas, e a preferência da sociedade também”, afirma.

Outros problemas e soluções

Na visão de Carisi Polanczyk, do IATS, existe ainda um outro problema na discussão do uso de limiares: “A Saúde Suplementar não está nessa discussão, e isso atrapalha. No momento que tiver coisas que ela não consegue pagar, porque define dentro das suas regras e políticas, sobra ao SUS. Essa discussão tem que ser mais ampla, com a saúde pública e privada. Em termos financeiros, direta ou indiretamente, um reflete o outro”.

Em março, entrou em vigor a lei 14.307 de 2022, que obriga que tratamentos avaliados e recomendados pela Conitec, e incorporados ao SUS, sejam incluídos em até 60 dias no rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Com isso, a questão do uso de limiares de custo-efetividade também impacta as operadoras de saúde.

Eduardo Calderari, da Interfarma, afirma ainda que o país tem outros problemas que interferem diretamente na inclusão de novas tecnologias do SUS quando a questão é a custo-efetividade de medicamentos e tratamentos, e consequentemente, das negociações da indústria com o Governo Federal:

“O Brasil tem os menores preços do mundo. É feito um comparativo entre o país de produção e a cesta de 9 países, e o preço que é aprovado pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) vai ser o menor deles. Uma vez aprovado, para compras governamentais você tem um desconto mandatório, o  Coeficiente de Adequação de Preços (CAP), que institui um desconto de  22% de largada”.

Uma das alternativas seria reduzir a carga tributária sobre medicamentos, que em 2021 era de 31,3% no Brasil. Levantamento da Interfarma comparando o imposto local com o de outros países, mostra que temos uma das mais altas cargas tributárias nesse setor. “Temos países com taxa 0% para medicamentos humanos, como Colômbia e Venezuela. Temos países que são altamente questionados do ponto de vista de acesso, com uma taxa muito menor. Na Argentina e Chile é entre 18% e 20%”, argumenta o presidente.

Eduardo ainda defende que falta transparência nos pareceres contrários à incorporação de medicamentos, onde por vezes a questão do custo do medicamento é o ponto a ser discutido, mas a evidência científica é colocada em cheque. “Se não tiver recursos para incorporar a tecnologia, coloque sobre a mesa. Existe uma possibilidade da indústria reduzir o preço? Se não tiver, o Brasil não tem como pagar por ela”, afirma.

Da mesma forma, tanto Carisi quanto Eduardo questionam a destinação de recursos para medicamentos e a ineficiência da gestão. Seria possível discutir a destinação de recursos para a compra de medicamentos para aumentar os valores disponíveis para a incorporação de novas tecnologias.

“Quando você olha para o valor total do Ministério da Saúde o valor cresce todos os anos. Infelizmente, com a questão da pandemia batemos 140 bilhões de reais. Só que para a compra de medicamentos, somente 15 bilhões. São vários fatores que precisam ser analisados aqui”, conclui o presidente da Interfarma.


Reproduzido do site Futuro da Saúde

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