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À medida em que instituições de saúde se aproximam do pico da pandemia de COVID-19, discute-se como distribuir de maneira proativa e ética os escassos recursos de assistência médica para tratar os doentes.
O noticiário está repleto de relatos sobre a grave inadequação das instalações (hospitais e principalmente leitos de UTI), o desencontro entre suprimentos, como respiradores, e necessidades esperadas, e a escassez de profissionais de saúde para gerenciar a crise. Normalmente reservada para cursos de bioética ou exercícios de planejamento de preparação para emergências, a questão da justiça distributiva – que deve ser priorizada para tratamento contra uma doença potencialmente fatal – se tornou uma realidade cotidiana em outros países, principalmente na Itália. Estados mais afetados pela pandemia, como Nova York, Massachusetts e Califórnia, já prevêem ter que racionar os cuidados.
Nos últimos anos, os setores de saúde pública dedicaram enorme atenção ao tratamento dos determinantes sociais da saúde _ fatores sociais e estruturais iniciais que perpetuam a iniquidade em saúde. Uma abordagem de justiça em saúde exige que analisemos fatores anteriores que levam a problemas de saúde, principalmente a maior prevalência de doenças crônicas. Essa abordagem não considera que a doença crônica seja distribuída igualmente entre as populações; a história de discriminação racial, desigualdade de renda e estigma baseado no status social perpetua enormes disparidades no estado de saúde entre as populações. Uma abordagem de justiça em saúde é tão importante durante um surto de doença infecciosa quanto em tempos normais.
Pessoas com certos tipos de doenças crônicas provavelmente sofrerão doenças graves e morte se contrairem COVID-19. Como a prevalência de doenças crônicas está altamente correlacionada com raça e pobreza, não é de surpreender que estamos vendo disparidades raciais nos resultados do COVID-19.
O CDC alerta que pessoas com comorbidades como asma, doenças cardíacas e diabetes correm maior risco de doenças graves por causa do COVID-19. Existem disparidades raciais e étnicas associadas a todas essas doenças crônicas. A asma, por exemplo, apresenta um risco significativo de complicações com o COVID-19. A prevalência de asma é maior entre afro-americanos e porto-riquenhos adultos e os afro-americanos têm duas vezes mais chances de morrer de asma do que os brancos. A pobreza também está altamente correlacionada com a asma: 10,8% das pessoas pobres têm asma, em comparação com 6,5% dos não-pobres. É amplamente aceito que o ambiente social – incluindo pobreza, condições precárias de moradia, exposição à baixa qualidade do ar e estresse – desempenha um papel significativo na asma.
Os primeiros dados demonstram que as pessoas de cor são desproporcionalmente mais propensas a contrair o COVID-19 e a morrer com isso do que os brancos. Em Illinois, por exemplo, as minorias representam 39% da população do estado, mas respondem por 48% dos casos confirmados e 56% das mortes. Os negros, em particular, estão experimentando taxas significativamente mais altas de infecção e morte. Como valor central da ética em saúde pública, a justiça exige que levemos em conta a desigualdade estrutural na tomada de decisões sobre a alocação de recursos. Além disso, dadas as correlações entre doença crônica e raça e etnia, a alocação com base no fato de um paciente ter ou não comorbidades provavelmente corroerá ainda mais a confiança nos sistemas de saúde pública, entre os grupos desfavorecidos.
À medida que as comunidades médica e de saúde pública lidam com os dilemas éticos excruciantes à sua frente e tentam pesar diferentes valores éticos, como a utilidade _ maximizando o maior benefício potencial de recursos limitados _ e a igualdade _ tratando igualmente grupos igualmente situados _ a justiça exige que examinemos até que ponto priorizar a utilidade e a igualdade pode realmente discriminar aqueles que experimentam uma desvantagem social já acumulada.
[su_heading size=”18″]Orientações recentes para instituições de saúde[/su_heading]
No auge da crise da COVID-19, a Sociedade Italiana de Anestesia, Analgesia, Reanimação e Terapia Intensiva (SIAARTI) publicou suas Recomendações de Ética Clínica para Alocação de Tratamentos em Terapia Intensiva, em Circunstâncias Excepcionais e com Recursos Limitados. As recomendações do SIAARTI adotam uma abordagem decididamente utilitária. Eles sugerem que um limite de idade para admissão hospitalar pode ser necessário para “economizar recursos limitados que podem se tornar extremamente escassos para aqueles que têm uma probabilidade muito maior de sobrevivência e expectativa de vida, a fim de maximizar os benefícios para o maior número de pessoas”. Eles também recomendam que “comorbidades e status funcional” sejam avaliados para decidir quem recebe recursos escassos, como ventiladores.
Em um comentário no New England Journal of Medicine , de 23 de março, Ezekiel Emanuel e colegas avaliam um conjunto de valores éticos para desenvolver recomendações específicas para alocar recursos médicos escassos em hospitais dos EUA em resposta à epidemia. Como o SIAARTI, eles propõem que “maximizar os benefícios requer consideração do prognóstico _ quanto tempo o paciente provavelmente viverá se tratado_ o que pode significar dar prioridade a pacientes mais jovens e àqueles com menos condições coexistentes”. Eles rejeitam a alocação de atendimento por ordem de chegada, argumentando que, para pacientes com prognóstico semelhante, a igualdade exige que os recursos sejam distribuídos por alocação aleatória, como em uma loteria.
[su_heading size=”18″]Tomada de decisões éticas em tempos de crise[/su_heading]
Diante de dilemas éticos tão difíceis, os especialistas em saúde pública e bioeticistas enfatizam a importância de uma deliberação proativa, racional e transparente que cuidadosamente leve em conta diferentes valores éticos. Uma abordagem proativa pode ajudar a evitar a tomada de decisão intempestiva e discricionária pelos profissionais de saúde na linha de frente, aliviando o significativo sofrimento moral que advém da decisão a respeito de quem deve viver e quem deve morrer. Durante uma pandemia, na qual decisões excruciantes em tempo real devem ser tomadas, o equilíbrio de valores éticos concorrentes se torna mais desafiador e ainda mais importante.
Abordagens igualitárias, como a escolha aleatória (randomização), podem dar a impressão de que o sistema é justo, mas mascaram a desigualdade sistêmica que nossos sistemas de saúde e de saúde pública carregam consigo. A atenção às consequências involuntárias é de vital importância na busca de ações que sejam equânimes e justas. A maximização do benefício, priorizando o atendimento àqueles que não sofrem de comorbidades, por exemplo, perpetuará as disparidades raciais e socioeconômicas existentes. Além disso, garantir que os pacientes não sejam priorizados para atendimento com base no status ou na capacidade de pagamento é crucial para preservar a igualdade de tratamento, usando critérios como se um paciente tem condições preexistentes pode, de fato, servir como um indicador (proxy) para raça e renda, e, assim, discriminar.
Os profissionais de saúde, que testemunham todos os dias disparidades de saúde em suas comunidades, começaram a defender uma abordagem mais justa para a alocação de recursos. Em 7 de abril de 2020, o Escritório Executivo de Saúde e Serviços Humanos de Massachusetts emitiu uma Diretriz de Planejamento de Padrões de Cuidados de Crise para a Pandemia COVID-19 para orientar os hospitais na alocação de recursos, caso haja escassez. Um grupo de 250 profissionais de saúde enviou uma carta ao governador Charlie Baker, rejeitando as orientações, que, muito parecidas com a emitida pelo italiano SIAARTI, priorizam os ventiladores para pacientes mais saudáveis. Os profissionais de saúde argumentaram que as diretrizes prejudicam pessoas de cor e outros grupos vulneráveis que sofreram injustiça histórica.
[su_heading size=”18″]Para promover a justiça, tomar decisoes de baixo para cima[/su_heading]
Até agora, as abordagens éticas propostas para a alocação de escassos recursos de saúde em resposta à pandemia do COVID-19 priorizaram os valores da utilidade (maximização do benefício) e da igualdade em detrimento da justiça. Compreensivelmente, eles se concentraram em fornecer orientações específicas ao pessoal da linha de frente, que, em breve, poderá ser confrontado com a tomada de decisões em situação de crise. Mas, do ponto de vista da ética em saúde pública, não devemos perder de vista de que modo decisões de alocação de recursos podem impactar populações específicas. Nos níveis estadual e federal, há uma disputa caótica entre administradores de hospitais e agentes locais e estaduais para garantir suprimentos contactando individualmente fornecedores particulares e suplicando a funcionários do governo federal, ambos competindo entre si por recursos escassos. Isso tem implicações éticas significativas a respeito de que comunidades obtêm recursos; aqueles com maior poder e conexões provavelmente serão mais bem-sucedidas em garantir o que precisam.
Os processos deliberativos nos níveis estadual e federal devem ser orientados por dados e incorporar uma perspectiva de justiça sobre como os recursos devem ser alocados. O mapeamento da necessidade de recursos usando não apenas os casos relatados em uma determinada área e capacidade atual de assistência à saúde, mas também dados demográficos que representam vulnerabilidade econômica e social e dados de vigilância sobre a prevalência de comorbidades dentro de uma comunidade, ajudarão a impedir que recursos sejam indo para as instituições e populações de pacientes mais privilegiadas. Esse tipo de planejamento de baixo para cima não evitará a necessidade de planejamento das instituições de saúde de primeira linha, mas proporcionará ao público mais confiança de que as decisões de alocação estão sendo tomadas com justiça e equidade.
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Tradução de Cláudio Cordovil
Fonte: Health Affairs