A Rede Brasileira de Avaliação de Tecnologias em Saúde (Rebrats) abriu consulta pública sobre a atualização das Diretrizes Metodológicas de Avaliação Econômica em Saúde. O prazo para envio de contribuições vai até 12 de setembro e qualquer pessoa — física ou jurídica — pode participar por meio de formulário eletrônico.
O documento, elaborado pelos Núcleos de Avaliação de Tecnologias em Saúde (NATS) do Hospital Moinhos de Vento, em parceria com o DGITS/SECTICS/MS, busca padronizar metodologias de avaliação econômica e subsidiar decisões sobre incorporação de tecnologias no SUS.
Onde as diretrizes falham para doenças raras e ultrarraras
Embora a atualização represente um avanço para a padronização de análises econômicas, a avaliação realizada pelo Academia de Pacientes identificou lacunas graves que impactam diretamente os pacientes com doenças raras. Basta dizer que, ao longo de mais de 150 páginas, a expressão “doenças raras” aparece somente seis vezes, e muito en passant.
Definição Restritiva de Doenças Raras:
As diretrizes adotam uma definição de doença rara baseada exclusivamente na prevalência (até 65 casos por 100.000 habitantes) e ultrarrara (até 1 por 50.000)
Embora essa delimitação seja um ponto de partida para identificar a população-alvo, essa abordagem é considerada insuficiente por não incluir fatores cruciais como a gravidade da doença, a inexistência de tratamentos eficazes ou o potencial de avanço terapêutico . Recomendações internacionais sugerem incorporar a gravidade e a ausência de alternativas terapêuticas na definição para orientar políticas de financiamento .
Ausência de Limiares Específicos de Custo-Efetividade para terapias avançadas e ultrarraras:
As diretrizes brasileiras aplicam o mesmo limiar de custo-efetividade para todas as tecnologias . A Conitec, em 2023, adotou um limiar explícito reconhecendo que esse valor não deve ser utilizado de forma excludente
As próprias diretrizes, em suas “Recomendações sobre o limiar de custo-efetividade”, indicam a possibilidade de um limiar alternativo de até três vezes o valor de referência em situações específicas, incluindo doenças raras que impliquem redução importante de sobrevida ajustada pela qualidade. Contudo, a regulamentação atual não inclui terapias genéticas e para doenças ultrarraras nesta provisão específica, criando insegurança e potencial exclusão para essas inovações.
Foco Exclusivo em Ensaios Clínicos Robustos:
As diretrizes priorizam evidências provenientes de ensaios clínicos randomizados (ECR) e a necessidade de comparadores bem definidos.
Embora os ECR sejam o padrão-ouro para evidências, essa exigência é um grande desafio para doenças raras. Populações pequenas e heterogêneas, somadas à frequência de inexistência de tratamentos de referência, resultam em estudos de braço único ou baseados na história natural da doença. Frameworks adaptados internacionalmente aceitam desfechos substitutos, estudos observacionais e registros de pacientes para estas condições .
Falta de Orientação sobre Modelos de Pagamento Inovadores:
O documento não aborda mecanismos de pagamento por desempenho ou acordos de risco compartilhado, que são cruciais para a viabilidade de terapias de alto custo em doenças raras, como as terapias gênicas .
A inovação na área de terapias para doenças raras demanda soluções flexíveis de financiamento, como parcelamento de pagamentos e reembolso condicionado a resultados, já praticadas internacionalmente (e.g., Zolgensma® no NHS) . A ausência dessa orientação nas diretrizes pode dificultar o acesso a essas terapias no Brasil.
Ausência de Diretrizes para Terapias Avançadas e Curativas:
As diretrizes mencionam que terapias avançadas (produtos de terapia gênica e celular) serão tratadas em um documento futuro .
Essa lacuna deixa os avaliadores sem parâmetros provisórios para tecnologias já em análise, com o risco de atrasar a incorporação de inovações disruptivas . Marcos regulatórios internacionais já estabelecem critérios específicos para lidar com as incertezas de longo prazo e estratégias de precificação baseadas em valor para essas terapias.
Não Inclusão de Elementos Ampliados de Valor:
O documento enfatiza predominantemente a razão de custo por QALY .
Para doenças raras, outros elementos são cruciais para capturar o valor social total da intervenção, como a severidade da doença, a equidade, o impacto sobre cuidadores e os benefícios científicos futuros . Agências como a ICER (EUA) e o NICE já consideram fatores contextuais e aplicam modificadores de severidade para melhorias de QALY em casos de grande perda .
Perspectiva Limitada de Custos:
As diretrizes recomendam primariamente a perspectiva do sistema de saúde . Embora a perspectiva da sociedade possa ser apresentada como análise secundária, o caso de referência deve incluir apenas os custos diretos com cuidados de saúde na perspectiva do pagador, excluindo custos diretos fora do setor (como transporte ou de cuidadores) e custos indiretos (como perda de produtividade).
Essa abordagem pode subestimar o valor real das terapias para doenças raras, que frequentemente geram benefícios sociais e econômicos significativos fora do setor saúde. O framework do ICER, por exemplo, sugere análises de perspectiva societal modificada quando os custos fora do sistema de saúde são significativos .
Carência de Métodos Multicritério e Participação de Pacientes:
O documento não propõe o uso de abordagens multicritério (MCDA) e não destaca a participação estruturada de pacientes e familiares , embora reconheça a importância de envolver diferentes stakeholders na caracterização do problema.
As melhores práticas internacionais recomendam MCDA e a inclusão de representantes de pacientes nas comissões de avaliação para integrar múltiplos critérios de valor e garantir a legitimidade e transparência das decisões.
O que fazer?
A atualização das Diretrizes Metodológicas de Avaliação Econômica em Saúde é um avanço importante para o Brasil, promovendo a padronização e a confiabilidade das avaliações econômicas. Contudo, para que o país se alinhe às melhores práticas internacionais e garanta a equidade e o acesso a terapias inovadoras para pacientes com doenças raras, é urgente que as lacunas identificadas sejam abordadas.
A participação ativa na consulta pública é fundamental para que as seguintes recomendações sejam consideradas e implementadas:
- Revisar a definição de doença rara para incluir critérios de gravidade e ausência de terapias.
- Estabelecer limiares de custo-efetividade flexíveis para terapias gênicas e doenças ultrarraras, permitindo valores mais altos ou pesos de severidade e raridade.
- Aceitar evidências alternativas (registros, estudos de braço único, métodos bayesianos, desfechos substitutos) quando ECRs não forem viáveis.
- Prever comparadores adequados, incluindo a história natural da doença ou os melhores cuidados de suporte na ausência de tratamento padrão.
- Incorporar elementos ampliados de valor (severidade, impacto sobre cuidadores, equidade, inovação científica) e integrar abordagens multicritério.
- Incluir a perspectiva societal e custos indiretos em análises complementares.
- Desenvolver diretrizes específicas para terapias avançadas e curativas, abordando incertezas e mecanismos de pagamento inovadores.
- Promover maior participação de pacientes e especialistas nas comissões de avaliação.
Adaptar o marco normativo às particularidades das doenças raras é um passo crucial para a equidade, inovação e sustentabilidade do SUS, garantindo que nenhum paciente fique para trás na corrida por tratamentos transformadores.