Urge oferecer diagnóstico precoce e possibilidade de tratamento e reabilitação
Magda Carneiro-Sampaio*
No último dia 16 de dezembro, a ONU fez um apelo histórico aos países-membros em favor das pessoas com doenças raras e suas famílias para que tenham acesso a bons serviços de saúde, proteção social e educação e possam alcançar seu pleno potencial de desenvolvimento e participação na sociedade. A ONU reafirmou os direitos inalienáveis de todo ser humano, dentro dos princípios da equidade, justiça social e eliminação de todas as formas de discriminação. O Brasil é um dos 54 signatários dessa resolução.
O conceito de doença rara (DR) está ligado à sua frequência na população. O Ministério da Saúde aceita como qualquer condição com frequência igual ou menor que 65/100 mil, ou seja, 1,3 pessoa afetada a cada 2 mil. Na Comunidade Europeia, adota-se um critério próximo e fácil de gravar de 1 a cada 2 mil pessoas. Grande parte das DRs (mais de 80%) é de origem genética e apresenta uma enorme diversidade de manifestações clínicas, tanto em sistema/órgão(s) afetado(s) como pela gravidade. Estima-se que existam mais de 8 mil DRs diferentes.
Temos como exemplos desde as hemofilias e os dismorfismos craniofaciais até o grande grupo dos erros inatos do metabolismo, muitos dos quais levam a alterações do desenvolvimento neuropsicomotor, passando pelo grupo crescente dos erros inatos da imunidade (também conhecido como imunodeficiências primárias), com grande susceptibilidade a infecções, área na qual trabalho há quatro décadas.
Cabe lembrar que a síndrome de Down é uma condição de origem genética (trissomia do cromossoma 21), mas não é uma DR, com uma frequência de cerca de 1 em cada 700 nascidos vivos.
Estudos franceses mostram que entre 5% e 6% da população apresenta alguma DR. Desta forma, estima-se que tenhamos no Brasil cerca de 12 milhões de pessoas afetadas por diferentes doenças raras! A própria ONU em sua divulgação da resolução estima que existam 300 milhões de pessoas com DRs em todo o mundo. Em outras palavras, cada doença isoladamente é rara, porém o conjunto das DRs é frequente, e o número de pessoas afetadas é alto, com grande impacto para os serviços de saúde. Assim, é preciso uma extensa mobilização social para se oferecer diagnóstico precoce e possibilidade de tratamento (nos casos em que há) e reabilitação.
Em 2014, o Ministério da Saúde lançou a portaria 199 regulamentando a assistência a pessoas com DRs, medida que vem sendo paulatinamente implementada. No estado de São Paulo, a questão começou a ser tratada em 2011 com uma articulação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP com a Secretaria de Estado da Saúde. Iniciou-se a concepção do projeto da Rede Dora (doenças raras), uma articulação entre as escolas médicas e o SUS com o objetivo de melhor atender os pacientes.
Se por um lado a pandemia retardou o desenvolvimento do programa, por outro trouxe grandes perspectivas na área da saúde digital, em particular para interconsultas entre médicos da linha de frente e especialistas, encurtando o tempo de diagnóstico e permitindo a adoção de terapêuticas eficazes.
A triagem neonatal (“teste do pezinho”) representa a primeira oportunidade de detecção de DRs, num momento em que há possibilidade real de tratamento eficaz de alguns defeitos e prevenção de sequelas de todos os detectados. No Brasil, todos os recém-nascidos são testados para cinco DRs (fenilcetonúria, hipotireoidismo congênito, fibrose cística, hiperplasia adrenal congênita e deficiência de biotinidase) e para a doença falciforme (hemoglobinopatia). Hoje é possível ampliar, de forma escalonada pelo SUS, a detecção para 53 DRs, como já ocorre em algumas maternidades privadas.
Doenças raras são hoje um tema de interesse de todos!
Reproduzido da seção Tendências/Debates da Folha de S. Paulo, em 6/1/2022
*Professora titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da USP, é pesquisadora do CNPq e membro da Academia Brasileira de Pediatria