Por Jessica Davis Plüss
Quando em janeiro passado o CEO da Novartis, Vas Narasimhan, apresentou os resultados anuais da empresa no ano de 2023, o Zolgensma nem sequer foi mencionado. Lançado com grande destaque em 2019, o medicamento é a primeira terapia gênica focada em tratar a atrofia muscular espinhal (AME) – um distúrbio neuromuscular raro e a principal causa genética de mortalidade infantil em todo o mundo.
A fórmula única foi originalmente apresentada como uma possível cura para a AME e um dos seis principais fatores de crescimento da gigante farmacêutica suíça com potencial de vendas multibilionárias. Na época, a estimativa de consenso entre os analistas era de que as vendas poderiam chegar a US$ 1,9 bilhão por ano, embora a previsão de um banco de investimento fosse de até US$ 2,8 bilhões. Em 2021, as vendas aumentaram 46%, chegando a US$ 1,35 bilhão, depois que a Agência Europeia de Medicamentos concedeu (EMA) autorização condicional para o tratamento em 2020.
O Zolgensma, único tratamento para bebês que nascem com uma doença genética rara e muitas vezes fatal, foi lançado no mercado há cinco anos pelo preço de US$ 2,1 milhões. Mas a queda nas vendas e a dificuldade de conquistar novos mercados está aumentando a pressão sobre a suíça Novartis, fabricante do medicamento.
Mas o Zolgensma®, o nome comercial do medicamento onasemnogene abeparvovec, não conseguiu manter o ritmo de crescimento. Em 2022, as vendas globais aumentaram apenas 1% em dólares e, em 2023, caíram 11%, para US$ 1,21 bilhão. Nos Estados Unidos, o maior mercado individual, as vendas caíram 14% no ano passado, chegando em US$ 372 milhões, em um segundo ano de queda consecutiva.
A retração nas vendas não surpreende Matthias Bünte, sócio-gerente da consultoria Roland Berger, sediada em Zurique e especializada em mercado e estratégias de crescimento para empresas farmacêuticas. “Após a fase inicial de crescimento nos principais mercados, as vendas são limitadas pela taxa de natalidade de pacientes com AME elegíveis”, disse Bünte. “Isso é esperado no caso de um tratamento único. Não é como um tratamento crônico, que proporciona um fluxo de receita contínuo que cresce a cada novo paciente.”
A queda nas vendas do Zolgensma e seu destaque cada vez menor na lista de lucros da Novartis está muito longe da perspectiva otimista que a empresa estimou quando comprou em 2018 a desenvolvedora do medicamento, a start-up AveXis, listada na Nasdaq, por US$ 8,7 bilhões. Na época, o plano era que a compra impulsionasse os negócios da Novartis com terapia genética.
Uma das principais razões para a queda nas vendas é que “os mercados estabelecidos [como os EUA] estão tratando principalmente pacientes incidentes em vez de pacientes prevalentes”, disse um porta-voz da Novartis à SWI em um comunicado. Em outras palavras, a empresa já alcançou os pacientes com AME elegíveis e, no futuro, só poderá contar com os pacientes recém-diagnosticados para sustentar o crescimento das vendas do medicamento nesses mercados.
Para a Novartis, tem sido um desafio penetrar em mercados fora dos países relativamente ricos como EUA e as nações europeias, pois os governos com orçamentos apertados para a saúde questionam se o medicamento é eficaz o suficiente para justificar seu preço.
A Agência de Alimentos e Medicamentos dos EUA (FDA), amplamente considerada o padrão ouro global para aprovações de medicamentos, foi a primeira a dar sinal verde ao Zolgensma em 2019, quando o preço fixado pela Novartis era de impressionantes US$ 2,1 milhões, tornando-o, na época, o tratamento único mais caro de todos os tempos.
Embora o Zolgensma tenha sido aprovado em 51 países até janeiro de 2024 e tenha tratado mais de 3.700 pacientes, apenas 35 países oferecem reembolso comercial. Isso faz com que muitos portadores de AME não tenham condições de comprar um medicamento que pode salvar vidas ou tenham que recorrer ao crowdfunding para arrecadar o dinheiro.
Justificando o preço
A AME afeta cerca de 1 em cada 10 mil bebês em todo o mundo, o que corresponde a cerca de 300 bebês por ano nos EUA. É causada por uma mutação no gene SMN1, que impede que as células produzam uma quantidade suficiente da proteína SMN, que envia sinais vitais aos músculos. A deficiência prejudica os neurônios motores, causando o enfraquecimento dos músculos.
Sem tratamento, os bebês com a forma mais grave da AME talvez nunca consigam levantar a cabeça ou as pernas e tenham dificuldade para engolir e respirar. A maioria morre aos dois anos de idade, geralmente devido a problemas respiratórios. Os sintomas da AME também podem se desenvolver em adultos, mas são menos graves.
O que é a AME?
Os medicamentos para tratar doenças raras como a AME podem levar anos e bilhões de dólares para serem desenvolvidos. As empresas os vendem por um preço alto para recuperar o investimento e compensar os baixos volumes.
A Novartis justificou o preço do Zolgensma argumentando que se tratava de uma infusão única que tinha como alvo a raiz genética da doença. Ao substituir um gene defeituoso por um funcional, o medicamento não apenas salvaria vidas, mas pouparia as famílias e os sistemas de saúde pública de anos de tratamentos caros.
Antes da terapia gênica chegar ao mercado, o único outro tratamento disponível para a AME era a nusinersena, lançado como Spinraza® pela empresa norte-americana Biogen em 2016. A alternativa custava de US$ 300 mil a US$ 500 mil por ano durante toda a vida do paciente. Se tomado por uma década, o medicamento, que é administrado como uma injeção medular três vezes por ano, ultrapassaria o preço de tabela de US$ 2,1 milhões do Zolgensma.
A Novartis não explicou exatamente como calculou o preço do Zolgensma e avaliações independentes indicam estimativas muito diferentes de quanto ele deveria custar – de US$ 710 mil a mais de US$ 2,1 milhões – aumentando a controvérsia sobre a justificativa da empresa para cobrar um preço tão alto.
O fato de tão poucos pacientes terem recebido o medicamento quando o preço foi fixado também levantou dúvidas sobre seu valor real. Como muitos tratamentos para doenças raras que ameaçam a vida, o Zolgensma recebeu sinal verde nos EUA, na Europa e no Japão em um cronograma de aprovação acelerada, que proporciona aos pacientes acesso mais rápido a um medicamento que pode salvar vidas.
A FDA baseou sua decisão em uma fase inicial de um estudo de estágio final em andamento que envolveu menos de 40 pacientes no total. A maioria dos bebês que tomaram Zolgensma sobreviveu, conseguiu respirar por conta própria e atingiu marcos importantes, como conseguir sentar-se sem apoio, dois anos depois de tomar o medicamento.
No entanto, o progresso variou significativamente e algumas crianças apresentaram efeitos colaterais graves, inclusive problemas hepáticos. O curto período de tempo também significou que não havia dados sobre a duração dos benefícios do medicamento. Também houve poucos participantes de fora dos EUA nos testes.
Os Estados Unidos e alguns países ricos limitaram o Zolgensma aos pacientes mais jovens (com menos de dois anos de idade) com a forma mais grave de AME e nos quais há evidências mais fortes de sua segurança e eficácia.
A Agência Europeia de Medicamentos autorizou o uso do medicamento em pacientes com peso de até 21 quilos, o que poderia incluir crianças de até cinco anos de idade, mas muitos países do bloco só reembolsam o tratamento para pacientes com menos de seis meses.
O obstáculo do preço alto
Com um potencial de crescimento limitado nos mercados estabelecidos, a expansão geográfica do Zolgensma se tornou crucial para a Novartis. Mas, dadas as demandas de saúde concorrentes e os orçamentos limitados, muitos países de renda média esperam mais evidências de que o medicamento justifica o preço pedido.
“Com as doenças raras, temos o desafio de precisar de acesso rápido, mas, ao mesmo tempo, temos medicamentos com preços extremamente altos e muitas incertezas. Às vezes, não se sabe realmente quais são os benefícios clínicos reais”, disse à SWI Vera Pepe, pesquisadora de saúde pública e coautora de um artigo sobre o acesso ao Zolgensma no Brasil. “Mas isso impõe à sociedade o ônus de financiar medicamentos extremamente caros, com evidências limitadas de benefícios clínicos e grandes incertezas, com um enorme custo, especialmente em sistemas de saúde universais como o nosso.”
O governo brasileiro e a Novartis passaram mais de dois anos negociando o preço e os termos e finalmente chegaram a um acordo no final de 2022. A empresa concordou em fornecer o tratamento para no máximo 250 bebês a US$ 1,1 milhão por infusão e se comprometeu a realizar estudos sobre os efeitos de longo prazo do tratamento no Brasil.
Mas outros países, como a Turquia, seguem rejeitando o medicamento, argumentando que não há evidências suficientes sobre sua segurança e eficácia.
“As empresas não podem mais simplesmente chegar ao mercado com um medicamento de dois milhões de dólares e esperar que os governos paguem por ele”, disse Girisha Fernando, CEO da Lyfegen, fornecedora global de soluções de gerenciamento de preços e descontos de medicamentos. “Eles precisam oferecer mais do que isso”.
A Novartis disse que quer encontrar maneiras de tornar o Zolgensma acessível em países de renda média e está oferecendo descontos, planos de pagamento parcelado e acordos de compartilhamento de risco para provedores de seguros e autoridades nacionais de saúde, em que o pagamento depende de resultados pré-acordados.
No ano passado, a empresa assinou um acordo desse tipo com uma agência de saúde da Argentina para fornecer o Zolgensma por US$ 1,3 milhão. O pagamento só será feito se “os resultados observados nos pacientes corresponderem ao que é esperado de acordo com a evidência científica disponível”, de acordo com uma cópia do contrato na biblioteca de acordos da Lyfegen.
Para as famílias de crianças que sofrem de AME, esperar pelo acesso ao medicamento é angustiante. Quanto mais tempo as crianças passam sem acesso ao tratamento, mais sua condição se deteriora e não pode ser revertida com o Zolgensma.
“É muito estressante para a comunidade de pais porque vidas são perdidas”, disse Vanina Sanchez, presidente da associação FAME Argentina, cujo filho tem AME. “Quando se trata de bebês com o tipo 1, a forma mais grave da doença, eles realmente não têm tempo para esperar”, disse ela.
Dilema dos dados
A Novartis tem sido ajudada, até certo ponto, pelos resultados de mais ensaios clínicos e pelos chamados dados do mundo real de prestadores de serviços de saúde em todo o mundo, que mostram resultados positivos para muitos pacientes que recebem o tratamento.
Em março de 2023, os estudos da própria Novartis mostraram que os pacientes que tomaram Zolgensma quando bebês mantiveram os principais desenvolvimentos motores, como sentar-se, e conseguiram respirar sem assistência sete anos depois de tomar o medicamento. Crianças mais velhas com formas menos graves da doença que receberam uma versão mais recente do medicamento em uma dose mais alta também melhoraram.
Entretanto, alguns pacientes pararam de progredir e 24 das 81 crianças nos estudos foram posteriormente tratadas com outros medicamentos para AME. Outros estudos, inclusive um na Suíça envolvendo nove pacientes, ressaltam a enorme variedade de resultados possíveis.
O crescente número de resultados de estudos e tratamentos mostra que a propaganda inicial sobre o Zolgensma como uma cura única para os portadores de AME não se confirmou na realidade.
“Os pais esperam que seus filhos sejam curados porque foi assim que a terapia gênica foi anunciada no início. Isso criou expectativas erradas para uma doença que é altamente complexa e ainda não é totalmente compreendida”, disse à SWI Nicole Gusset, que lidera os grupos de defesa dos pacientes SMA Europe e SMA Switzerland e tem uma filha com SMA. “Cura é uma palavra forte e deve ser usada com parcimônia. A estabilização da progressão de uma doença ou a ausência de sintomas visíveis são sucessos enormes, mas não significam automaticamente que uma doença está curada.”
A Novartis também enfrenta mais pressão com a chegada ao mercado de outros medicamentos que tratam a AME. Em 2020, a FDA dos EUA aprovou o ridisplam, vendido como Evrysdi,® da rival suíça Roche, para crianças mais velhas e adultos com AME. A aprovação foi recentemente ampliada para abranger bebês com menos de dois meses de idade, o que o torna um concorrente mais direto do Zolgensma.
O Evrysdi vem em forma de pílula e xarope, o que facilita o uso, e custa de US$ 100 mil a US$ 350.mil por ano, dependendo do peso do paciente. O Evrysdi foi aprovado em mais de 100 países e usado para tratar mais de 11 mil portadores de AME em todo o mundo.
“Todos os tratamentos têm a capacidade de estabilizar a progressão da doença”, disse Gusset. “O que não sabemos nesta fase é qual tratamento está funcionando melhor em qual população ou em quais indivíduos.”
Especialistas do Swiss Rare Disease Registry (Registro Suíço de Doenças Raras), criado pela Universidade de Berna, concordaram, escrevendo à SWI por e-mail que, globalmente, não há evidências suficientes para determinar qual das três terapias (Spinraza, Zolgensma e Evrysdi) é melhor.
O preço certo
Outros desenvolvedores de terapias genéticas, que estão investindo bilhões em novos medicamentos, estão observando atentamente como a gigante farmacêutica suíça enfrenta esses ventos contrários. Há mais de 1.500 ensaios clínicos em andamento para terapias celulares e genéticas registradas junto às autoridades dos EUA e, no ano passado, a FDA aprovou cinco, incluindo dois para a doença falciforme que tinham preços de tabela mais altos do que o Zolgensma – US$ 2,2 milhões e US$ 3,1 milhões.
Em março, a Orchard Therapeutics estabeleceu um novo recorde de preço, cobrando US$ 4,25 milhões nos EUA pelo Lenmeldy® (também chamado de Libmeldy®), um tratamento genético para a leucodistrofia metacromática – uma doença genética ultra-rara que ataca o sistema nervoso central de crianças pequenas. A doença afeta cerca de 40 bebês recém-nascidos por ano nos EUA.
“Há uma pressão sobre os governos para que disponibilizem novos medicamentos aos pacientes”, disse Kerstin Noëlle Vokinger, especialista em preços de medicamentos e professora das faculdades de direito e medicina da Universidade de Zurique. “Isso é compreensível porque os pacientes com doenças raras ou mortais precisam de tratamentos. Mas o problema é: como negociar o preço de um medicamento quando não se conhece seu valor terapêutico real?”
As terapias genéticas já estão desaparecendo como resultado das disputas de preços. Pelo menos sete das 25 terapias celulares e gênicas aprovadas foram retiradas do mercado pelos fabricantes de medicamentos na Europa. A mais proeminente foi o Zynteglo®, um tratamento para a doença sanguínea talassemia-beta. A Bluebird Bio, que fabricava a droga, sediada nos EUA, encerrou suas operações na União Européia após várias disputas sobre o preço do medicamento.
“Uma grande preocupação é que os medicamentos estão sendo retirados do mercado porque são muito caros ou não estão sendo vendidos”, disse Kelly Ormond, conselheira genética e pesquisadora do Health Ethics and Policy Lab do instituto federal de tecnologia ETH Zurich. “Se quisermos tirar proveito da promessa da medicina de precisão, como as terapias gênicas, temos que resolver como pagar por elas.”
Edição: Nerys Avery/fh
(Adaptação: Clarissa Levy)
Fonte: O que aconteceu com o medicamento mais caro do mundo?