Cláudio Cordovil

Um dilema ético em doenças raras: Os fins justificam os meios?

O Ministério da Saúde já teria um novo coordenador para doenças raras. Falta só ter seu nome publicado no Diário Oficial da União.

O senhor Natan Monsores de Sá tem se apresentado publicamente como tal, ainda que sua nomeação não tenha sido publicada até hoje no Diário Oficial da União

No governo Bolsonaro, que promoveu uma destruição completa do que se poderia chamar de saúde (mental, individual, coletiva) , Monsores de Sá prestou extensa consultoria oficial ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), cuja titular da pasta era a atual senadora Damares Alves (Republicanos-DF). As doenças raras, no governo anterior, eram temática vinculada a esta pasta.

Neste ano, a coordenação deixou a estrutura do antigo MFMDH e foi transferida ao Ministério da Saúde (MS), sendo localizada no Departamento de Atenção Especializada e Temática (DAET) da Secretaria de Atenção Especializada em Saúde (SAES). A SAES é dirigida atualmente por Helvécio Miranda.

Serviu de bom grado e com protagonismo ao antigo governo. Senão vejamos. O portal da Universidade Federal do Maranhão dá conta de que atuou como “professor-autor” do Curso de Capacitação e Informação em Doenças Raras, em notícia datada de 30 de março de 2022, uma iniciativa encomendada pela ex-ministra Damares Alves, que custou a bagatela de 1 milhão de reais. Foi também “validador técnico” de seis de suas disciplinas, representando a Universidade de Brasília.

No expediente da publicação Linhas de Cuidado-Pessoas com Doenças Raras, datada de 2022, aparece como responsável por sua elaboração, e com suposta vinculação formal ao Departamento de Atenção Especializada e Temática, ligado à Secretaria de Atenção Especializada à Saúde (SAES) do MS.

Foi responsável pela coordenação do projeto Doenças Raras: Direitos Humanos, Saúde e Cidadania, com duração de dois anos e recursos do MMFDH na gestão Damares. Além de contar com diversos vídeos no Canal YouTube, onde, a convite da pasta, contribui com sua expertise para promover a naturalização do intolerável.

Quem o visse falar em tais videos, poderia ser levado a concluir que estava, com sua participação voluntária, em tais eventos, endossando a peculiar agenda de direitos humanos da pasta.

Desta forma, associou de forma inequívoca e indelével seu nome a um projeto de governo que fora a completa negação da Saúde Pública como ferramenta para a promoção da justiça social. Não é pouca coisa.

O que diria Sergio Arouca,
pai da Reforma Sanitária Brasileira, de tudo isto?

Talvez fosse melhor, para o atual governante e seus prepostos, que esquecêssemos a atuação do futuro coordenador no governo passado, de triste memória. Não o faremos.

Ironicamente, o novo governo, democrático, o premia pelos serviços prestados ao ex-mandatário, a quem o atual presidente devota particular e fundamentada antipatia.

O referido agente público sempre poderá argumentar que atuou no governo passado para “reduzir danos”. Seria o mesmo que dizer que um nosso antepassado resolvera ingressar na Schutzstaffel (também conhecida como SS de Hitler) para evitar um mal maior aos judeus.

Em outras palavras, busca-se fazer-nos acreditar que os fins (muitas vezes pessoais) justificariam os meios (adotados). É um comportamento comum nos dias de hoje. Mas reprovável.

O tribunal da História julgará os que deliberada e voluntariamente e de forma entusiástica e proativa escolheram trabalhar para promover a naturalização do que era intolerável , nos quatro anos mais infelizes do resto de nossas vidas. 

Trailer do filme “Eles poderiam estar vivos”

Afinal, os fins justificam os meios?

O comportamento prevalente na sociedade atual é a crença de que os fins justificam os meios. Isso implica que as ações das pessoas seriam consideradas justificáveis, independentemente dos métodos utilizados para alcançar o resultado desejado.

Isso pode ser observado em diversas áreas, como quando estudantes mentem em seus currículos para obter empregos ou na política, onde a mentira é frequentemente utilizada e justificada por esta mesma filosofia. Um exemplo é o caso do ex-Diretor de Inteligência Nacional, James Clapper, que mentiu para o Congresso sobre a coleta de dados de milhões de americanos pela Agência de Segurança Nacional, acreditando que os fins justificavam os meios, mesmo violando direitos constitucionais.

Outro exemplo é a crise financeira de 2008-2009, em que banqueiros de investimento negociaram hipotecas subprime, cientes de que os proprietários de imóveis talvez não pudessem pagar, mas sem se importarem, pois vendiam essas hipotecas para terceiros, transferindo o risco. Isso evidencia o problema da falta de ética quando o objetivo final é alcançado, independentemente dos meios utilizados.

No entanto, é importante considerar que os meios são tão relevantes quanto os fins, pois o caminho percorrido para atingir um objetivo revela quem somos como pessoas, bem como nossos valores.

A ideia de que apenas importam as aparências, independentemente da verdadeira natureza de nossas ações, remonta a Maquiavel, que instruiu os líderes a parecerem misericordiosos, fiéis e religiosos, mesmo que precisassem agir de forma contrária.

Portanto, a ênfase na jornada é fundamental, pois é nela que descobrimos nosso potencial e demonstramos nossa verdadeira identidade, em contraste com aqueles que se preocupam apenas em parecer ser algo que não são, priorizando o resultado final sobre a ética.

Na base de tudo, o consequencialismo

A máxima “os fins justificam os meios” é comumente associada ao consequencialismo, uma teoria ética que enfatiza as consequências de uma ação como o principal critério para avaliar sua moralidade.

No entanto, esta abordagem tem suas implicações negativas e precisamos considerar seus aspectos prejudiciais. O novo gestor é professor de Ética Aplicada. Sabe do que estamos falando.

O consequencialismo pode menosprezar a importância da dignidade e dos direitos individuais, levar a um extremo utilitarismo, instrumentalizar as pessoas e desconsiderar princípios éticos fundamentais.

Depreciação da dignidade e dos direitos individuais


Uma crítica comum ao consequencialismo é que ele pode levar à depreciação da dignidade e dos direitos individuais.

Ao colocar em primeiro plano os resultados em detrimento dos meios, essa abordagem ética pode negligenciar ou até mesmo desconsiderar a importância dos direitos humanos fundamentais e da dignidade individual. Não por acaso, o dignitário a quem o agente público serviu com diligência saudou o ex-torturador Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe dos centros de tortura e assassinato de pessoas que se opunham à ditadura militar (o DOI-CODI do II Exército), de 1970 a 1974.

Assim, o consequencialismo faz com que ações que violem tais direitos básicos possam ser justificadas se, de alguma forma, levarem a resultados almejados. Por esta lógica, posso servir a um carrasco, se os fins a que almejo forem os melhores, a meu juizo.

No entanto, é essencial lembrar que todos os seres humanos têm direito à dignidade e ao respeito, independentemente das consequências benfazejas que possam derivar de nossas ações.

Utilitarismo extremo


Frequentemente, o consequencialismo está ligado ao utilitarismo, uma teoria ética que busca maximizar a felicidade ou o bem-estar geral e que (já vimos aqui) pode ser lesiva aos interesses das pessoas que vivem com doenças raras e todas as demais minorias.

Embora a maximização da felicidade possa parecer um objetivo nobre, essa abordagem pode resultar em situações em que o bem-estar de alguns (os doentes raros, por exemplo) tenha que ser sacrificado em benefício da maioria, em uma disputa por medicamentos, por exemplo, com pessoas que vivem com doenças frequentes.

Isso pode levar a decisões injustas, em que minorias ou grupos vulneráveis são prejudicados em nome de um suposto bem maior, da população tomada como um todo.

Portanto, o consequencialismo, quando aplicado de forma extrema, pode resultar na negligência dos doentes raros, pois seus casos individuais podem ser considerados insignificantes quando comparados ao bem-estar da estrondosa maioria.

Risco de instrumentalização das pessoas

Ao adotar a perspectiva de que as pessoas podem ser utilizadas como meios para atingir um fim desejado (os doentes raros, com propósitos eleitoreiros, por exemplo), o consequencialismo ético abre espaço para a instrumentalização e exploração de indivíduos.

Isso pode levar a uma visão utilitária da sociedade, na qual as pessoas são tratadas como meros recursos ou ferramentas descartáveis, em busca de objetivos maiores e até mesmo discutíveis.

Falta de consideração pelos princípios éticos


Uma crítica adicional ao consequencialismo é a falta de consideração pelos princípios éticos fundamentais. Na medida em que essa abordagem foca exclusivamente em resultados, ela desconsidera a importância de princípios éticos como justiça, igualdade, autonomia e respeito pelos outros.

A moralidade não pode ser determinada apenas pelos resultados de uma ação, mas também pela natureza intrínseca dessa ação. Se me associo a criminosos em busca do que acredito ser melhor para a sociedade, incorro em grave problema ético. Ainda que esperneie quando interpelado sobre o fato.

É importante reconhecer que a ética não se resume apenas às consequências, mas também aos meios pelos quais se chega a resultados.

Conclusão


Embora a expressão “os fins justificam os meios” possa parecer uma abordagem ética válida à primeira vista, é importante considerar as implicações negativas do consequencialismo.

Como vimos, a expressão “os fins justificam os meios” pode ter implicações negativas em uma perspectiva ética, pois pode levar à violação de direitos, a injustiças, à instrumentalização das pessoas e a uma falta de consideração pelos princípios éticos fundamentais.

É importante acautelar-se quando adotar tal abordagem ética e considerar as consequências negativas que ela pode acarretar.

As pessoas que vivem com doenças raras têm sido vítimas desta perspectiva ética (a qual se filia o utilitarismo), governo após governo.

Passam os governos e os agentes da barbárie querem que esqueçamos o passado.

O novo coordenador talvez acredite que, dado seu bem-intencionado e legítimo desejo de beneficiar os raros, poderia vincular seu nome a um elemento com uma penca de crimes, pelos quais está prestes a responder, sem com isso suscitar nenhum escândalo moral.

Sartre nos ensina que não é assim que a banda toca. Os fins não justificam os meios! Ou pelo menos nem sempre.

O sol é o melhor desinfetante. Trazer à luz o que se desejava obscurecer é zelar pela democracia.

Em tempo. A Constituição Federal de 1988, artigo 5º, parágrafo IV, afirma: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”


Imagem em destaque: John Heartfield : War and Corpses, the Last Hope of the Rich

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