Transparência? O que “modelos econômicos” têm a ver com isso

Tem se falado muito em transparência das decisões na Conitec, você tem acompanhado esse debate por aqui. Mas falar de transparência assim fica meio vago.

Vamos tentar mostrar a você onde está parte  do problema que alimenta certa desconfiança mútua, o que não é privilégio do Brasil.

O sacrossanto NICE, sobre o qual falamos nesse post, já teve sua atuação criticada por pacientes e pela indústria inúmeras vezes. É da vida.

Agora vamos tentar revelar um aspecto importante do problema. Basicamente, processos conduzidos pela Conitec e congêneres apresentam (aqui e lá fora) caixas-pretas que comprometem sua governança democrática e transparente. Junte-se a isso o fato de o SUS ter como um dos seus principais mandamentos a participação social e temos aí uma suposta contradição, quando avaliamos a atuação daquele órgão. 

Pode se dizer que as Avaliações de Tecnologias em Saúde (ATS), quando aplicadas de forma convencional a medicamentos órfãos (aqueles usados para tratar doenças raras) são o bode na sala do SUS ou de qualquer outro sistema público de saúde que tenha como aspiração a transparência. 

[su_box title=”O que são Avaliações de Tecnologias em Saúde” style=”soft” box_color=”#2215d5″ title_color=”#f0ce48″ radius=”5″]Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), ATS é a avaliação sistemática das propriedades, efeitos e/ou impactos da tecnologia em saúde. Seu principal objetivo é gerar informação para a tomada de decisão, para incentivar a adoção de tecnologias custo-efetivas e prevenir a adoção de tecnologias de valor questionável ao sistema de saúde.[/su_box]

Neste momento vamos nos deter em um aspecto das ATS onde reina a absoluta opacidade, ao menos da parte de uma das partes envolvidas. A idéia aqui é tentar qualificar um pouco mais de que transparência está falando quem a reivindica no caso da Conitec.

Basicamente, no Brasil e no mundo, os cálculos empregados por laboratórios e pelas agências de ATS, para justificarem suas movimentações no tabuleiro do xadrez regulatório em saúde podem sempre se revelar uma caixa-preta.

[su_box title=”O que é caixa-preta?” style=”bubbles” box_color=”#2215d5″ title_color=”#f0ce48″]Caixa-preta é termo originário do setor de aviação e que mais tarde serviu para definir “um sistema fechado de complexidade potencialmente alta, no qual a sua estrutura interna é desconhecida ou não pode ser levada em consideração em sua análise”[/su_box]. 

As ATS se baseiam em “modelos econômicos”. Cada um dos jogadores (Conitec x Indústria), diante do tabuleiro do xadrez regulatório, tem sua estratégia para vencer. E, para isso, cada um deles utiliza “modelos econômicos”.

E aqui começam os problemas. Como acontece com qualquer “modelo”, eles reduzem aspectos da realidade (que sempre é complexa) a simples números e variáveis. Sua finalidade costuma ser nobre. Simplificar o retrato de alguma realidade para conhecê-la e/ou nela intervir.

Mas a simplicidade buscada dos modelos traz em si um problema: corre-se o risco de subestimar aspectos essenciais das situações reais, [su_highlight background=”#d5f427″] principalmente quando estão em jogo, no nosso caso, as necessidades específicas de pessoas que vivem com doenças raras[/su_highlight]. 

No caso brasileiro, acredita-se que a opacidade sempre esteve mais pendente para o lado da Conitec. Isto porque, obrigatoriamente, os laboratórios (seus adversários no tabuleiro de xadrez imaginário) são obrigados a juntar, aos seus processos de solicitação de incorporação de medicamentos, farta documentação acerca dos modelos econômicos que empregou, para seus cálculos sobre o medicamento candidato à incorporação.

É com base nessa documentação que a Conitec vai verificar se a estimativa do valor da droga proposta pelo laboratório ao SUS foi corretamente calculada. Mas aí vem o detalhe interessante: não se exige da Conitec a mesma obrigação! É como se, no xadrez, cada um dos jogadores pudesse seguir regras diferentes um do outro. Meu modelo, minhas regras.

[su_box title=”Desconfiança mútua” style=”bubbles” box_color=”#2215d5″ title_color=”#f0ce48″]Desconfianças de parte a parte são comuns nestes processos, no mundo inteiro. Os gestores em saúde desconfiam dos cálculos realizados pelos laboratórios, ao submeter seus processos para deliberação por estas agências.

Os laboratórios suspeitam do mérito das avaliações realizadas por estas agências para recusar seus pedidos. Ambos têm alguma razão em suspeitar. E não há solução à vista a não ser o diálogo entre os jogadores, muito diálogo! E ele tem faltado na Conitec, segundo pudemos apurar. [/su_box]

Mas, justiça seja feita. A desconfiança mútua talvez seja inevitável. No que se refere à indústria farmacêutica, Polyzos e cols. fizeram um levantamento rigoroso das suas análises de custo-efetividade que avaliavam, economicamente, métodos de rastreamento (screening) de câncer cervical. Verificaram que os estudos apresentados pelos fabricantes de medicamentos nestes processos de ATS subestimavam a precisão do teste de Papanicolaou (para promover seus medicamentos).

[su_note]Em 1994, o British Medical Journal (BMJ) divulgou sua política editorial para publicação de análises de custo-efetividade, ressaltando que algumas destas análises eram financiadas pela indústria e que esta tinha a expectativa de que tais análises pusessem seus produtos em uma perspectiva favorável junto aos órgãos reguladores. O BMJ argumentou que estas empresas poderiam empregá-las para justificar os preços (muitas vezes abusivos) de seus medicamentos [/su_note]

[su_heading size=”16″]Alguns conceitos básicos[/su_heading]

Agora vamos tentar explicar o que são modelos econômicos e porque sua transparência é importante. 

Se deseja-se que as decisões tomadas por autoridades públicas sejam vistas como socialmente justas, as pessoas afetadas por estas decisões precisam ser capazes de questioná-las, assegurar que os modelos econômicos para tais decisões são justos e que decisões consistentes foram tomadas. Por isso não basta ter transparência.

Você, paciente, precisa entender estes processos, para não ser refém do pensamento de terceiros. O campo da relação entre indústria e governo no que se refere à incorporação de medicamentos e outras tecnologias de saúde ao SUS é um campo repleto de tensões e mútuas desconfianças. E isso tem sua razão de ser. 

Em primeiro lugar, você precisa saber que, grosso modo, a Conitec se dedica a duas coisas, de acordo com a legislação que a criou. Assim, ela teria “por objetivo assessorar o Ministério da Saúde – MS nas atribuições relativas a:

  • Incorporação, exclusão ou alteração de tecnologias em saúde fornecidas pelo SUS.
  • Constituição ou alteração de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas – PCDT.

Em segundo, convém entender o que é um “modelo”. Modelos nada mais são do que ferramentas que visam, entre outras coisas, facilitar a compreensão de temas complicados e que permitem que a complexidade de um dado sistema seja reduzida a suas dimensões mais básicas, para facilitar o seu entendimento.

Vamos pegar o exemplo de um modelo consagrado que explica um processo de comunicação.

Este é um modelo bem basicão e conhecido, que visa mostrar, a quem o lê , como se dá um processo de comunicação, de forma bem simplificada. Nele você tem um emissor, um receptor e uma mensagem. Assim, a comunicação, esta atividade tão complexa e necessária, é reduzida a seus elementos principais. 

É óbvio que este modelo não descreve toda a riqueza de um processo de comunicação, mas serve para você compreender sua realidade em linhas gerais. É como se você tivesse que explicar para alguém toda a riqueza da comunicação numa conversa de elevador.

 É evidente que para um modelo ser útil no campo da saúde, ele precisa ser confiável. E a credibilidade dele está diretamente relacionada a dois fatores, basicamente:

  1. Ele precisa ser transparente –  Isto diz respeito à descrição clara das suposições, dos valores dos parâmetros nele empregados, das suas equações e de sua estrutura, visando a sua compreensão pelas partes interessadas.
  2. Ele precisa ser validado – Isto significa submeter o modelo a testes como aquele que compara os seus resultados a dados observados na realidade.

[su_heading size=”16″]Para que serve um modelo econômico em saúde? [/su_heading]

Agora que você entendeu o que é um modelo, precisa entender para que serve um modelo em saúde.

Ele visa oferecer, ao gestor, no nosso caso, informações quantitativas sobre as consequências das opções a serem consideradas em sua tomada de decisão sobre a incorporação ou não de um medicamento. 

Tudo isto para decidir se ele pode ser incorporado ao SUS sem representar um custo desproporcional ao benefício por ele prometido pelo fabricante, por exemplo. Ele será comparado, em termos de custo-benefício, digamos assim, com relação a outra intervenção ou medicamento (que chamamos de “comparador”)  para a mesma condição clínica eventualmente já em uso no SUS.

No caso das doenças raras, muitas vezes não existe um comparador, porque apenas um medicamento existe no mercado para atender uma necessidade clínica qualquer. 

Basicamente uma ATS convencional envolve três componentes: 

  1. Síntese das evidências científicas disponíveis sobre uma tecnologia (no caso aqui, um medicamento)
  2. Avaliação econômica
  3. Estudo de impacto orçamentário, que é o efeito estimado sobre o custo total para uma organização (o Ministério da Saúde, p. ex.) ou plano de saúde se houver mudança nas intervenções (passar de uma intervenção em saúde já incorporada ao SUS para uma nova, p. ex.)

De um lado do tabuleiro, pareceristas externos acionados pela CONITEC conduzem a ATS (revisão sistemática da literatura existente sobre a intervenção que se quer analisar e dos modelos de avaliação econômica).  São recrutados habitualmente na Rede Brasileira de Avaliação de Tecnologias em Saúde (Rebrats). De outro, o fabricante traz seu modelo econômico, desenvolvido internamente ou especialmente contratado. 

Mas, para falar de uma das ‘caixas pretas’ mais importantes na Conitec vamos nos deter no item 2, ok? 

[su_heading size=”16″]Avaliações econômicas[/su_heading]

Existem diversas abordagens de análise em avaliações econômicas. Elas podem ser baseadas em estudo(s) clínico(s) e/ou modelos matemáticos.

Agora vamos colocar o guizo no gato ou mostrar onde a porca torce o rabo, como diriam os antigos. Ou revelar a verdadeira questão, como diriam os mais jovens.

Grande parte dos problemas que irão despertar críticas acerca das conclusões desfavoráveis destes relatórios de recomendação da CONITEC (e assemelhadas) tem a ver com a falta de transparência dos cálculos que foram empregados na confecção destes modelos matemáticos por ela apresentados. Estes modelos , você se lembra, serviriam para contrapor-se aos dados apresentados pelo fabricante.

Dois jogadores, duas regras, lembra? Se os cálculos da fabricante normalmente constam em um pendrive que deve ser obrigatoriamente entregue à Conitec, esta não tem a mesma obrigação.

Assim, o fabricante desconhece totalmente parte relevante das razões que levaram à aprovação ou rejeição de recomendação de determinado medicamento ao SUS. 

É um jogo de gato e rato. Os tomadores de decisão (no nosso caso, a CONITEC) desconfiam dos cálculos apresentados pelo fabricante em seus processos de submissão de propostas de incorporação (mas sempre têm o pendrive para checá-los). E os fabricantes do medicamento, por sua vez, desconfiam dos cálculos realizados pela Conitec para não recomendar a incorporação.

Outra dificuldade é que estes modelos econômicos são sempre estatisticamente sofisticados, mas não são diretamente verificáveis. Se a Conitec não revela o passo-a-passo de suas críticas ao modelo econômico fornecido pela fabricante fica mais complicado entender as razões da negativa de recomendação da incorporação do medicamento ao SUS e eventualmente buscar alterá-la.

Em linguagem mais científica, pode-se dizer que os pressupostos que formam a base do modelo econômico, os cálculos feitos para chegar a determinado resultado, não são transparentes para os atores envolvidos no processo, especialmente fabricantes, segundo os mesmos costumam relatar.

A não ser que seus cálculos, ‘sua estratégia’, seja revelada por ambos os jogadores! Portanto, não fica claro como os resultados neles apresentados foram obtidos. Isso parece se aplicar mais à Conitec do que ao fabricante (lembra do pendrive entregue pelo demandante?) .

O resultado é um diálogo de surdos, que inúmeras vezes irá desembocar em casos de não-incorporação de medicamentos aos sistemas de saúde,  críticas à legitimidade das decisões da Conitec e desconfiança sobre a razoabilidade de suas ações.

Nos próximos dias, abordaremos sugestões de como tornar tais relações mais transparentes, bem como explicar um pouco mais a complexidade das decisões que buscam tornar os modelos econômicos de ambas as partes menos problemáticos.  Não é tarefa fácil. 

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