Cláudio Cordovil

O Comitê de Deus: Reflexão sobre tomada de decisões em saúde

Em 9 de novembro de 1962, a revista LIFE publicou um artigo marcante, escrito por Shana Alexander, retratando o Comitê de Admissões e Políticas do Centro de Hemodiálise do Hospital Sueco, em Seattle.

Esse comitê, também conhecido como o “Comitê de Deus”, foi responsável por selecionar os poucos pacientes que seriam admitidos em sua nova e pequena unidade de hemodiálise.

Essa técnica de tratamento era extremamente cara na época. Neste artigo, exploraremos a história do Comitê de Deus, suas implicações éticas e como reflexos desse tipo de comitê ainda podem ser observados atualmente.

“Em Rosh Hashaná é inscrito, e em Yom Kipur é selado: quantos irão falecer, e quantos nascerão; quem viverá, e quem morrerá; quem em seu tempo, e quem antes do tempo (…)”

Trecho da prece hebraica Unetanneh Tokef*

O surgimento do Comitê de Deus

No ano anterior à publicação do artigo, o Dr. Belding Scribner inaugurara a unidade de hemodiálise no Hospital Sueco.

O Comitê de Admissões e Políticas foi formado para selecionar os pacientes que teriam acesso a esse tratamento inovador.

Composto por sete membros, cujos nomes eram mantidos em segredo, o comitê era composto por um pastor, um advogado, um bancário, uma dona de casa, um líder sindical e dois médicos.

Essa diversidade de membros levou ao apelido de “Comitê de Deus”.

“Não sei quem apelidou esse grupo de Comitê de Deus, mas não foi Shana Alexander, que escreveu o artigo na LIFE. Provavelmente devia parecer algo espirituoso na época, uma maneira de aliviar um dever sombrio; mas é um apelido estranho. Ele escolhe uma característica do Deus dos cristãos e judeus: aquele que dá vida e que também a tira. No entanto, ignora outras características desse Deus: alguém que é compassivo, que se preocupa amorosamente com o indivíduo e que é um Deus pessoal, e não alguém com identidade ocultada pelo anonimato”.

Albert Jonsen

A tomada de decisões do Comitê de Deus

O Comitê de Deus recebia regularmente informações sobre pacientes com doença renal terminal que haviam sido pré-avaliados como candidatos à hemodiálise.

No entanto, o comitê tinha critérios de exclusão, como idade acima de 45 anos e crianças, devido aos riscos e às particularidades do tratamento.

Além disso, informações socioeconômicas dos candidatos eram consideradas durante o processo de seleção.

O Juizo Final, de Hieronymus Bosch

Durante as reuniões, que duravam cerca de 90 minutos, o comitê discutia e deliberava sobre quais pacientes teriam acesso à hemodiálise. As decisões eram baseadas em uma avaliação subjetiva do “valor social” dos pacientes, levando em consideração suas contribuições anteriores para a sociedade. Os pacientes selecionados eram considerados “afortunados”, enquanto os demais eram deixados à própria sorte.

Segue-se, abaixo, um trecho autêntico de diálogos ali travados, publicados pela revista LIFE, com consentimento dos envolvidos, obtido naquela ocasião.

ADVOGADO: Os médicos nos disseram que em breve teremos mais duas vagas no Kidney Center e apresentaram uma lista de cinco candidatos para escolhermos.

DONA DE CASA: Todos estão igualmente doentes?

Dr. MURRAY: (John A. Murray, MD, Diretor Médico do Kidney Center.) Os pacientes número um e número cinco podem durar apenas mais algumas semanas. Os outros provavelmente podem demorar um pouco mais. Porém, para fins de sua seleção, todos os cinco casos devem ser considerados de igual urgência, porque nenhum deles pode aguentar até que outra instalação de tratamento se torne disponível.

ADVOGADO: Alguma idéia inicial?

BANCÁRIO: Por que não começamos com o número um – a dona de casa de Walla Walla.

CIRURGIÃO: Essa paciente não podia se deslocar de Walla Walla para o tratamento, então teria que encontrar uma maneira de mudar com sua família para Seattle.

BANCÁRIO: Exatamente o que quero dizer. Lê-se aqui que o marido não tem dinheiro para fazer essa mudança.

ADVOGADO: Então você está propondo que eliminemos essa candidata com o argumento de que ela não poderia aceitar o tratamento, se este fosse oferecido?

PASTOR: Como podemos comparar uma situação familiar onde existem dois filhos, como a dessa mulher em Walla Walla, com uma família de seis filhos, como o paciente número 4 _ o trabalhador da indústria de aviação?

SERVIDOR PÚBLICO: Mas temos certeza de que o trabalhador da indústria da aviação pode ser reabilitado? Observem que ele já está doente demais para trabalhar, enquanto o número 2 e o número 5, o químico e o contador, ainda são capazes de continuar.

LÍDER SINDICAL: Sei, por experiência própria, que a empresa de aeronaves onde esse homem trabalha fará todo o possível para reabilitar um empregado com incapacidade.

DONA DE CASA: Se ainda estamos considerando os homens com o maior potencial de prestar serviços à sociedade, acho que devemos considerar que o químico e o contador têm os melhores níveis de instrução entre os cinco candidatos.

CIRURGIÃO: Como vocês se sentem em relação ao número três _ o microempresário com três filhos? Estou impressionado com o fato de o médico ter se interessado pelo seu caso a ponto de mencionar que esse homem é atuante no trabalho da igreja. Isso é uma indicação para mim de caráter e força moral.

DONA DE CASA: O que certamente o ajudaria a se adequar às exigências do tratamento….

ADVOGADO: Isso também o ajudaria a suportar uma morte lenta….

SERVIDOR PÚBLICO: Mas isso iria parecer imputar uma penalidade àqueles mais prudentes….

PASTOR: E essas duas famílias também têm três filhos.

LÍDER SINDICAL: Pelo bem das crianças, precisamos contar com a oportunidade dos pais remanescentes de se casar novamente, e uma mulher com três filhos tem mais chances de encontrar um novo marido do que uma viúva muito jovem com seis filhos.

CIRURGIÃO: Como podemos ter certeza disso? …. 

Ao final de 90 minutos de discussão, dois pacientes foram selecionados: um foi o trabalhador na indústria de aviação. Outro, o microempresário. Os restantes foram entregues à sua própria sorte.

Questões éticas e críticas

As decisões tomadas pelo Comitê de Deus levantaram questões éticas e foram posteriormente condenadas pela Bioética.

Esses procedimentos de seleção eram considerados desumanos, baseados em critérios subjetivos e sem fundamentação moral, técnica ou ética adequada.

A falta de um arcabouço regulatório para guiar as decisões do comitê resultava em uma distribuição injusta dos recursos de saúde.

Com o passar dos anos, emendas à Lei de Seguridade Social dos Estados Unidos forneceram suporte financeiro para diálise e transplante renal.

Isso permitiu que mais pessoas tivessem acesso ao tratamento, reduzindo a necessidade de comitês de seleção como o Comitê de Deus.

Uma saída honrosa foi alcançada em 1972, sob o governo Nixon, quando o peso sobre os ombros do Comitê de Deus diminuiu. Foi criado o End Stage Renal Disease Program (ESRD), que universalizou a hemodiálise para todos aqueles cidadãos beneficiários da seguridade social, um programa vinculado ao Medicare.

O Medicare é o seguro-saúde norte-americano voltado para pessoas com doença renal crônica elegíveis para a Seguridade Social, com mais de 65 anos, ou pessoas mais jovens vivendo com deficiências ou acometidas pela Esclerose Lateral Amiotrófica. Em 2018, o Medicare atendia cerca de 60 milhões de norte-americanos.

Reflexos atuais

Embora o Comitê de Deus tenha deixado de existir, suas lições ainda são relevantes nos debates contemporâneos sobre tomada de decisões em saúde. A alocação de recursos limitados em sistemas de saúde públicos ou privados é um desafio constante. Decisões difíceis precisam ser tomadas para garantir a distribuição justa e equitativa dos recursos disponíveis.

Atualmente, muitos países adotam abordagens mais éticas e baseadas em evidências para a tomada de decisões em saúde. Os princípios de justiça, equidade e utilidade são considerados na alocação de recursos escassos, como leitos hospitalares, medicamentos de alto custo e tratamentos especializados.

Em alguns casos, são desenvolvidas diretrizes claras e transparentes para orientar a tomada de decisões em saúde. Comitês de ética e comissões especiais podem ser estabelecidos para revisar casos complexos e difíceis, levando em consideração critérios médicos, éticos e sociais.

Além disso, avanços na medicina e tecnologia também têm impacto na tomada de decisões em saúde. Novos tratamentos, terapias personalizadas e abordagens inovadoras podem exigir avaliações cuidadosas sobre sua eficácia, custo-benefício e acessibilidade.

Conclusão

O Comitê de Deus, que despertou controvérsia e críticas há décadas, representa uma importante lição sobre a necessidade de abordagens éticas e baseadas em evidências na tomada de decisões em saúde.

Embora o contexto atual seja diferente, a alocação de recursos escassos continua sendo um desafio complexo. É fundamental que os sistemas de saúde busquem promover a justiça e a equidade, garantindo que todos tenham acesso igualitário a tratamentos e cuidados adequados.

A reflexão sobre o Comitê de Deus nos lembra da importância de colocar a dignidade humana e o bem-estar dos pacientes no centro de nossas decisões em saúde.


*Agradecemos ao dr. Salmo Raskin pela tradução de trecho da prece hebraica Unetanneh Tokef

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