Cláudio Cordovil

Novo marco regulatório em pesquisa clínica ameaça democracia sanitária, alertam especialistas

A Sociedade Brasileira de Bioética entrou com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) em 17 de setembro deste ano contra a lei que regulamenta pesquisas científicas com seres humanos (Lei nº 14.874/2024). A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7875 foi distribuída ao ministro Cristiano Zanin.

Em despacho, datado de 24 de setembro do corrente ano, Zanin reconheceu a relevância da controvérsia em torno da Lei nº 14.874/2024 e determinou a adoção do rito abreviado previsto no artigo 12 da Lei 9.868/1999, que acelera a análise de ações diretas de inconstitucionalidade. Nos termos de seus artigos 10 e 11, a lei pode conceder medida cautelar para suspender imediatamente uma lei ou ato normativo questionado, com eficácia geral e efeito vinculante, quando presentes a relevância da matéria e o risco de grave lesão. Já o artigo 12 prevê um rito abreviado, pelo qual, diante da especial importância da questão para a ordem social e a segurança jurídica, o Tribunal pode deixar de apreciar a cautelar e julgar diretamente o mérito da ação.

O ministro, em seu despacho, também solicitou informações à Presidência da República e ao Congresso Nacional, além de manifestações das faculdades de medicina da USP, Unicamp e Unifesp, antes de encaminhar o caso para parecer da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral da República.

Nos últimos meses, a promulgação da Lei 14.874/2024 trouxe à tona um debate acalorado sobre o futuro da pesquisa clínica e da ética em saúde no Brasil. A legislação que regula pesquisas envolvendo seres humanos encontra-se no epicentro de um confronto constitucional, ético e social que toca profundamente os fundamentos do Sistema Único de Saúde (SUS) e seu modelo histórico de governança democrática participativa. Foi produto de lobby agressivo de ONGs de fachada em associação com os laboratórios que as financiam.


Princípios Constitucionais Potencialmente Violados pela Lei 14.874/2024


Um novo modelo com casos polêmicos

A nova lei estabelece a Instância Nacional de Ética em Pesquisa, órgão vinculado diretamente ao Ministério da Saúde, como principal regulador dos estudos clínicos. Essa mudança sinaliza um afastamento significativo do antigo modelo gerido pelo Conselho Nacional de Saúde, que garantia ampla representação social nas decisões ético-legais relacionadas à pesquisa. Essa centralização acarreta o enfraquecimento da participação social, marginalizando vozes comunitárias que historicamente exerceram papel ativo na supervisão e formulação de normas.

Outro aspecto controverso é a limitação ao acesso ao tratamento pós-estudo para participantes. Até então, a Resolução 466/2012 do CNS assegurava tratamento gratuito por tempo indeterminado, garantido pela responsabilidade dos patrocinadores privados. A nova lei, porém, impõe restrições severas e transfere a carga financeira do tratamento contínuo para o Sistema Público de Saúde, sem avaliações de impacto orçamentário, o que traz riscos à sustentabilidade financeira do SUS.

Violações de direitos fundamentais e tensionamentos jurídicos

A restrição do tratamento pós-pesquisa implica potencial violação de direitos consagrados na Constituição Federal. O direito à saúde, garantido no artigo 196, afirma que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, princípio que se vê ameaçado pela nova legislação ao dificultar o tratamento contínuo para participantes de pesquisas, que assumem riscos em benefício do coletivo.

Além disso, a lei desafia o princípio da dignidade humana (Art. 1º, III) ao permitir em seu artigo 18 a inclusão de pessoas em pesquisas sem consentimento prévio em emergências. Tal prerrogativa atenta contra o consentimento informado, pilar ético da pesquisa que protege a autonomia do indivíduo desde o Código de Nuremberg de 1945.

No âmbito processual, a ADI 7875, ajuizada pela Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), levanta questionamentos sobre a constitucionalidade formal da nova norma. A lei teria infringido a separação de poderes ao criar a Instância Nacional de Ética em Pesquisa via projeto legislativo, quando tal criação é competência do Poder Executivo, configurando um “vício de iniciativa”.

Implicações para a judicialização da saúde

Com o afastamento do direito automático ao tratamento pós-estudo, os participantes de pesquisa ficam mais vulneráveis e propensos a buscar na judicialização de saúde uma alternativa para acesso a medicamentos ou terapias. A despeito disso, as novas regras tendem a elevar os critérios para obtenção desses tratamentos via judiciário, impondo obstáculos que ampliam a insegurança jurídica para esses pacientes.

A falta de garantias claras pode desestimular ou prejudicar aqueles em situações mais vulneráveis, que contribuem significativamente para avanços científicos, mas enfrentam barreiras para receber proteção adequada quando necessário. A consequência é um aprofundamento das desigualdades e da iniquidade no acesso à saúde — justamente os problemas que o SUS busca combater desde sua fundação.

A importância da participação social e os riscos do tecnocratismo

Um dos pontos centrais da discussão é a substituição do modelo participativo por uma governança tecnocrática, que centraliza decisões e reduz o protagonismo da sociedade civil. Historicamente, a participação social ativa foi um diferencial do SUS, garantida pela Constituição Federal de 1988 e pelas leis que institucionalizaram os Conselhos de Saúde, permitindo paridade deliberativa entre usuários, trabalhadores e gestores.

A marginalização dessas instâncias corrobora o risco de retrocesso civilizatório, em que decisões passam a ser tomadas por uma suposta “eficiência técnica”, excluindo o debate pluralista e a diversidade de interesses que asseguram a legitimidade democrática do sistema.

O desafio do Brasil na encruzilhada da ética e da ciência

O debate sobre a Lei 14.874/2024 representa mais do que uma reforma legislativa comum: é uma disputa sobre qual modelo de saúde e pesquisa o Brasil pretende construir. De um lado, há a preocupação com avanços científicos e a necessidade de regulamentações claras; de outro, o compromisso com os direitos humanos, o respeito à dignidade e a garantia do acesso universal conforme preconizado pelo SUS.

Especialistas alertam que o equilíbrio entre autoridade regulatória e participação democrática é delicado. Errar por excesso de tecnocracia pode minar os princípios que fizeram do SUS um dos maiores sistemas universais do mundo. Por isso, a mobilização de movimentos sociais, entidades representativas e da academia se faz necessária para defender um marco regulatório que harmonize ciência, ética e governança democrática.

Demandas urgentes por diálogo e transparência

Após a promulgação da Lei 14.874/2024, o Brasil se depara com um momento crítico em termos de ética em pesquisa e direitos sociais. Denúncias de violações constitucionais, impactos financeiros não mensurados e enfraquecimento da participação social apontam para a necessidade de revisão e diálogo transparente entre os diferentes atores envolvidos.

Seguimos atentos à tramitação da ADI 7875 no STF e às mobilizações sociais que buscam preservar o ethos democrático e inclusivo do SUS diante dos desafios da modernização regulatória da pesquisa clínica no país.



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Cláudio Cordovil Pesquisador em Saúde Pública
Jornalista profissional. Servidor Público. Pesquisador em Saúde Pública (ENSP/Fiocruz). Especializado em Doenças Raras, Saúde Pública e Farmacoeconomia . Mestre e Doutor em Comunicação e Cultura (Eco/UFRJ). Prêmio José Reis de Jornalismo Científico concedido pelo CNPq.

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