Cláudio Cordovil

Judicialização: o império das meias verdades

 

No ultimo dia 20 (segunda-feira), a Conitec abordou a “judicialização da saúde” em seu canal “Conitec em evidência”, abrigado no YouTube. Ali as habituais queixas de sempre: o alto custo para o país da judicialização (muito menor do que o da corrupção), com grande participação dos medicamentos órfãos nesta situação; a falta de evidências científicas sobre eficácia e segurança de tais medicamentos e toda a ladainha que você já se acostumou a ouvir.

Mas o mais interessante são os erros; e as estratégias adotadas para abordar as doenças raras da mesma forma que as doenças prevalentes e comuns, e para ‘enganar’ os operadores do direito ao sonegarem, em seus contatos com estes, informações sobre as peculiaridades dos medicamentos órfãos (e das doenças raras), que precisam ser levadas em conta, se o objetivo de uma política pública for a promoção da justiça e a redução das desigualdades.

Em primeiro lugar, é preciso dizer, com todas as letras, o que temos dito aqui com insistência veemente. As Avaliações de Tecnologias em Saúde (ATS) empregadas pela Conitec para recomendar ou não a incorporação de um medicamento ao SUS não são nem um pouco adequadas para se decidir sobre fármacos destinados a doenças raras. Empregadas de modo convencional, inviabilizam o direito do paciente raro ao medicamento.

Em segundo lugar, e isso é bastante preocupante, os operadores do direito estão vivendo uma lua-de-mel com a idéia de “Medicina Baseada em Evidências”, doutrina da qual as ATS são um subproduto. O Cupido aqui provavelmente é a Conitec, com o conluio de gestores encarregados de combater a judicialização. A maciça maioria dos operadores do direito com que tenho conversado e ouvido em palestras acredita que a Medicina Baseada em Evidências pode ser aplicada, visando a justiça, em demandas de pessoas vivendo com doenças raras! Não pode!

Ao menos em sua modalidade convencional, que, ao que tudo indica, é a empregada pela Conitec (que não nos autoriza pesquisá-los in loco). Muito provavelmente, em sua cruzada ‘esclarecedora’ junto a operadores do direito, a Conitec tem omitido este detalhe, que, na prática, faz com que o doente raro precise judicializar. Mas, preste atenção! Se os juizes, enamorados pelo conceito de “evidências científicas” julgarem o caso dos doentes raros, na prática RECUSARÃO determinar a entrega do medicamento ao paciente raro.

A MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS FOI ORIGINALMENTE CRIADA PARA LIDAR COM GRANDES NÚMEROS, COISA QUE FALTA EM SE TRATANDO DE DOENÇAS RARAS!!!!

Há passagens quase cômicas no video da Conitec acima citado. Não fossem elas trágicas. Numa delas, a técnica Eliete Gonçalves Maia Simabuku, a pretexto de revelar impropriedades em eventual incorporação do eculizumabe ao SUS alega “não destinar-se tal medicamento à cura, e de este não ter evidência de segurança no longo prazo”.

Pausa para reflexão: Eu e uma médica amiga minha ficamos matutando, depois de eu ouvir esta frase, sobre que medicamentos disponiveis no planeta se destinariam à cura. “Os antibióticos!”, bradou minha amiga. E só! Ficamos ali pelos antibióticos, que hoje já têm seu prestígio curativo seriamente abalado por conta de resistências bacterianas e que tais. Nada mais nos veio à mente.

Desnecessário dizer que, se depender de cura para receber medicamentos, todos os doentes raros podem providenciar a sua partida desta para melhor. Nenhum medicamento órfão visa promover a cura do que quer que seja, até onde podemos supor. E nenhum deles têm sido promovido pela indústria farmacêutica com tal promessa. Que, convenhamos, seria um marketing e tanto !

Agora vamos ao “longo prazo”. De todos é conhecida a célebre frase “A longo prazo, todos estaremos mortos!” É de John Maynard Keynes, o economista que ansiava por reformas que trouxessem o bem-estar social mais cedo do que pretendiam seus colegas a falarem de longos ciclos da economia.

Pois bem, medicamento órfão é destinado a poucas pessoas, e se ele foi autorizado pelo FDA em 2007, é de se supor que ainda não tenha provas robustas de segurança (lembrem-se dos poucos pacientes de uma doença ultrarrara). MAS ISTO NÃO O IMPEDIU DE SER APROVADO PELO FDA (agência americana que controla medicamentos).

É importante que você saiba que evidências de eficácia e segurança são muito dificeis de se obter no momento em que tais medicamentos para doenças raras são submetidos a orgãos de vigilância sanitária (como a ANVISA), visando autorização para comercialização.

Os países que alguma coisa desejam fazer pelos doentes raros sabem disso, e flexibilizam seus critérios de liberação de tais fármacos. Autorizam até mesmo que sejam entregues a posteriori, em fase 4 de testes clínicos, já em condições reais de uso, em início de comercialização. Aos brasileiros, resta a ortodoxia disfarçada de zelo. Tolice.

Há outra estratégia da Conitec para ‘inchar’ seus resultados. Ao se referir a suas recomendações de incorporação, citam números expressivos, quase no atacado. Realmente impressionam. Mas você precisa perceber que ali colocam no mesmo saco medicamentos para doenças prevalentes (comuns) e para raras. Não separam em seus balanços as incorporações de medicamentos órfãos, que são irrisórias na Conitec, em se tratando de medicamentos especificamente voltados para doentes raros.

Isso aponta para um flagrante caso de iniquidade em saúde, pois os doentes raros estão tendo seu direito a medicamentos sistematicamente negados neste país, a partir de autoridades que deveriam zelar pelo seu bem-estar. Isso para não falar em tratamento, em cuidado integral, que este ainda é sonho.

Trata-se de violação de princípio sagrado do SUS, desde sua criação: o princípio da equidade. Este nada mais é do que a capacidade de “tratar desigualmente os desiguais”, levando em conta as suas necessidades específicas.

Ou seja, caro leitor. Muitas arapucas lhes aguardam no trato com certas comissões de governo que decidem sobre o que você pode ou não tomar, para se tratar. Convém ficar esperto. Ler este blog com alguma frequencia é ótimo remédio contra a tapeação. E, outra coisinha: o seu medicamento, neste país, não cairá do céu. Afinal, isso aqui não é o filme “Tá chovendo hamburguer”! Lute por seus direitos. Informe-se! Pesquise! Estude!

2 comentários em “Judicialização: o império das meias verdades”

  1. Prof. Cláudio! Num momento tão sombrio e incerto que vivemos diante da perda de tantos direitos sociais e de incerteza política e econômica, ter alguém com conhecimento e que nos apoia como porta-voz como o senhor nos ajuda a manter a esperança apesar de tudo que temos padecido por falta de medicamento, em especial a perda de nossos amigos que posso dizer que foram assassinados pela forma que a Saúde tem sido levada nessa gestão.

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