Um estudo descritivo e detalhado, conduzido por pesquisadoras do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP) , encontrou um grande descompasso entre os relatórios de recomendação de tecnologias divulgados pela CONITEC e o que a lei determina como o que deve ser observado pela mesma, no que se refere a suas atribuições legais.
É importante ressaltar que o estudo em questão não tratou especificamente dos pareceres da Comissão relativos a medicamentos órfãos, indicados para o tratamento e prevenção de doenças raras. Dados os resultados apresentados no referido artigo, podemos imaginar que, em se tratando de doenças raras, os descompassos da CONITEC sejam ainda maiores.
As autoras concluiram que havia grande discrepância entre as características das evidências apresentadas nos relatórios de recomendação emitidos pela referida Comissão e aquelas consideradas mandatórias pelo arcabouço legal que criou a CONITEC e definiu suas atribuições. Este achado pode comprometer a legitimidade dos processos empregados pela CONITEC para tomada de decisão em saúde.
Em bom português, o estudo pode revelar que a CONITEC emprega verniz científico para tornar mais palatáveis decisões que são políticas em sua essência. Ou seja, os relatórios de recomendação seriam “para inglês ver”, na medida em que, em linhas gerais, não dialogam com o que o arcabouço legal relativo à CONITEC determina realizar.
O estudo analisou os relatórios de recomendação oficiais da CONITEC, de caráter público, divulgados entre julho de 2012 a dezembro de 2016, visando avaliar o tipo de informação científica empregada e a sua adesão aos procedimentos operacionais definidos em lei para a atuação da referida Comissão. Ao todo, foram avaliados pelas pesquisadoras 199 pareceres divulgados pela CONITEC.
Os relatórios de recomendação da CONITEC foram classificados de acordo com o tipo de tecnologia, setor que a demandou, tipo de Avaliação de Tecnologia em Saúde empregada, avaliações econômicas, cálculos de razão de custoefetividade incremental/comparações de limiares de custo-efetividade.
Os métodos empregados para a análise apresentada no artigo são minuciosos e não convém nos alongarmos aqui sobre eles. Ao final deste post, remetemos os interessados ao artigo na íntegra. Mais interessante seria dissecar aqui os resultados do referido estudo e suas potenciais implicações sociais para as pessoas que vivem com doenças raras e necessitam de medicamentos em uma perspectiva de direito integral à saúde.
Métodos
Antes de descrevermos os resultados revelados pelo artigo em questão, algumas palavras sobre o método nele empregado. As autoras classificaram as evidências apresentadas nos relatórios de recomendação da CONITEC em “Avaliação de Tecnologia em Saúde integral”; “mini-Avaliação de Tecnologia em Saúde”, “revisões rápidas” e “outras”.
Adicionalmente, para caracterizar os tipos de avaliações econômicas apresentadas nos referidos relatórios, empregaram o sistema de classificação criado por Drummond e colaboradores. Assim, tais estudos incluidos no relatório foram classificados como “análise de custoefetividade”; “análise de custo-utilidade”; “análise de custo-benefício” e “análise de custo-minimização”.
Os setores demandando as Avaliações de Tecnologia em Saúde junto à CONITEC foram separados nas seguintes categorias:
- Interno (saúde pública, judiciário ou outros agentes públicos);
- Externo (indústria farmacêutica, sociedade civil, empresas de equipamentos médicos e indústria alimentícia); e
- Misto (setor de saúde pública e indústria farmacêutica ou sociedade civil).
resultados
Dos 101 relatórios em que a incorporação foi recomendada, apenas 20 (19,8%) incluíam uma avaliação econômica integral e 13 (12,9%) incluiam avaliações econômicas integrais e cálculos de Razão de Custoefetividade Incremental (RCEI). Desta forma, 88 (87,1%) dos relatórios recomendavam incorporação sem uma avaliação econômica completa e cálculo de RCEI.
Dos 81 relatórios em que a nova tecnologia não era recomendada, 58 (71,6%) incluíam uma avaliação econômica completa e 45 (55,6%) incluíam uma avaliação econômica integral e cálculos de RCEI.
Outros resultados foram apresentados pelas autoras em seu artigo. Mas, devido a problemas de extensão deste post, recomendamos a quem se interessar a leitura do artigo em questão.
discussão
Vale a pena reproduzir textualmente a análise dos achados das autoras, tal como descrita no referido artigo.
Nossos achados indicam que há dificuldades com as recomendações constantes nos regulamentos internos da CONITEC, considerando o tipo de evidência que deve ser obrigatoriamente apresentado nos relatórios de recomendação. A despeito da ênfase que os regulamentos internos dão à avaliação econômica como evidência relevante, Avaliações de Tecnologia em Saúde integrais só foram citadas em 39,2% dos relatórios.
As autoras também destacam que somente em 13 relatórios de recomendação constava um cálculo de RCEI com um limiar de custoefetividade explícito.
Causa impressão também a este escriba a quantidade de relatórios classificados como “Outros”, na análise empreendida pelas pesquisadoras. Quase metade deles enquadrava-se nesta classificação, o que pode sugerir o emprego de critérios outros (políticos?) nas avaliações realizadas.
Dois pesos e duas medidas foram também constatados pelas autoras quando separavam as demandas feitas à CONITEC em “internas” e “externas”. “As diferenças entre demandas internas e externas em termos de uso de evidências indicam que outros fatores [desconhecidos dos contribuintes] estão em jogo no desenvolvimento das recomendações de consenso [divulgadas pela CONITEC]”. Observou-se que as “demandas internas” geraram relatórios de recomendação favoráveis à recomendação da tecnologia em questão de forma muito mais freqüente do que as “demandas externas”. No entanto, eu acredito que o fato de as pesquisadoras considerarem as demandas judiciais como “internas” pode ter enviesado a conclusão do estudo neste aspecto.
É importante ressaltar que as autoras do detalhado artigo são profissionais de saúde (uma médica, uma odontóloga e uma nutricionista em termos de graduação). Neste sentido, as implicações sociais e para a vida dos pacientes de seus resultados não são objeto de análise mais aprofundada no referido artigo. Para mim, as repercussões sociais negativas de tais achados são graves, comprometendo a legitimidade da CONITEC nas análises que mandatoriamente deve promover, por força de lei. Nesse sentido, as pesquisadoras oportunamente recomendam que seus achados possam estimular estudos sociológicos posteriores, para a adequada compreensão do fenômeno que revelaram.
De minha parte posso dizer que, se foram encontrados achados desta magnitude para todos os relatórios de recomendação da CONITEC em determinado período, o que não dizer dos achados que poderiam ser revelados, se as autoras se debruçassem sobre a incorporação de tecnologias em saúde ao SUS exclusivamente voltadas para doenças raras?
Você pode ler aqui o artigo na íntegra (em inglês).
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