Cláudio Cordovil

“Economistas são os deuses da saúde global”

por Richard Horton, editor-chefe da The Lancet, 2017

Os economistas são os deuses da saúde global. Seu manto deslumbrante de autoridade quantitativa e sua gama monstruosamente ampla de investigação silenciam as vozes menores da medicina, presas que estão na modesta disciplina da biologia.

Os economistas já ultrapassaram as fronteiras do corpo há muito tempo. Eles agora enfrentam as dificuldades de nosso planeta com uma despreocupação confiante. Devemos agradecer aos economistas pela moderna epidemia de austeridade que envolveu nosso mundo.

Austeridade é o cartão de visita do neoliberalismo. Seus efeitos seguem uma lei de dano inverso – o impacto de quantidades crescentes de austeridade varia inversamente com a capacidade das comunidades de se protegerem. A austeridade é um instrumento de malícia. Pesquise sobre austeridade e você encontrará poucos países não afetados.

Grécia, é claro, mas também Moçambique, França, Escócia, Brasil, Portugal, Espanha, Camarões, Bélgica, Holanda, África do Sul e Inglaterra. Economistas que defendem e governos que implementam austeridade naturalmente rejeitam a palavra. Em vez disso, eles chamam de austeridade, o “viver dentro de nossas possibilidades”.

“Políticas de austeridade acentuam os efeitos perversos das crises econômicas sobre a saúde, pois reduzem os orçamentos públicos em períodos de demandas ampliadas devido às repercussões do desemprego e redução de renda sobre o estado de saúde da população”

Lígia Giovanella  (Ensp/Fiocruz)

Mas sejamos claros. O que é promovido como disciplina fiscal é uma opção política. Uma escolha política que aprofunda as feridas já abertas e sangrentas dos pobres e precários. O Financial Times, um jornal geralmente escravo do espetáculo da economia, chamou essas políticas de “desumanas” na semana passada.

Mas a austeridade também é um contrato social. As pessoas aceitam restrições severas nos gastos públicos, ativamente nas democracias ou passivamente nas autocracias, porque aceitam a receita desagradável da abstinência. No entanto, o público também tem escolha.

E eles estão exercendo essa escolha em países de todo o mundo. Veja o Reino Unido. Em 1991, dois terços da população britânica queriam mais impostos e gastos. Mas em 2006, apenas um terço das pessoas apoiava a redistribuição de riqueza. Se não era bem-vinda, a austeridade era aceita.

Agora não. Na última Pesquisa Britânica de Atitudes Sociais, publicada na semana passada, a opinião pública se voltou contra a ideia de escassez brutal. 48% das pessoas queriam aumentar os impostos para permitir maiores investimentos na sociedade. 42% apoiaram a redistribuição de renda. E a saúde era sua prioridade – 83% das pessoas queriam mais gastos com nosso bem-estar coletivo. Depois de uma década cortando o alcance do governo, o público agora exige um Estado mais forte e generoso. O contrato que autorizava a austeridade foi rasgado.

Os economistas são os deuses da saúde global. Seu manto deslumbrante de autoridade quantitativa e sua gama monstruosamente ampla de investigação silenciam as vozes menores da medicina.

Como a comunidade médica deve responder a essa mudança em direção à saúde e à equidade? Escutando: uma habilidade que permanece um tanto rudimentar. A epidemiologia clínica é pouco adequada para monitorar as idéias e opiniões daqueles a quem devemos servir. Os métodos poderosos da ciência populacional que refinamos ao longo de um século são freqüentemente insensíveis às vidas dos mais vulneráveis.

A epidemiologia clínica é congenitamente surda ao sofrimento. Ela ignora as experiências vividas pelas populações que estuda. Kayleigh Garthwaite e Clare Bambra adotaram uma abordagem diferente para a austeridade (relatado recentemente em Social Science and Medicine). Eles descreveram as perspectivas leigas sobre a austeridade em Stockton-on-Tees, uma cidade pós-industrial com algumas das maiores iniquidades em saúde na Inglaterra.

Se alguém abordasse as pessoas com um estado de espírito epidemiológico, certamente poderia confirmar os fatores de risco individualizados que moldam grande parte do pensamento médico moderno – fumo, álcool, dietas inadequadas e assim por diante.

Mas também surgiu outra perspectiva – a saber, que muitas vezes “as probabilidades estão contra você”. Crianças criadas em famílias onde ter um emprego era raro. Onde a educação era pobre. Onde as casas estavam abandonadas. Onde o estresse era alto. Onde o estigma era generalizado. Onde as oportunidades estavam ausentes. Onde as atitudes e julgamentos para com aqueles que vivem em áreas mais pobres foram duros. Onde, como Garthwaite e Bambra colocaram, a privação estava escrita no corpo.

O que esses sentimentos de fatalismo e desesperança, de não conseguir ver uma saída, de pensar “qual é o sentido, nada do que eu fizer vai fazer diferença” significam para o bem-estar das pessoas? Eles criam, na análise recente de Matthew Sharpe sobre “austeridade e a personificação do neoliberalismo como doença”, uma espécie de subcidadania biológica, um status de segunda classe permanente em uma sociedade murcha e enfraquecida.

“As medidas de austeridade propõem cortes, são propostas sempre na linha de restringir os gastos públicos, e a saúde é uma área que acaba enfrentando este processo”

Fabiola Sulpino Vieira (Ipea)

Exclusão, exploração e privação de direitos. A violência política, cultural e social dilacera mentes e corpos. Muitos economistas estão dispostos a trocar esses sofrimentos por crescimento. A tarefa dos profissionais de saúde é resistir e se opor a esta economia escandalosa de nossos tempos.

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Tradução: Cláudio Cordovil  . A versão original está aqui.

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