Cláudio Cordovil

Diretrizes REBRATS de avaliação econômica: o que falta para quem tem doenças raras

Quando o governo decide se um remédio ou uma tecnologia de saúde deve entrar no SUS, ele precisa equilibrar três coisas ao mesmo tempo: se funciona de verdade, se vale o que custa e se o sistema tem condições de pagar.

Para entregar medicamentos no SUS, o governo equilibra pratos. Funciona de verdade? Vale o que custa? O SUS tem como pagar? Reprodução. Moisture Festival 2010, foto de Michelle Bates

A nova diretriz brasileira de avaliação econômica da REBRATS que esteve em consulta pública até ontem (o prazo foi prorrogado), avançou nesse caminho. Organizou conceitos, adotou o QALY como medida central (o que é bom para doenças prevalentes), atualizou o valor de referência e reconheceu que a razão de custo-efetividade incremental não é o único critério. Tudo isso ajuda a dar previsibilidade. Mas, quando olhamos para doenças raras e ultrarraras, o documento ainda deixa muito a desejar. Ele é meia boca porque ainda não transforma boas intenções em procedimentos claros para os casos em que a ciência chega com amostras pequenas, estudos sem grupo de comparação e muita incerteza (caso das doenças raras).

Nas doenças raras, muitas vezes não é possível conduzir um ensaio clínico com sorteio entre quem vai receber o tratamento e quem vai ficar no grupo-controle. O que existe, com frequência, é um estudo de braço único, em que todos recebem o medicamento, e a comparação precisa ser feita com um “controle externo” retirado de registros de pacientes, prontuários ou estudos anteriores. É o que chamamos de ECA (external control arm).

Isso não é um truque: é a maneira responsável de lidar com situações em que usar ensaios clínicos randomizados (padrão-ouro) seria impraticável ou antiético. O problema é que a diretriz proposta não explica como montar esse controle externo com segurança: não diz como escolher as fontes de dados, como alinhar o “tempo zero” para evitar vieses, como ajustar diferenças entre os grupos nem como relatar as análises de sensibilidade que testam a robustez dos resultados. Também não orienta, de forma prática, o uso da chamada “evidência do mundo real”, a RWE, que nasce do dia a dia do SUS e pode confirmar — ou desmentir — promessas feitas em estudos pequenos.

Há uma segunda ausência que pesa muito: a falta de regras explícitas para lidar com a gravidade da doença no momento de decidir. Outros países criaram mecanismos transparentes para “pagar mais” quando a perda de saúde ao longo da vida é muito grande. Aqui, a diretriz fala em “doença grave” e em “redução importante de qualidade de vida”, mas deixa esses conceitos no campo do subjetivo. Sem pesos definidos e exemplos práticos, decisões parecidas podem acabar em resultados de incorporação ao SUS diferentes. Para as famílias, isso se traduz em insegurança: ninguém sabe ao certo qual será o entendimento no próximo parecer do plenário da Conitec. Aleatoriedade e improviso.

O terceiro ponto é a engrenagem que conecta decisão e realidade. Em situações de alta incerteza — e as terapias gênicas são o exemplo mais marcante —, o certo é aprovar condicionalmente. Isso significa firmar acordos de compartilhamento de risco: contratos que definem metas de resultado, prazos, janelas de observação e gatilhos de revisão de preço ou até de desinvestimento, caso os resultados prometidos não se confirmem. Esses acordos só funcionam se houver um registro nacional com dados mínimos, capaz de acompanhar quem usou, quais foram os efeitos e quanto isso custou ao sistema. Hoje, a diretriz proposta na consulta pública quase não toca nesse ponto; sem contratos e sem registro, a decisão fica sem freios nem contrapesos.

Transparência não é adereço, é estrutura. Tornar, por exemplo, obrigatório a CHEERS 2022 (uma lista internacional padronizada com 28 itens de bom relato a ser encaminhada nas submissões à Conitec pelo fabricante ou quem quer que seja) seria um passo simples e poderoso. Na prática, cada dossiê submetido à Conitec teria de mostrar claramente onde explica a população-alvo, os comparadores, o horizonte de tempo, a taxa de desconto, os métodos para medir custos e benefícios, as incertezas testadas e as análises de equidade. Se algo essencial faltasse, o processo pararia até a correção. Isso evita “caixas-pretas”, facilita a comparação entre submissões e dá mais segurança para quem avalia.

Junto com o CHEERS, faz falta um sumário público das suposições e do modelo. Um documento curto, de quatro a oito páginas, em linguagem clara, publicado junto com o relatório preliminar. Nele, o proponente explicaria o desenho do modelo (com um esquema simples), de onde vêm os dados, quais são as suposições mais importantes, quais cenários foram testados e quais resultados importam para a decisão. Esse sumário permite que qualquer cidadão com um mínimo de instrução entenda o essencial, participe da consulta pública com base em fatos e, mais adiante, cobre coerência na reavaliação. Também obriga quem propõe a pensar desde o início no que precisará ser medido para confirmar a promessa feita no papel.

Em resumo, a diretriz atual tem um bom alicerce, mas ainda não entrega as ferramentas que tornam decisões mais justas e previsíveis para quem vive com doenças raras e ultrarraras. Falta um caminho claro para usar ECA e RWE, faltam regras objetivas para considerar a severidade da doença, faltam acordos com metas e um registro que dê lastro à reavaliação. Também falta transformar transparência em obrigação com CHEERS e sumário público. Com esses ajustes, o SUS ganha método, a sociedade ganha confiança e as famílias ganham algo precioso: previsibilidade. Isso, em saúde pública, é tão importante quanto qualquer nova tecnologia.


Uma versão mais técnica deste post será publicada amanhã.

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Cláudio Cordovil Pesquisador em Saúde Pública
Jornalista profissional. Servidor Público. Pesquisador em Saúde Pública (ENSP/Fiocruz). Especializado em Doenças Raras, Saúde Pública e Farmacoeconomia . Mestre e Doutor em Comunicação e Cultura (Eco/UFRJ). Prêmio José Reis de Jornalismo Científico concedido pelo CNPq.

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