Descaso e negligência rondam pessoas com autismo severo

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O arco-íris era uma das grandes paixões de Caroline Maduro desde pequena. Ela costumava desenhá-lo em papéis e nas paredes. “Ela dizia que queria caminhar pelo arco-íris”, diz a dona de casa Graça Maduro, de 64 anos, ao se recordar da filha mais velha.

 

São lembranças como a paixão pelo arco-íris que Graça procura guardar de Carola, como era chamada. A dona de casa luta para esquecer a imagem do caixão lacrado da filha, enterrada na tarde de 12 de abril em um cemitério de Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, cidade em que a família mora.

Carola morreu aos 30 anos. Ela foi considerada uma paciente com suspeita de covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus. Em razão disso, a cerimônia de despedida dela teve de ser curta e reuniu poucas pessoas — seguindo as orientações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para casos suspeitos ou confirmados do vírus.

O que mais entristece a dona de casa, que se dedicou intensamente aos cuidados com Carola nas últimas décadas, é a solidão da filha antes de morrer.

“Eu sempre cuidei dela com muito carinho e amor. Saber que ela morreu longe de mim e depois foi colocada em um caixão lacrado é uma sensação horrível”, diz à BBC News Brasil.

Graça considera que o acompanhamento médico dado à filha foi inadequado. A dona de casa afirma que não houve uma apuração profunda do caso de Carola antes de passarem a considerá-la uma paciente como suspeita do novo coronavírus. “A minha filha estava em isolamento havia semanas, pois não saía de casa. Quem teve contato com ela também estava isolado”, declara.

“Entendo que os profissionais de saúde estão sobrecarregados e, por isso, podem ter medo. Mas considerar uma paciente como suspeita de coronavírus, sem estudar a fundo o caso, e afastá-la da família em seus últimos momentos de vida é algo imensamente triste”, afirma a mãe.

Dias depois da morte, Graça soube que não fizeram o teste para apurar se a filha realmente tinha o novo coronavírus. “Como consideram suspeita e não testam?”, questiona.

Graça dedicava intensamente a vida aos cuidados com a filha mais velha, que tinha autismo severo

[su_heading size=”18″]A vida de Carola[/su_heading]

A história de Carola com os pais nasceu quando ela tinha um ano e quatro meses. Graça e o marido, o microempresário Sérgio Maduro, adotaram a garota. Eles contam que a mãe biológica da menina decidiu doá-la, pois não tinha condições de cuidar da criança.

Nos primeiros anos de vida, Carola apresentou dificuldades para caminhar, falar e socializar. Aos oito anos, foi diagnosticada com autismo severo.

O Transtorno do Espectro Autista (TEA), conhecido popularmente como autismo, é uma desordem complexa do desenvolvimento cerebral caracterizada por dificuldades na socialização e comunicação, além de padrões de comportamentos repetitivos.

Ele se manifesta em diferentes níveis. No mais severo, são necessários cuidados por toda a vida — e os pacientes costumam ter outras condições, como deficiência intelectual, transtornos de linguagem, epilepsia ou síndromes genéticas.

Segundo um estudo de cientistas americanos, estima-se que, aproximadamente, uma a cada 59 crianças tenha alguma característica do TEA. Não há dados específicos sobre pessoas com o grau mais severo.

Como costuma acontecer nos casos severos, Carola também tinha outras condições, como Transtorno Opositivo-Desafiador — caracterizado por um comportamento desobediente—, Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) e epilepsia.

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Em razão das dificuldades, ela precisava de acompanhamento constante. As paredes do quarto dela eram forradas com placas de espumas coloridas, para evitar que Carola agredisse a si — o material foi colocado no cômodo após sucessivas crises nas quais ela bateu a própria cabeça na parede.

Por conta das dificuldades da filha, Graça deixou a carreira de professora infantil e assistente social há mais de 20 anos. A dona de casa passou a se dedicar aos cuidados com Carola e com o caçula — ela engravidou quando a filha ainda era pequena.

“Não havia nenhum lugar onde poderia deixá-la enquanto estava trabalhando. Tive de parar. Naquela época, já era difícil. Hoje, as dificuldades continuam as mesmas”, relata Graça.

A história de Carola é um exemplo do autismo severo e da dedicação que os parentes das pessoas com essa condição precisam ter. Para relatar o que vivia com a filha e ajudar outras mães, Graça criou uma página no Facebook anos atrás.

A página “O autismo em minha vida”, que hoje tem mais de 32 mil seguidores, se tornou referência entre pessoas que cuidam ou conhecem indivíduos com autismo severo.

Foi na página que Graça revelou, em novembro de 2018, que a filha quase morreu após uma grave crise epiléptica que a acometeu enquanto dormia. Na época, Carola desenvolveu uma pneumonia aspirativa — infecção do pulmão causada pela aspiração de partículas que atingem as vias respiratórias e levam a sintomas como tosse e falta de ar.

Em razão do episódio, ela passou dias em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) até se recuperar. Os problemas causaram uma lesão cerebral que fez com que Carola parasse de andar sozinha. Desde então, ela passava grande parte de seus dias deitada.

Em 2019, Carola apresentou diversas dificuldades ao longo dos meses, mas seguiu se desenvolvendo aos poucos.

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[su_heading size=”18″]A morte em meio ao coronavirus[/su_heading]

Na manhã de 10 de abril, uma sexta-feira, Carola não acordou. Ela teve uma broncoaspiração enquanto dormia — quando líquidos, alimentos ou até a saliva são aspirados para o pulmão. Uma ambulância a encaminhou para uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Petrópolis, onde recebeu os primeiros atendimentos.

Na última vez em que Graça viu a filha, Carola estava sendo levada para a sala vermelha da unidade de saúde. “A minha filha estava sedada. Mas ainda assim, queria estar ao lado dela naquele momento”, lamenta.

No dia seguinte, Carola foi levada para um hospital municipal de Petrópolis, especializado em pacientes com a covid-19, onde permaneceu entubada. A equipe que a acompanhou considerou que ela pudesse ter o novo coronavírus.

“Ela não tinha o coronavírus. Isso pra mim sempre foi muito claro. A minha filha vivia reclusa com a gente. Até as sessões de fisioterapia, que ela fazia, foram suspensas no começo de março, para que ela não tivesse contato com pessoas de fora de casa. Só se ela pegou depois que chegou ao hospital”, afirma a mãe.

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Graça acredita que a filha teve mais uma pneumonia aspirativa, como no fim de 2018. “Não apuraram a fundo o caso dela, apenas consideraram suspeita de covid-19 por ela estar com problemas respiratórios e pronto”, afirma a mãe. Em casos de suspeita do novo coronavírus, o paciente deve permanecer isolado.

Quadros de pneumonia aspirativa são considerados comuns entre pessoas com problemas de deglutição, principalmente em decorrência de dificuldades neurológicas, como era o caso de Carola. Para argumentar que a filha não teve a covid-19, Graça cita o caso da morte do pequeno Arthur, filho da cearense Maria Inamá Araújo Santiago. O garoto morreu em 31 de março, aos três anos. Ele não teve direito a velório, pois também foi considerado um caso suspeito do novo coronavírus. Duas semanas depois, um exame apontou que ele não tinha o vírus. Os médicos concluíram que ele morreu por pneumonia aspirativa.

Para Graça, assim como no caso de Arthur, a suspeita de que Carola pudesse ter a covid-19 foi equivocada. “Eles deveriam apurar melhor o que minha filha tinha, para que ela não ficasse sozinha. Eu sempre fui uma mãe presente e queria estar com ela”, lamenta.

Os médicos chegaram a propor que Carola fosse tratada com cloroquina, remédio que vem sendo testado no combate à covid-19. “Eu não deixei, porque isso poderia prejudicá-la ainda mais. A minha filha tomava vários remédios e isso poderia piorar o quadro dela, principalmente porque eu não acredito que ela tivesse coronavírus”, justifica Graça. A decisão da mãe foi apoiada pelo médico que acompanhara Carola nos últimos anos.

A dona de casa relata que desde que a filha foi levada para o hospital, sabia que ela tinha poucas chances de sobreviver. “A Carola estava muito mal. Eu não acredito que ela pudesse resistir. Mas o que me dói é saber que ela se foi sem que eu estivesse por perto”, diz.

Na manhã de domingo, 12 de abril, Carola morreu. “A minha filha descansou, mas não queria que as coisas fossem dessa forma”, lamenta Graça. Horas mais tarde, ela e o marido participaram da cerimônia de despedida, em um cemitério de Petrópolis. “Queria muito ter visto a minha filha, mas era caixão lacrado e isso me deixou muito angustiada. Não ter visto o rostinho dela naquele momento me deu a sensação de que ela não morreu.”

“A funerária pegou o corpo dela no hospital, embalou em um plástico e levou para o cemitério no caixão”, diz.

Por ser um caso apontado como suspeita de covid-19, a cerimônia de despedida contou com poucos convidados, os pais e dois casais de amigos, e durou poucos minutos. “Foi uma situação horrível”, declara.

“Te tiram o direito de velar o seu filho. As pessoas dizem que é só um corpo. Realmente é só um corpo, mas o velório é uma despedida, é uma forma de concretizar a morte. Mas nem isso a minha filha teve direito”, diz a dona de casa.

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Carola morreu aos 30 anos. Médicos consideraram o caso dela como suspeita de covid-19, mas a mãe não acredita que a filha pudesse ter a doença, pois vivia em isolamento

[su_heading size=”18″]Sem exame[/su_heading]

Depois da morte da filha, Graça aguardou o resultado do exame da covid-19. “Disseram que deveria ficar pronto em uma semana”, relata. Porém, ela foi surpreendida dias após o falecimento de Carola.

“Eu perguntei novamente sobre o exame e não tinham mais como me esconder, disseram que não foi feito.”

“Trataram a minha filha como suspeita de covid-19. Me deixaram distante dela e sequer fizeram o teste. Era esse exame que eu aguardava para comprovar que agiram errado no acompanhamento da minha filha, pois tinha certeza de que daria negativo”, critica Graça.

Os exames no Brasil são considerados insuficientes para atender a todos os casos. O Ministério da Saúde adquiriu novos lotes, que estão sendo distribuídos gradativamente pelo país. Ainda assim, a quantidade é considerada baixa, diante do crescimento exponencial de casos. A principal orientação do ministério é que pacientes graves com suspeita, como era o de Carola, sejam testados.

A reportagem entrou em contato com a Prefeitura de Petrópolis. Por meio de assessoria de imprensa, os representantes do município não informaram se foi feito o teste de covid-19 em Carola. Eles justificam que não podem passar informações específicas sobre pacientes. “O sigilo médico é firme neste aspecto e não podemos burlar as determinações”, justifica, em nota encaminhada à BBC News Brasil.

No atestado de óbito de Carola consta que ela morreu por uma sequência de problemas de saúde: insuficiência respiratória aguda, pneumonia, broncoaspiração, crise convulsiva e epilepsia. O documento não cita a suspeita de covid-19.

Graça cobra respostas. Nos próximos dias, ela deve receber um documento com os detalhes do acompanhamento médico que a filha teve enquanto esteve internada. “Não vou descansar enquanto tudo não estiver esclarecido”, assevera. Nas próximas semanas, planeja tomar as medidas cabíveis.

“Sempre tratei a minha filha da melhor forma possível. No final da vida, ela foi tratada feito um animal. Isso é muito triste para a minha família e não podemos deixar isso passar assim”, declara.

Enquanto aguarda esclarecimentos, Graça tem evitado pensar no futuro. “A minha vida era a minha filha. Agora não sei o que vai ser daqui pra frente. A Carola me ensinou a viver. Me transformou em outra pessoa. Conviver com ela foi uma escola. Passei a valorizar aquilo que realmente tem valor. Aprendi muito. Tenho sentido muita falta dela.”

A única certeza que Graça tem sobre os próximos meses é de que continuará com a página criada para retratar a rotina da filha. “Não vou parar, porque sei que ajuda muitas pessoas que têm parentes com autismo severo. É um assunto que precisa ser cada vez mais falado e esclarecido, para que as pessoas compreendam e para diminuir o preconceito”, pontua Graça.

Para lidar com a saudade frequente, a dona de casa procura pensar que a filha está bem. “Agora ela vai poder brincar no arco-íris, como sempre quis.”

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Com informações da BBC

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