Cláudio Cordovil

Debate sobre judicialização complica futuro dos doentes raros

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) realizou nos dias 29 e 30 de novembro de 2018, em Brasília/DF, o Seminário Reflexões sobre a Judicialização da Saúde: um diálogo interinstitucional. O blog AcadP esteve presente e traz um resumo dos temas que interessam diretamente às pessoas vivendo com doenças raras e seus familiares. A programação pode ser consultada aqui.  A realização do evento coube à Comissão Extraordinária da Saúde (CES) e à Unidade Nacional de Capacitação do Ministério Público (UNCMP).
O evento teve como principal finalidade “promover o diálogo entre as instituições públicas envolvidas na judicialização da saúde: Ministérios Públicos Federal, do Trabalho, de Contas e Estaduais, Poder Judiciário, Conselho Nacional de Justiça, Defensoria Pública, Procuradorias do Estado, Ministério da Saúde, Conselhos Federais de Medicina e de Farmácia, Conselhos de Saúde e Gestores de Saúde”.
No centro dos debates, a necessidade de “racionalização da judicialização”. O tema da ‘racionalização’ é amplamente estudado no campo das Ciências Sociais (e tende a ser bem traiçoeiro para doenças raras), e sobre ele trataremos em futuros posts. Segundo os organizadores, esta seria “prioridade em função do elevado e crescente número de ações judiciais propostas no país anualmente para a obtenção de medicamentos, procedimentos, tratamentos médicos, produtos e tecnologias em saúde”.

De acordo com o Relatório do CNJ Justiça em Números 2017, ao menos 1.346.931 processos com o tema “saúde” tramitaram no Judiciário em 2016. Essas ações foram ajuizadas, inclusive, pelo Ministério Público, que, segundo os organizadores, “muitas vezes, não dispõe de informações técnicas para a resolução administrativa do conflito, para buscar alternativas à judicialização ou mesmo para qualificar a demanda”.
Entre os temas discutidos,  destacaram-se:
  • a promoção da saúde como direito humano;
  • o papel do Ministério Público na judicialização e na concretização da saúde;
  • o perfil da Defensoria Pública no Brasil e o direito à saúde;
  • conflitos que levam à judicialização da saúde; a visão dos gestores sobre a judicialização da saúde;
  • o papel do Judiciário na garantia do direito à saúde;
  • e alternativas à judicialização, atuação preventiva, administrativa eresolutiva de conflitos em saúde e mediação sanitária.

Da perspectiva do doente raro, as apresentações mais interessantes (para o bem ou para o mal) foram as da procuradora geral da República, Raquel Dodge; do desembargador João Pedro Gebran Neto (TRF4), do defensor público do Distrito Federal (DP-DF), Ramiro Nóbrega de Sant’Ana, e da pesquisadora Célia Delduque (Fiocruz Brasília) . Sobre elas iremos tratar em breve, em outro(s) post(s) neste blog.

Recusa do direito mediante alegações pseudocientificas

Em minha opinião, aspecto preocupante, da perspectiva do direito do acesso do paciente ao medicamento órfão, foi a ênfase no evento sobre o uso indiscriminado da Medicina Baseada em Evidências (MBE) como ferramenta indispensável da tomada de decisão dos magistrados em casos envolvendo medicamentos de alto custo.

De fato, há um investimento expressivo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Ministério da Saúde na criação e divulgação da plataforma denominada E Nat-Jus, inspirada em sugestão do Desembargador João Pedro Gebran Neto (TRF4). Ela tem sido vista pelos operadores do direito como panacéia para a resolução dos conflitos judiciais envolvendo o direito à saúde.

No entanto, tenho afirmado inúmeras vezes, neste blog e em espaços acadêmicos, a total inadequação do emprego da MBE em casos envolvendo doenças raras e especialmente ultrarraras (aquelas que acometem 1 a cada 100 mil pessoas), com base em achados robustos da literatura internacional. Se empregada indiscriminadamente, como pretendem os operadores do direito que defendem esta abordagem, a MBE servirá para restringir ainda mais o direito à saúde dos portadores de doenças raras e ultrarraras.  Agora, com aval supostamente científico, os operadores do direito estarão tomando uma decisão política: a de dificultar cada vez mais o acesso de pacientes a medicamentos de alto custo, em contexto de suposto direito à saúde.

Plataforma digital a serviço da desinformação?

O E-NatJus foi lançado no dia 21 de novembro de 2017 pela então presidente do Conselho Nacional de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, ministra Carmen Lúcia, durante o XI Encontro Nacional do Poder Judiciário, na sede do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em Brasília. Na ocasião, a ministra afirmou: “O e-NatJus é uma funcionalidade que estará a serviço do juiz para que a sua decisão não seja tomada apenas diante da narrativa que apresenta o cidadão entre a vida e a morte. Com a plataforma digital, essas decisões poderão ser tomadas com bases objetivas e seguras”.
Ledo engano. Bases objetivas e seguras são tudo o que falta  no que se refere a doenças raras, pela simples razão de elas serem…  raras! Só em raríssimos casos (sem trocadilhos) se encontram evidências robustas sobre medicamentos órfãos, notadamente em fases pré-comercialização dos mesmos, que é quando se exigem as tais evidências, no cenário regulatório brasileiro.
Na ocasião do lançamento da proposta do E-NatJus, o então ministro da saúde Ricardo Barros afirmou:  “Existem atualmente cerca de 400 liminares que determinaram a aquisição de um determinado remédio. Nós mandamos investigar cada um dos doentes que solicitaram o medicamento porque toda doença segue um protocolo de atendimento. Muitas vezes, o remédio fará efeito apenas se o tratamento for iniciado em um diagnóstico precoce. Portanto, em alguns casos, a compra do medicamento não vai beneficiar o paciente”.
Não obstante sua engenhosa justificativa (sim, o ex-ministro da saúde é engenheiro!), em bom juridiquês, o que o ministro fez tem um nome: “descumprimento sistemático de liminares”. Costumava ser crime. De fato, a AFAG contabiliza cerca de 26 óbitos que chegaram a seu conhecimento por esta desobediência tolerada aqui do lado debaixo do Equador.

Dar ao magistrado fundamentos científicos para decidir se concede ou não determinado medicamento ou tratamento médico a quem aciona a Justiça é o objetivo do e-NatJus, plataforma digital que a presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, lançou durante o XI Encontro Nacional do Poder Judiciário, na sede do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em Brasília.

O cadastro nacional de pareceres, notas e informações técnicas reunido no E-Natjus “oferecerá base científica para as decisões dos magistrados de todo o País quando precisarem julgar demandas de saúde”.

“Promessas de curas e recursos públicos”

O lançamento do e-NatJus é resultado do trabalho do Fórum Nacional do Poder Judiciário para a Saúde, que desde 2016 incentiva, nos tribunais brasileiros, a implantação dos Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NATs). O supervisor do fórum e conselheiro do CNJ, Arnaldo Hossepian, afirmara que a plataforma digital lançada irá prevenir o “uso do Judiciário de forma inconsequente, predatória, com promessas de curas que não serão entregues, além do uso inócuo de recursos públicos e de prejuízos para todos os usuários do sistema”, disse.

Aqui cabe um reparo à fala do eminente operador do direito, Dr. Arnaldo Hossepian. A noção de cura, no que se refere à Saúde Pública e mesmo à Medicina, é entidade altamente polêmica. Puxe pela sua memória, caro leitor, e lembre-se qual foi o último remédio que você tomou e lhe proporcionou “A CURA”?

Um antigripal? Não, não! O antigripal não cura a gripe, mas alivia os sintomas. Ok, um antibiótico? Hum… Sim, os antibióticos costumavam curar infecções bacterianas antes do advento da resistência bacteriana. Não curam mais. Na maioria dos casos. E esta é a grande luta de organismos de saúde pública no mundo inteiro no momento. Ah tá! Então … um oncológico !  Nope ! Oncológicos não propriamente curam o câncer! Você já deve ter escutado dizer que o homem ainda busca a cura do câncer.

Mas o que então o Dr. Hossepian quis dizer com a palavra “cura”. Basicamente ele usou um sofisma e abusou da retórica, para inventar uma razão estapafúrdia para não se incorporar nada ao SUS que custe alguns cobres a mais. Porque se formos esperar a “cura” para ter um medicamento incorporado ao SUS, esperemos deitados, porque sentado irá cansar.  Também precisaríamos entender o que o dr. Hossepian entende por ‘inócuos’. Se o horizonte que ele mira é a “cura”, então todos os medicamentos disponíveis na farmácia, por extensão, serão “inócuos”. Devemos fechar todas! E ainda processar os laboratórios por charlatanismo.

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