Como as Big Pharmas manipulam o sistema para aumentar lucros

Proteções de mercado sobrepostas e truques de tribunal mantêm os concorrentes fora do mercado por muito mais tempo do que as regras pretendiam, dizem as fabricantes de genéricos.

O mercado farmacêutico é uma fera estranha.

É governado por um complexo sistema de regras que protege novos medicamentos de marca de concorrentes similares por um período limitado de tempo para manter os concorrentes genéricos mais baratos afastados.

Mas medidas como patentes, exclusividade de mercado e proteção de dados – projetadas para dar às empresas farmacêuticas a chance de recuperar o investimento em um novo medicamento — estão sendo exploradas por algumas grandes empresas farmacêuticas para manter os concorrentes fora do mercado muito além do período fixo pretendido de cerca de 15 anos, argumenta o setor de genéricos.

Manipular o sistema é tão comum que tem até nome: Evergreening. Pode adicionar bilhões de euros aos balanços das empresas farmacêuticas e representar um custo significativamente alto aos países da União Européia (e outros países do mundo) em termos de recursos gastos.

As Big Pharmas negam veementemente irregularidades, mas em um relatório de 2009, a Comissão Europeia destacou a necessidade de mais vigorosa aplicação das leis de concorrência para evitar o evergreening. No entanto, pouco mudou.

Agora, o rascunho vazado da revisão da legislação farmacêutica pela UE indica que a Comissão pode estar se preparando para reprimir tais práticas.

Então, enquanto esperamos que a Comissão publique sua proposta, vejamos as formas mais comuns de burlar o sistema – e o que o grupo europeu de lobby da Big Pharma, a Federação Europeia de Associações e Indústrias Farmacêuticas (EFPIA), tem a dizer sobre isso.

Os tópicos que você vai ver a seguir:

Matagal de patentes

Você pode pensar que, para cada medicamento, uma patente. Mas você está enganado. A AbbVie, por exemplo, solicitou mais de 250 patentes para seu medicamento para artrite, Humira®, nos Estados Unidos. Assim, embora o medicamento tenha sido lançado em 2003, os seus primeiros concorrentes só entram no mercado este ano.

Enquanto a principal patente de um medicamento cobre sua composição química, as empresas podem explorar um gama de possíveis penduricalhos para atrasar a produção de congêneres pela concorrência. Estes incluem processos de fabricação, métodos de administração ou a dosagem do medicamento.

O matagal de patentes resultante, como é chamada a estratégia, aumenta as proteções legais que os rivais precisam contestar na Justiça, tornando o lançamento concorrente mais arriscado e caro. É uma prática comum: outro medicamento para artrite, o Enbrel®, que é vendido pela Amgen nos EUA e pela Pfizer na Europa, provavelmente desfrutará de 37 anos de proteção de patente até 2029 em seu mercado americano original.

A EFPIA responde: O Escritório de Patentes da Europa tem altos padrões e não oferece patentes a torto e a direito. Além disso, os processos patenteados não impedem empresas de genéricos de produzir a droga; elas só precisam encontrar outro caminho para tal.

Truques de tribunal

Patentes adicionais (add-on) podem ser contestadas em tribunal. Mas a brincadeira não para por aí. Justamente quando parece que um questionamento pode ser bem-sucedido, algumas empresas farmacêuticas complicam as coisas registrando pedidos de patentes adicionais no Escritório Europeu de Patentes.

Cada uma dessas chamadas patentes divisionais está vinculada a patentes secundárias, como um processo de fabricação, ou modo de administração do medicamento e fornecem a mesma duração de proteção.

Mesmo que a patente secundária seja contestada com sucesso por uma empresa de genéricos – ou, muitas vezes, a empresa original retire a patente antes que o questionamento seja bem-sucedido – as empresas de genéricos também precisam contestar a patente divisional vinculada. Isso pode levar até sete anos.

“Estamos vendo isso cada vez mais como uma estratégia para retardar a concorrência dos genéricos e dos biossimilares”, disse Adrian van den Hoven, chefe do Medicines for Europe, o grupo de lobby dos genéricos. “Isso cria insegurança jurídica, forçando as empresas de genéricos a contestar todas as patentes divisionais se quiserem entrar no mercado”, disse ele.

A EFPIA responde: A ênfase nestes casos é “desproporcional”, com divisões representando cerca de 10 por cento de todos os novos pedidos de patentes europeias. As patentes divisionais expiram ao mesmo tempo que a patente-mãe vinculada e não podem replicar as mesmas reivindicações.

Fatiar salame

Medicamentos para doenças raras recebem tratamento especial: uma década de exclusividade no mercado. Isso significa que, se a Agência Europeia de Medicamentos autorizar um novo medicamento para uma condição que afeta não mais do que cinco em cada 10 mil pessoas na UE para a qual não há tratamentos eficazes – ou acrescenta benefícios consideráveis ​​aos tratamentos existentes – os medicamentos congêneres precisam esperar 10 anos para entrar no mercado.

Mas uma doença rara pode ser… inventada? Depende de como você corta o salame. Existem preocupações sobre a estratégia das Big Pharma de dividir doenças comuns em subconjuntos, criando artificialmente grupos de doenças raras – para potencialmente se beneficiar desses incentivos para sua produção.

E embora essa tática – chamada de ‘fatiar o salame’ – possa levantar suspeitas agora, é provável que seja um problema ainda maior no futuro com o advento de medicamentos personalizados direcionados a indivíduos, adverte Ancella Santos, diretora sênior de política de saúde da European Consumer Consumer Organização (BEUC). “A Comissão deve vedar quaisquer brechas, como potenciais abusos”, disse Santos.

A EFPIA responde: É correto as doenças serem classificadas por tipo, assim como os desvios genéticos, pois esta é a realidade científica. Em qualquer caso, quando outros tratamentos estiverem disponíveis, os incentivos serão aplicados apenas a produtos que tragam um benefício claro para os pacientes.

Vinculação de patentes

A chamada “Exceção Bolar” é projetada para limitar os poderes de patente. Ela permite que as empresas farmacêuticas de similares comecem a preparar medicamentos congêneres antes que as patentes dos produtos originais expirem, para que possam estar prontas para entrar no mercado assim que o seu tempo expirar.

Mas os países da UE têm interpretações diferentes sobre a extensão da aplicação da exceção Bolar. Em alguns, as empresas de genéricos podem iniciar negociações com as autoridades de saúde sobre os preços das alternativas mais baratas antes mesmo de seu lançamento oficial. Em outros, porém – incluindo Alemanha, Itália e Polônia – as patentes podem impedir que as autoridades de reembolso conversem com as empresas de genéricos, uma prática chamada “vinculação de patentes”.

Uma resolução do Parlamento Europeu de 2017 exortou a Comissão a acabar com a prática. Isso pode acontecer. Uma versão preliminar da nova legislação farmacêutica européia explica como funciona a Exceção Bolar para afirmar explicitamente que também abrange decisões de preços e reembolso.

A EFPIA responde: A lei diz que a exceção Bolar não se aplica a pedidos de preços e reembolsos. Algumas empresas de genéricos já estão lançando produtos em países da Europa Central e Oriental , enquanto existem proteções de propriedade intelectual válidas, Ampliar a isenção Bolar encorajaria mais esse comportamento.

Resistindo ao licenciamento compulsório

O licenciamento compulsório – onde os governos podem quebrar patentes e permitir que outras empresas produzam um medicamento em caso de emergência – há muito é percebido pela indústria como uma ameaça existencial. As grandes empresas farmacêuticas fizeram lobby feroz contra a implementação e até agora tiveram um aliado útil na legislação da UE – a proteção de dados regulatórios.

Embora o licenciamento compulsório possa forçar a indústria farmacêutica a compartilhar a fórmula de um medicamento, ela não é obrigada a compartilhar dados dos testes clínicos de medicamentos, algo que uma empresa rival precisa para ter sua versão aprovada.

A indústria tem se oposto fortemente aos esforços para aumentar o uso do licenciamento compulsório. Por exemplo, em uma submissão de 2019 à lista negra anual do governo dos EUA de países que não se curvam a seus padrões de Proteção Industrial, o setor farmacêutico dos EUA fez lobby com sucesso para adicionar países que usam o licenciamento compulsório de uma maneira que não apreciam.

A legislação farmacêutica da UE pode mudar isso, permitindo a suspensão de proteção de dados e de mercado em casos de emergências de saúde pública.

A EFPIA responde: As empresas que inventam um medicamento devem ter permissão para trazê-lo ao mercado desde que conheçam melhor a tecnologia. O licenciamento compulsório é um recurso a ser empregado em último caso por um bom motivo, e a “disposição indevida” de empregar a medida mina a confiança dos investidores e prejudica a inovação.


Texto originalmente publicado em inglês em Politico.

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