Cláudio Cordovil

A Portaria 199, que define a política de cuidado para os raros, está em risco?

judicialização, transparência

 

Causou-me estranheza a declaração do deputado Diego Garcia (Podemos-PR), coordenador da Frente Parlamentar das Doenças Raras, em entrevista concedida ao site jurídico Jota no início deste mês (para ler a entrevista, basta preencher um cadastro gratuito) Parece que passou despercebida também das associações de pacientes e pessoas interessadas nos direitos dos doentes raros.

(…) A gente está discutindo a rescisão (sic) da Portaria 199 e estamos ouvindo o Poder Judiciário. Graças a uma articulação da deputada Carmen Zanotto (Cidadania-SC) criamos essa ponte com o Judiciário. Tem juízes federais que estão enviando contribuições para o Parlamento. Um dos nossos objetivos é que a gente tenha tanto êxito nas ações que consiga diminuir o número de judicialização.

Para quem não sabe, a Portaria 199/2014 institui a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, aprova as Diretrizes para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no âmbito do SUS e institui incentivos financeiros de custeio. Até onde pode-se depreender da declaração do deputado:

  1. Pretende-se revogar a Portaria 199 (portarias não são rescindidas, como afirmou o deputado, talvez buscando um eufemismo).
  2. Criou-se uma “ponte com o Judiciário”. Não se compreende muito bem o que isso queira dizer a não ser, num primeiro momento, uma promiscuidade indevida entre Judiciário e Legislativo.
  3. Não se consegue compreender que tipo de contribuições juízes federais estariam levando ao Parlamento, sem que isso represente grave lesão dos já minguados direitos dos pacientes com doenças raras.

Trocando em miúdos: Desde o século 18, quando da publicação de O espírito das leis, de Montesquieu, preconiza-se a independência dos poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Nossa Constituição Federal (CF), o manual de instruções do cidadão brasileiro também trata do tema.

Diz o artigo 2º da Constituição Federal (CF): “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. A CF também indica que o Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional – CN (Art. 44), o Executivo pelo presidente da República (Art. 76), e lista os órgãos do Judiciário (Art. 92) e suas responsabilidades.

Diante da declaração do eminente deputado indaga-se: Em que uma conversa entre Judiciário e Legislativo poderá beneficiar doentes raros? Não consigo vislumbrar. Qual o teor destas conversas? Já estão em andamento? A julgar pelos debates em curso sobre judicialização, pretende-se reduzi-la, e não promovê-la. Ora, a redução do direito de pacientes em judicializar suas demandas não atendidas pelo SUS configura-se como grave lesão a seus interesses legítimos. A não ser que se imagine que os juízes agora aprenderão Farmaeconomia aplicada a medicamentos órfãos. Não me parece ser este o caso.

Já não é a primeira vez que se observa uma promiscuidade obscena entre Poderes, com relação ao direito de pessoas vivendo com doenças raras. Anteriormente, constatamos flagrante promiscuidade quando de um convênio celebrado entre o Executivo (Ministério da Saúde) e o Conselho Nacional de Justiça (Judiciário) para a criação do que ficou conhecido como NAT -JUS.

Pelo Termo de Cooperação Técnica firmado entre o Ministério da Saúde e o CNJ em agosto de 2016, os tribunais ou Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NAT-JUS) têm à disposição o suporte técnico-científico dos Núcleos de Avaliação de Tecnologia em Saúde (NATS) para a produção de notas técnicas que possam aperfeiçoar o julgamento das demandas judiciais.

Os NATS são estruturas que reúnem, dentro de uma instituição pública ou privada sem fins lucrativos, recursos e profissionais com competência técnica para desenvolver, promover e executar Avaliações de Tecnologias em Saúde, sob demanda da Conitec.

Como se costuma dizer, o diabo mora nos detalhes. Uma das finalidades do NAT-JUS é reduzir a judicialização, única porta de acesso dos doentes raros, na maioria dos casos, a seu direito à assistência farmacêutica especializada. Como os NATS costumam ignorar totalmente as especificidades das doenças raras e dos medicamentos órfãos nas suas recomendações à Conitec (ao menos no que nos é dado a conhecer) e não possuem em seu corpo de técnicos pessoas especializadas nestas peculiaridades, o que se vê é uma potencial chance de o NAT-JUS indeferir os pleitos dos doentes raros em suas demandas judiciais por medicamentos.

A declaração do deputado Diego Garcia é dada no mesmo momento em que estudos foram divulgados mostrando a baixissima adesão dos juízes aos pareceres produzidos pelo NAT-JUS (o que não deixa de ser uma excelente notícia para os raros).

Resta saber o que o sr. Diego Garcia, nesse contexto, entende por estabelecer “uma ponte com o Judiciário”. Com a palavra o nobre deputado e a deputada Carmen Zanotto (Cidadania-SC), citada pelo entrevistado.

Cumpre ressaltar que a Portaria 199 foi produto de ampla discussão e debate com a sociedade civil e com as associações de pacientes, iniciados em 2012.

A suposta revogação da Portaria 199/2014 parece se dar na surdina, sem a atenção devida dos pacientes e das partes interessadas, e principalmente sem sua participação. Como dizem os pacientes: “Nada sobre nós sem nós”.

É hora de investigar melhor o que se passa e lutar pela independência dos poderes, como determina a Constituição Federal, no melhor interesse das pessoas que vivem com doenças raras e de toda a sociedade.

Com a palavra os nobres deputados Diego Garcia e Carmem Zanotto, por ele citada na entrevista.

 

2 comentários em “A Portaria 199, que define a política de cuidado para os raros, está em risco?”

  1. Gostaria muito que os referidos representantes do Legislativo se manifestassem..
    O Segmento das Pessoas com Doenças Raras precisam estar cientes dessas iniciativas. Reforço o “Nada sobre nós sem nós”…

    Responder
  2. Gravíssimo isso
    Como as Associações de Pacientes n tiveram conhecimentoBatalharam muito em 2012 com respeito à Judicializacao
    Genocídio a vista
    MS n fez compra dos remédios, mesmo p os Pacientes com decisão judicial

    Responder

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