Cláudio Cordovil

A ‘impossível trindade’ dos medicamentos de alto custo

Trilema: Termo derivado do grego “tri-” (três) e “-lemma” (premissa ou proposição). É um conceito usado em lógica e filosofia que descreve uma escolha entre três opções, cada uma das quais vem com seus próprios desafios ou dilemas. Portanto, ao enfrentar um trilema, uma pessoa deve decidir entre três opções mutuamente excludentes, cada uma com suas próprias implicações ou consequências.

Não é preciso ser um especialista em economia para compreender a lei da oferta e procura: quanto maior o preço, menor a probabilidade de um consumidor adquirir um produto. Isso, naturalmente, limita o quanto as empresas podem cobrar por eles.

Essa lei também se aplica ao setor farmacêutico, mas com uma diferença significativa. Nem sempre é o cliente que decide que o preço está muito alto. Nos Estados Unidos, por exemplo, muitas vezes é a seguradora.

As seguradoras americanas, ao considerarem o preço de um medicamento muito elevado, têm basicamente duas formas de reação. Primeiro, podem obrigar os pacientes que necessitam do medicamento a compartilhar o custo, exigindo que paguem uma quantia considerável do próprio bolso, na forma de co-pagamentos elevados.

Como isso diminui a procura pelo seu produto, as empresas farmacêuticas estariam dispostas a reduzir os preços em resposta. Em segundo lugar, as seguradoras podem limitar o acesso a novos medicamentos. Elas podem excluir os medicamentos de seus formulários e recusar-se a cobri-los, ou podem limitar o acesso por meio de autorização prévia, terapia escalonada e políticas semelhantes. Essas duas abordagens – altos custos diretos ou acesso limitado – são o que impede as empresas farmacêuticas de estabelecer preços cada vez mais elevados nos EUA.

A “impossível trindade”

Mas isso deixa os pacientes presos no que podemos chamar de “impossível trindade”.

Vou explicar. Os pacientes desejam três coisas das seguradoras ou de qualquer sistema público de saúde, como o SUS:

1. Acesso a novos medicamentos,

2. Baixo desembolso para pagar medicamentos (out of pocket costs); e

3. Preços baixos definidos pelos fabricantes.

Mas como as seguradoras nos EUA precisam negociar os preços com os laboratórios, aumentando os co-pagamentos dos clientes ou impondo restrições ou exclusões mediante exigência de autorização prévia, os pacientes nunca podem obter todas as três coisas ao mesmo tempo. É aí que entra a “impossível trindade”.

A impossível trindade não é um fenômeno exclusivamente norte-americano.

Ela se aplica onde quer que os cuidados de saúde sejam prestados. Tomemos o exemplo do NHS (o SUS britânico).

O NHS consegue preços baixos de medicamentos sem impor altos custos diretos aos seus beneficiários britânicos.

Como ele faz isso? O NHS limita o acesso a novos medicamentos através do NICE! (Agora você deve estar se lembrando da Conitec brasileira!).

Muitos americanos invejam os britânicos por seus preços baixos de medicamentos e pelo pouco dinheiro que precisam tirar do bolso para pagá-los. Mas a dependência britânica de exclusões pelo NICE ainda impõe custos tremendos aos pacientes. Não se pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos.

O caso Vertex

Vejamos como o NHS lidou com tratamentos inovadores para fibrose cística, desenvolvidos pela Vertex Pharmaceuticals.

A partir de 2016, o NHS recusou-se a cobrir os medicamentos porque concluiu que o preço cobrado pela Vertex era muito alto. Pais britânicos de crianças com fibrose cística protestaram nas ruas (foto), segurando imagens de seus filhos deitados em camas de hospital.

Demorou três anos para o NHS e a Vertex chegarem a um acordo sobre um preço com desconto. Durante esses três anos, as crianças britânicas com fibrose cística sabiam que existiam novos tratamentos para sua doença, mas não tinham acesso a eles.

A impossível trindade, made in USA

Nos Estados Unidos, a impossível trindade funciona de maneira um pouco diferente. Normalmente, assim que um novo tratamento eficaz é desenvolvido, ele se torna automaticamente disponível para os americanos que têm seguros de saúde.

Sem exclusões, como as promovidas pelo NICE na Grã Bretanha, as seguradoras americanas precisam confiar na estratégia de fazer os pacientes pagarem mais do próprio bolso (o famoso co-pagamento, para impedir o seu uso) ou resignar-se a simplesmente pagar preços cada vez mais altos aos fabricantes.

Tome-se o caso de Zolgensma. Trata-se de um tratamento de dose única, produzido pela Novartis, que promete curar a atrofia muscular espinhal (AME) em crianças pequenas.

A AME é uma doença debilitante que afeta 1 em cada 10 mil nascimentos. Se não forem tratados, os nascidos com a doença morrerão precocemente. Dado o quão devastadora a AME pode ser, e quão eficaz é o Zolgensma em tratá-la, a chegada da terapia parecia ser uma notícia maravilhosa, não é?

Exceto por um problema: a Novartis precificou o Zolgensma em 2,1 milhões de dólares por tratamento.

E agora? O que as seguradoras de saúde americanas farão diante desse preço de 2,1 milhões de dólares? Elas não podem negociar o preço com a Novartis, ameaçando impor altos co-pagamentos a seus clientes pelo Zolgensma, o que reduziria suas vendas.

Afinal, o tratamento é tão eficaz que alguns co-pagamentos não farão muita diferença. As seguradoras também não podem confiar em adiar o tratamento mediante exigências burocráticas como autorização prévia ou terapia escalonada: qualquer médico decente irá até os confins da terra para conseguir um ‘paciente Zolgensma’ se precisar.

Tudo o que resta à seguradora é a exclusão do Zolgensma de seu formulário. E, de fato, em 2019, a UnitedHealthcare anunciou que não cobriria o Zolgensma: o seu preço era muito alto.

Durante semanas, os gerentes da UnitedHealthcare mantiveram essa decisão, esperando que a exclusão levasse a Novartis a negociar o preço. Mas antes que a Novartis pudesse ceder, um clamor entre os pacientes forçou a UnitedHealthcare a mudar de rumo e cobrir o Zolgensma, apesar do seu preço de 2,1 milhões de dólares.

Quem é o vilão?

Novartis ou UnitedHealthcare?

Pode ser tentador apontar a Novartis como a responsável por estabelecer um preço de 2,1 milhões de dólares por tratamento. No entanto, o Institute for Clinical and Economic Review (ICER) estimou que um preço justo para o Zolgensma, considerando seus prováveis benefícios significativos, estaria entre 1,2 milhão e 2,1 milhões de dólares, o último sendo o preço inicialmente definido pela Novartis.

Por outro lado, a UnitedHealthcare também pode ser vista como a vilã por, inicialmente, se recusar a cobrir o Zolgensma. Mas se todas as seguradoras americanas cobrissem todos os novos tratamentos como o Zolgensma sem considerar exclusões, não haveria pressão para reduzir os preços dos fabricantes. É aqui que entram o NICE e a Conitec, excluindo medicamentos do formulário nacional!

Zolgensma é apenas um indicativo do que está por vir. Nos próximos anos, espera-se que várias novas terapias genéticas sejam lançadas anualmente, muitas com preços na casa dos sete dígitos.

É tentador pensar que os reguladores podem encontrar uma solução para a ‘ impossivel trindade’. No Brasil, ainda não se discute o impacto que isso terá no futuro. Pelo menos ao que nos é dado a conhecer pelo noticiário.

A Lei de Redução da Inflação de 2022 nos EUA, por exemplo, permite que o secretário de Saúde e Serviços Humanos negocie preços de medicamentos para alguns dos medicamentos mais caros adquiridos pelo programa Medicare. Embora essa política possa parecer uma vitória clara, ela envolve uma ameaça implícita das seguradoras de retirar a cobertura de medicamentos caros. E, no final, quem sofre é o paciente.

Além disso, a lei provavelmente resultará em restrições mais sutis ao acesso. O Escritório de Orçamento do Congresso dos EUA já prevê que as empresas farmacêuticas responderão a preços mais baixos desenvolvendo menos medicamentos. Algumas dessas drogas que não serão desenvolvidas podem não ser tão cruciais, mas outras poderiam ter sido tratamentos revolucionários aos quais nunca teremos acesso.

Em resumo, da ‘impossível trindade’ não se escapa. Preços altos de medicamentos, restrições de acesso ou co-pagamentos, no caso dos EUA: escolha dois.

A impossível trindade, made in Brazil

No Brasil, a judicialização da saúde tornou-se uma ferramenta frequentemente utilizada por pacientes que buscam garantir o acesso a medicamentos, tratamentos e procedimentos que não são fornecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ou que não são cobertos por planos de saúde privados. Isso ocorre porque a Constituição Brasileira estabelece a saúde como um direito de todos e dever do Estado.

Assim, dentro do contexto da “trindade impossível”, onde os pacientes desejam: 1) Acesso a novos medicamentos; 2) Baixo desembolso para pagar medicamentos; e 3) Preços baixos definidos pelos fabricantes, a judicialização no Brasil introduz uma variável adicional.

Mesmo que um medicamento não esteja disponível pelo SUS ou tenha um preço proibitivo, os pacientes em tese podem recorrer ao Poder Judiciário para obtê-lo. Isso, por sua vez, pode pressionar o sistema de saúde a incorporar novos medicamentos ou a negociar preços mais baixos com os fabricantes.

No entanto, a judicialização também apresenta desafios. Ela pode levar a desigualdades no acesso à saúde, uma vez que nem todos os pacientes têm conhecimento ou recursos para buscar seus direitos na justiça. Além disso, as decisões judiciais frequentemente se baseiam em casos individuais, o que pode não considerar a sustentabilidade do sistema de saúde como um todo.

Assim, no contexto brasileiro, a “impossível trindade” se torna ainda mais complexa. Enquanto a judicialização pode garantir o acesso a medicamentos para alguns, ela também pode levar a desequilíbrios no sistema de saúde e a desafios na gestão de recursos públicos.

Portanto, a presença da judicialização da saúde no Brasil certamente altera o raciocínio sobre a “impossível trindade”, introduzindo nuances e complexidades adicionais ao debate sobre acesso a medicamentos e sustentabilidade de sistemas de saúde.

E como ficaria a impossível trindade no caso brasileiro?

Ela se daria da seguinte forma:

1. Acesso universal a medicamentos e tratamentos: A Constituição Brasileira garante o direito à saúde a todos os cidadãos. Isso significa que, idealmente, todos deveriam ter acesso a medicamentos e tratamentos necessários, independentemente de sua capacidade de pagamento.

2. Sustentabilidade do sistema de saúde: O financiamento adequado e sustentável do SUS é crucial para garantir que ele possa atender às necessidades de saúde da população. A incorporação de novos medicamentos e tratamentos, especialmente aqueles de alto custo, pode pressionar o orçamento do SUS. A judicialização, ao forçar a aquisição de medicamentos caros em casos individuais, pode levar a alocações de recursos que não foram planejadas, em detrimento de outras potenciais necessidades de saúde.

3. Equidade no acesso à saúde: A judicialização pode resultar em desigualdades. Enquanto alguns pacientes conseguem acesso a tratamentos caros por meio de ações judiciais, outros, que talvez não tenham os mesmos recursos ou conhecimento, podem ficar sem acesso. Isso pode criar uma situação em que o acesso à saúde é determinado não apenas pela necessidade médica, mas também pela capacidade de buscar direitos no sistema judiciário.

Dentro desse contexto, a “impossível trindade” brasileira poderia ser formulada da seguinte maneira:

É desafiador, se não impossível, garantir acesso universal a medicamentos e tratamentos, manter a sustentabilidade do sistema de saúde e assegurar equidade no acesso à saúde, tudo ao mesmo tempo.

Assim, enquanto a judicialização pode ser vista como uma solução imediata para garantir o acesso a tratamentos, ela também introduz desafios significativos que refletem essa nova “impossível trindade” no contexto brasileiro.

Desnecessário dizer que a impossível trindade deve intrigar qualquer profissional de saúde pública. Esta pode ser uma explicação para os embates que as pessoas que vivem com doenças raras enfrentam na lida com gestores de saúde.

Acesso universal a medicamentos e tratamentos; sustentabilidade do SUS e equidade no acesso à saúde. Escolha dois; pois com os três a conta não fecha. 


Post inspirado em Drug pricing and the ‘impossible trinity’ for patients

2 comentários em “A ‘impossível trindade’ dos medicamentos de alto custo”

  1. Uma discussão difícil em todos os aspectos. Tomo a liberdade de acrescentar outro aspecto: o moral ou emocional, porque vidas humanas dependem desses sistemas complexos. Logo, as decisões acabam se tornando escolhas entre quem vive e quem morre.

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