A inovação biomédica atingiu uma nova era durante a pandemia de COVID-19 à medida que o desenvolvimento de drogas se intensificou. Mas as maneiras pelas quais as empresas de marca licenciam seus medicamentos patenteados lhes dão monopólio de mercado, impedindo que outras entidades produzam genéricos, de forma que possam lucrar com sua exclusividade. Isso limita significativamente o alcance das drogas que salvam vidas, especialmente para países de baixa e média renda, ou LMICs. ((Do inglês, low and middle-income countries)).
Sou uma economista que estuda a inovação e a digitalização nos mercados de saúde. Crescer numa região em desenvolvimento na China com acesso limitado a medicamentos inspirou-me o interesse em inovações institucionais que podem facilitar o acesso às drogas. Uma dessas inovações é um pool de patentes, ou um balcão único onde as entidades podem pagar um preço baixo por permissão para produzir e distribuir todos os tratamentos cobertos pelo pool. Minha pesquisa recente descobriu que um pool de patentes orientado para a saúde pública pode estimular não só o acesso a medicamentos genéricos em LMICs, mas também a inovação para as empresas farmacêuticas.
Patentes de drogas na paisagem global
As patentes são concebidas para fornecer incentivos à inovação, concedendo poder de monopólio aos seus titulares por um período de tempo, tipicamente 20 anos a partir da data de apresentação do pedido.
No entanto, esta intenção é complicada pela patenteamento estratégico. Por exemplo, as empresas podem atrasar a criação de versões genéricas de um medicamento, obtendo patentes adicionais com base em pequenas mudanças na sua formulação ou método de uso, entre outras táticas. Isso “renova” (evergreens) o portfólio de patentes da empresa, sem exigir novos investimentos substanciais em Pesquisa e Desenvolvimento.
Além disso, uma vez que as patentes são específicas de jurisdição, os direitos de patente concedidos nos EUA não se aplicam automaticamente a outros países. As empresas muitas vezes obtêm múltiplas patentes que cobrem o mesmo medicamento em diferentes países, adaptando as reivindicações com base no que é patenteável em cada jurisdição.
Para incentivar a transferência de tecnologia para países de baixa e média renda, os países membros da Organização Mundial do Comércio assinaram o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, ou TRIPS, que estabelece as normas mínimas para a regulação da propriedade intelectual. Nos termos do TRIPS, os governos e os fabricantes de medicamentos genéricos em países de baixa e média renda podem infringir ou invalidar patentes para reduzir os preços dos medicamentos patenteados sob certas condições. As patentes em LMICs também foram reforçadas para incentivar as empresas de países de alta renda a investir e negociar com eles.
A Declaração de Doha de 2001 esclareceu o âmbito de aplicação do TRIPS, enfatizando que os regulamentos de patentes não deveriam impedir o acesso às drogas durante crises de saúde pública. Também permitia a concessão de licenças compulsórias, ou a produção de produtos ou processos patenteados sem o consentimento do titular da patente.
Um exemplo notável de legislação nacional de patentes em prática após o TRIPS é o medicamento anticâncer da Novartis, o imatinibe (Glivec ou Gleevec). Em 2013, o Supremo Tribunal da Índia negou o pedido de patente da Novartis para o Glivec por obviedade, o que significa que tanto os especialistas como o público em geral poderiam chegar eles próprios à invenção sem exigir muita habilidade ou reflexão. A questão centrou-se em saber se as novas formas de substâncias conhecidas, neste caso uma forma cristalina de imatinib, eram demasiado óbvias para serem patenteáveis. Na época, o Glivec já havia sido patenteado em outros 40 países. Como resultado da decisão histórica da Índia, o preço do Glivec caiu de cerca de 2.200 dólares 88 dólares por um mês de tratamento.
Desafios e pools de patentes
Embora o TRIPS tente equilibrar os incentivos à inovação com o acesso a tecnologias patenteadas, ainda existem questões relacionadas com as patentes. Coquetéis de drogas, por exemplo, podem conter vários compostos patenteados, cada um dos quais pode ser de propriedade de diferentes empresas. A sobreposição dos direitos de patente pode criar um “excesso de patentes” (patent thicket) que bloqueia a comercialização. Tratamentos para condições crônicas que exigem um fornecimento estável e barato de medicamentos genéricos também representam um desafio, uma vez que a carga de custos do uso a longo prazo de drogas patenteadas é muitas vezes inacessível para pacientes em países de baixa e média renda.
Uma solução para estes problemas de acesso às drogas são os pools de patentes. Em contraste com o mercado de licenciamento atualmente descentralizado, onde cada proprietário de tecnologia negocia separadamente com cada licenciado potencial, um pool de patentes fornece um balcão único onde os licenciados podem obter os direitos para várias patentes ao mesmo tempo. Isso pode reduzir os custos de transação, empilhamento de royalties e problemas de atraso na comercialização de drogas.
Pools de patentes foram usados pela primeira vez em 1856 para máquinas de costura e já foram onipresentes em várias indústrias. Os pools de patentes gradualmente desapareceram após uma decisão da Suprema Corte dos EUA em 1945, que aumentou o controle regulamentar, impedindo a formação de novos pools. Os pools de patentes foram posteriormente ressucitados na década de 1990 em resposta a desafios de licenciamento no setor das tecnologias de informação e comunicação.
O Pool de Patentes de Medicamentos
Apesar de muitos desafios, o primeiro pool de patentes criado com o propósito de promover a saúde pública foi formado em 2010 com o apoio das Nações Unidas e da Unitaid. O Medicines Patent Pool, ou MPP, visa estimular a concessão de licenças genéricas para medicamentos patenteados que tratam doenças que afetam desproporcionalmente países de baixa e média renda. Inicialmente abrangendo apenas medicamentos contra o HIV, o MPP mais tarde se expandiu para incluir medicamentos para hepatite C e tuberculose, muitos medicamentos na lista de medicamentos essenciais da Organização Mundial de Saúde e, mais recentemente, tratamentos e tecnologias para a COVID-19.
Mas quanto o MPP melhorou o acesso às drogas?
Procurei responder a esta pergunta examinando como o Medicines Patent Pool afetou a distribuição de medicamentos genéricos em países de baixa e média renda e a Pesquisa e Desenvolvimento biomédico nos EUA. Para analisar a influência do MPP na ampliação do acesso a medicamentos genéricos, recolhi dados sobre contratos de licenciamento de drogas, aquisições, patentes públicas e privadas e outras variáveis econômicas de mais de 100 países de baixa e média renda. Para analisar a influência do MPP na inovação farmacêutica, examinei dados sobre novos ensaios clínicos e novas aprovações de medicamentos durante este período. Estes dados abrangem o período de 2000 a 2017.
Descobri que o MPP levou a um aumento de 7% na cota de medicamentos genéricos fornecidos aos LMICs. Os aumentos foram maiores nos países onde os medicamentos são patenteados e nos países fora da África subsaariana, onde as cotas de referência de medicamentos genéricos são mais baixas e podem beneficiar-se mais da concessão de licenças baseadas no mercado.
Descobri também que o MPP gerou efeitos positivos para a inovação. Empresas fora do pool aumentaram o número de testes que realizaram em coquetéis de drogas que incluíam compostos de MPP, enquanto as empresas de droga de marca que participaram no pool deslocaram o foco para o desenvolvimento de novos compostos. Isso sugere que o MPP permitiu que empresas fora do pool explorassem novas e melhores maneiras de usar medicamentos MPP, como em novas populações de estudo ou diferentes combinações de tratamento, enquanto que as empresas de marcas que participam no pool poderiam gastar mais recursos para desenvolver novos medicamentos.
O MPP também foi capaz de reduzir a carga da vigilância sanitária pós-comercialização para as empresas de marca, permitindo-lhes impulsionar novos medicamentos através de ensaios clínicos, enquanto as empresas genéricas e outras empresas independentes poderiam monitorar a segurança e a eficácia de medicamentos aprovados de forma mais barata.
Em geral, a minha análise mostra que o MPP efetivamente ampliou o acesso genérico aos medicamentos contra o HIV nos países em desenvolvimento sem diminuir os incentivos à inovação. Na verdade, até estimulou as empresas a fazerem melhor uso das drogas existentes.
Licenciamento de tecnologia para o COVID-19 e além
Desde maio de 2020, o Medicines Patent Pool tornou-se um parceiro-chave do World Health Organization COVID-19 Technology Access Pool, que trabalha para promover o acesso equitativo e custoefetivo a produtos de saúde para o Covid-19 em todo o mundo. O MPP não só tornou a licenciamento de produtos de saúde para o COVID-19 mais acessível para os países de baixa e média renda, mas também ajudou a estabelecer um hub de transferência de tecnologia de vacina de mRNA na África do Sul para fornecer o treinamento tecnológico necessário para desenvolver e vender produtos que tratam o Covid-19 e outras enfermidades.
A licença de tecnologias relacionadas com o COVID-19 pode ser complicada pela grande quantidade de segredos comerciais envolvidos na produção de medicamentos derivados de fontes biológicas. Estas exigem muitas vezes transferência de tecnologia adicional para além de patentes, como por exemplo detalhes de fabricação. O MPP também trabalhou para se comunicar com empresas de marcas, fabricantes de genéricos e agências de saúde pública em países de baixa e média renda para preencher a lacuna de conhecimento em licenciamento.
Permanecem questões sobre a melhor forma de utilizar as instituições de licenciamento como o MPP para aumentar o acesso a medicamentos genéricos sem prejudicar o incentivo à inovação. Mas o MPP está provando que é possível alinhar os interesses das Big Pharma e dos fabricantes de genéricos para salvar mais vidas nos países em desenvolvimento. Em outubro de 2022, o MPP assinou um acordo de licenciamento com a Novartis para o medicamento para leucemia nilotinib . É a primeira vez que um medicamento contra o câncer foi incluído num acordo de licença orientado para a saúde pública.
* Professora Assistente, Departamento de Economia de Recursos, UMass Amherst