[su_dropcap style=”flat”]A[/su_dropcap] expressão “doenças raras”, tal como a concebemos hoje, surge como consequência de toda a polêmica envolvendo a publicação, nos Estados Unidos, na década de 1960, de uma medida legal: a Emenda Kefauver-Harris ou Emenda da Eficácia dos Medicamentos.
Datada de 1962, ela alterou a Lei Federal de Alimentos, Medicamentos e Cosméticos (Federal Food, Drug and Cosmetic Act), publicada originalmente em 1938.
A Kefauver-Harris foi responsável pela reestruturação completa da forma pela qual os medicamentos eram aprovados nos Estados Unidos (e depois em todo o mundo), afetando até mesmo decisões a respeito de quais deles desenvolver. Foi um dos mais importantes acontecimentos a definir a evolução do cenário regulatório-industrial dos Estados Unidos, desde a década de 1930. A nossa ANVISA, criada em 1990, é fruto destas mesmas preocupações de Estado relativas à segurança e eficácia de medicamentos.
Sulfanilamida em 1938; talidomida em 1960. Se a Lei Federal de Alimentos, Medicamentos e Cosméticos de 1938 fora inspirada pela tragédia da sulfanilamida, os sinistros efeitos da talidomida, em 1960, foram responsáveis pela publicação da Emenda Kefauver-Harris.
De fato, a Emenda da Eficácia dos Medicamentos, como também é conhecida, introduziu novas exigências de eficácia e segurança no processo regulatório da assistência farmacêutica nos Estados Unidos, que contribuíram significativamente para o surgimento do que hoje ficou conhecido como “medicamento órfão”.
Tais exigências relacionavam-se a aspectos de segurança e eficácia e se materializavam em medidas que tratavam da aprovação, testes clínicos, a rotulagem, a publicidade e a fiscalização da indústria farmacêutica.
Reação à tragédia da talidomida, substância que provocou defeitos congênitos em milhares de crianças, contraídos durante a gestação, a Emenda da Eficácia dos Medicamentos obrigou os fabricantes de medicamentos a oferecerem prova de eficácia e segurança de seus produtos por meio de testes clínicos, retroativamente a 1938.
A reação dos fabricantes foi descontinuar a produção dos medicamentos cuja realização de testes clínicos pudesse se revelar cara, dadas a escassez e dispersão geográfica dos pacientes voluntários para pesquisas a serem recrutados.
Assim, do dia para a noite, cidadãos norte-americanos passaram a não contar com medicamentos de que já faziam uso e a disposição da indústria para produzir medicamentos para doenças pouco frequentes diminuiu ainda mais.
E no Brasil, quando é que se começa a falar de “doenças raras”?
No Brasil, o tema “doenças raras” parece ganhar relevo no ano de 2009 com a realização do I Congresso Brasileiro de Doenças Raras, em São Paulo, com o patrocínio da Fundación Gêiser e apoio do vereador Ushitaro Kamia (DEM-SP). Este evento antecede a participação de delegação brasileira na VI Conferencia Internacional sobre Doenças Raras e Medicamentos Órfãos, realizada em Buenos Aires, em março de 2010.
Também em 2010, mais precisamente no dia 28 de fevereiro, foi realizada em São Paulo a Primeira Caminhada de Apoio ao Portador de Doenças Raras, com a chancela da Secretaria Municipal da Pessoa Deficiente e com Mobilidade Reduzida (SMPED).
O evento fez parte das comemorações do Dia Mundial das Doenças Raras, lançado pela Organização Nacional de Doenças Raras (NORD) em 2009, nos Estados Unidos. Até onde pudemos apurar, portanto, a primeira menção no Brasil a “doenças raras” enquanto objeto de mobilizzação de pacientes se dá em 2009.
A fascinante história das doenças raras ainda não acabou de ser contada. No próximo post, vamos revelar como se deram os primeiros passos para a construção dos movimentos de pacientes com doenças raras.
Moral da história
Como você pode ver, Um certo paradoxo da sociedade moderna é o fato de a falta de opções terapêuticas para os portadores de doenças raras ser, em parte, resultado das crescentes demandas da sociedade por proteção da saúde pública, através da promoção de testes clínicos de medicamentos, antes de sua comercialização. Esta exigência, como vimos, é produto da Emenda Kefauver-Harris.
Na verdade, os testes clínicos serão responsáveis por uma dupla penalização dos portadores de doenças pouco frequentes:
A primeira, por seu papel central na definição do que hoje se conhece como “doenças raras”. Não fosse a exigência de testes clínicos para verificação de eficácia e segurança de medicamentos, a expressão “doenças raras”, no sentido que hoje lhe damos, talvez jamais tivesse sido criada.
A segunda, quando da tomada de decisão pelas autoridades regulatórias para fornecimento de medicamentos aos seus portadores. Em tese, esta deveria ser amparada pela busca da melhor evidência científica para tal, que sempre está condicionada ao “poder estatístico” dos achados verificados em testes clínicos.
No entanto, dado o escasso número de portadores destas doenças (quando tomadas individualmente), tal poder estatístico, que agregaria ‘cientificidade’ à decisão, é difícil de ser obtido, como se verá futuramente neste blog. A nosso ver, este é um dos fatores que contribui para a judicialização da saúde. Mas esta é história para outro post!
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Nota da Redação: Logo após a publicação deste post, Regina Próspero, presidente do Instituto Vidas Raras e ABRAMPS – Rarissimas Brasil, nos mandou a seguinte mensagem, pela qual lhe agradecemos:
Claúdio
Boa tarde.
Estava lendo o post no blog academia de pacientes, e devo parabeniza-lo. Muito bom o texto. Porém, acredito ser necessário corrigi-lo em relação ao surgimento do termo doenças raras no Brasil, drogas órfãs e movimentos de associações sobre estes temas.
Nossa associação trabalha no tema Drogas Órfãs desde 2001 quando soubemos que estava em fase 2, pesquisas clínicas para MPSs, das quais fomos protagonistas em todas elas.
Nos envolvemos em movimentos em prol da saúde de pacientes de doenças raras e defendendo (juntamente com outras associações) a regulamentação destas como drogas Órfãs desde 2007, quando da primeira audiência pública no Senado, sobre este tema: direito do tratamento das doenças raras, que culminou na audiência pública no STF em 2009.
Estávamos junto de outras associações de pacientes no 1 encontro de Doenças Raras que aconteceu em SP e também na comitiva que foi a Buenos Aires, todos estes momentos, muito bem lembrados por você.
Enfim, acredito que vale a pena mostrar a trajetória que antecede 2009,
Fico à disposição,
Abraços,
Feito o adendo, a partir de informações dadas gentilmente por Regina Próspero e não verificadas por mim, informo que, na realidade, me baseei nos critérios de Ciência da Informação e Informação Científica para definir o nascimento oficial de um campo de saber, neste ou naquele país. De fato, a Ciência da Informação ensina que uma maneira de constatar o nascimento de um novo campo de saber é a realização de congressos nacionais ou internacionais.
Agradecemos a Regina por sua observação e conclamamos a todos os pacientes para fazer como ela, quando o assunto assim o exigir.
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Cláudio,fico muito feliz em saber que, ainda de uma forma simples nesta época, com 27 casos conhecidos de Homocistinuria, eu estava presente em todos esses momentos que voce citou. Tudo começara nesta época. Meu filho tinha o diagnóstico a pouco tempo. Pré-congresso das doenças raras,primeira caminhada … Bom lembrar o quanto luto por dias melhores. Com relação à judicialização, pelo menos no meu caso aconteceu porque o governo exígiu. Em 2002, foi publicada uma Portaria sobre osteoporose e ela já falava da Homocistinuria como causa secundária. Então, já sabia que existia a Homocistinuria e não fez nada para impedir que as famílias fossem procurar seus direitos na justiça. Depois disso publicou duas Portarias para que as fórmulas fossem distribuídas pelo SUS e nada foi feito. Então pergunto: Catorze anos não foram suficientes para o governo disponibilizar o tratamento para homocistinúria?
Concordo com o autor com a adoção de um “recorte” e fica claro realmente que, no final da década passada, o movimento ganhou muito em organização e visibilidade a partir do congresso e outras ações. No entanto, como bem disse a Regina Próspero, é possível voltar um pouco mais atrás nos antecedentes da mobilização da sociedade civil no Brasil em torno das doenças raras. A associação Brasileira de Assistência à Mucoviscidose, ABRAM, também esteve presente nas audiências com a então ministra do STF Ellen Grace para sensibilizar o poder judiciário sobre as peculiaridades das doenças pouco prevalentes e muito antes disso também esteve empenhada na concretização de um protocolo clínico nacional para o tratamento da fibrose cística que inluísse todos os medicamentos necessários. Tenho certeza que a luta da MPS e da FC encorajaram outras organizações a buscarem seus direitos.
Prezado Cristiano, agradecendo seus comentários, esclareço mais uma vez que busquei configurar o nascimento de um campo de saber segundo o que preconiza o campo da “Ciencia da Informação”. Segundo esta abordagem teórica, um novo campo de saber surge quando, grosso modo, realiza seu primeiro congresso, e foi a isso que me restringi. Att. Claudio.