O que aprendi com os raros portugueses: O caso Manuel Matos (2)

No post passado, você conheceu a história de Manuel Matos e o drama de portadores de doenças raras em Portugal, quando seus pais-cuidadores têm idade avançada.

Se você não leu a primeira parte desta matéria, clique aqui.

Sua história foi publicada no jornal Público, de Portugal, em 2007. O release/entrevista do caso de Manel que levou o jornal Público a lhe procurar foi redigido por mim também, e você pode ler ao longo deste post.

Aqui você lê o comunicado de imprensa que redigi na ocasião, onde Manuel revela seu drama com todas as letras, sem retoques. Este comunicado motivou a cobertura jornalística que o caso recebeu na ocasião

DRAMA DE MANUEL MATOS
REVELA ABANDONO A QUE ESTÃO SUBMETIDOS
PORTADORES DE DOENÇAS RARAS EM PORTUGAL

Com medo de morrer, professor se vê como um “presidiário no deserto” e lança apelo desesperado

Às vésperas da realização da Conferência Internacional de Doenças Raras, a acontecer em Lisboa, entre os dias 27 e 28 de novembro [2007], o drama pessoal vivido pelo professor Manuel Antonio da Cunha Matos dá bem a dimensão do estado de abandono em que se encontram os portadores de doenças neuromusculares em Portugal.

Manuel Matos, 52 anos, tem a doença de Werdnig-Hoffman (Atrofia Espinhal Tipo I) desde a nascença e só se mantém vivo pelos cuidados domiciliares constantes ministrados por seus pais, que já se aproximam dos 80 anos de idade. Não conta com nenhum apoio da Segurança Social do Estado português. Neste momento, seu quadro de saúde vem se complicando, o que o fez tomar a iniciativa de lançar um grito de alerta à sociedade portuguesa.

     Somente os cuidados de seus pais desde a infância permitiram que Manuel Matos alcançasse a quinta década de vida em doença que comumente mata já na primeira infância. Permitiram também que estudasse e lecionasse no ensino secundário, tendo prestado 28 anos de serviço profissional por sua determinação de lutar. Actualmente, Manuel de Matos continua a depender dos pais as 24 horas, para tudo, inclusive, para lhe aspirar a saliva e para tossir, pois os seus músculos da deglutição e pulmonares também já quase não funcionam. Porém, o natural avançar da idade de seus pais preocupa este professor, que, já não bastasse as dramáticas consequências da doença sobre seu corpo, ainda não conseguiu obter do Estado português sua reforma antecipada [aposentadoria] por invalidez.

Se seus pais morrerem, ele sabe que seu destino estará selado.

“É evidente que os meus pais são mais velhos do que eu, (porque acontece!), e é evidente, que o fim deles, biologicamente, é anterior ao meu. Portanto, a perspectiva que eu tenho tido é de que estou amarrado num barco que vai ao fundo e tem um salva-vidas, só que o salva-vidas não me é dado e eu vou ao fundo. Vou ir ao fundo com eles! Isso não pode acontecer! É que hoje a situação mantém-se. Eu só existo na medida em que eles existem, e enquanto eles existirem. Isso é… angustiante”, desabafa Manuel.  

FOME DE VIVER

Apesar do avanço avassalador de sua doença, Manuel de Matos manifesta firmemente o desejo de continuar vivendo, mas teme pela sua sorte.

“Quero ser muito objectivo porque também a par desse lado sinistro da falta de aceitação do ser humano que eu sou, inteiro, vivo, e que quero viver, ninguém pode e muito menos eu, ninguém pode negar a enorme capacidade de sacrifício sobretudo da minha mãe. Ela já fez coisas muito acima da capacidade física de um ser humano para me ajudar, sem dúvida. Só que isso não chega. Não chega e se ela tiver ou o meu pai, neste momento, se tiverem um acidente que os inviabilize fisicamente, eu simplesmente estou condenado a ficar à espera que a morte venha. Ninguém me pode por a funcionar, eu não funciono”

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Manuel Matos aponta a solução para casos como o seu, que estima-se que acometa cerca de mil portugueses.

“Neste momento é urgentíssimo criar a figura social, profissional, do cuidador de pessoa que não é autosuficiente…, seja a que nível for, mas sobretudo a nível físico…, de forma a que ela, como qualquer outra pessoa, tenha o direito a viver… a sua vida, independentemente do medo, do pavor de ser deixado sozinho. E a ter direito também de ser o que é, sendo um indivíduo de vontade própria, e actuação consentânea. Não é humano,  humanamente aceitável, a não ser em sistemas de escravatura, um ser humano ser obrigado a renegar-se sistematicamente, a não fazer sistematicamente o que quer fazer. Não é humano! “

E Manuel lança um apelo desesperado aos homens e mulheres de boa vontade, com as poucas forças que ainda lhe restam.

“Eu gostaria de chamar a atenção para que não é humanamente aceitável condenar alguém a esta prisão no deserto. Que é disto que se trata. Independentemente do que tenha, do crime que tenha cometido, ninguém, pelo menos deste lado do mundo, ninguém é condenado à prisão perpétua dentro dum deserto. Não há a pena de prisão perpétua, sem sequer sobrevivência biológica garantida. Ninguém põe um presidiário no meio do deserto e quando os guardas da prisão saírem, ele simplesmente morre de fome e de sede. E a minha situação é essa! Quando os meus cuidadores, entre aspas, deixarem de poder apoiar-me, eu fico na situação desse presidiário que foi posto no deserto. E não tenho como sair da situação. Não tenho alternativa!”

Manuel Matos nos deixou em 2009, em circunstâncias impressionantes, que ainda considero se divulgarei aqui.

Posso lhes dizer que o anúncio da sua morte foi uma das coisas mais marcantes de minha vida. Preciso decidir ainda se é o caso de lhes revelar em que circunstâncias ela ocorreu.

1 comentário em “O que aprendi com os raros portugueses: O caso Manuel Matos (2)”

  1. Esse texto fez-me lembrar de alguns outros escritos por mim e divulgado entre amigos ou mídias mais antigas, talvez da mesma época do distinto cidadão português. Ainda consigo caminhar com auxílio de um andador que me proporciona satisfatória autonomia. Apenas com bengala faltam paredes e anteparos para apoiar. E fico muito feliz, com a minha “independência” e a vontade de ir em frente.
    Para quem não tem uma doença neuro-muscular é inimaginável uma prisão tão cruel. Você se torna um prisoneiro do próprio corpo.
    Uma vez perguntaram qual seria a prisão ideal no Brasil frente a tantos crimes bárbaros e uma corrupção deslavada e abusiva. Respondi que bastava uma alteração genética temporária, pelo tempo da pena, reversível e que daria ao criminoso a incapacidade da fuga, parado e vendo o tempo e a vida passar. Tempo suficiente para pensar e ponderar a respeito da péssima liberdade que muitos usufruem. Cruel mesmo, politicamente incorreto, pouco cristão, mas; tenho absoluta certeza, de uma força educativa definitiva.

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