Um mergulho no tão desprestigiado campo acadêmico em tempos de barbárie nos faz recuperar o sentido da expressão “pensamento mágico”.
Localizada na interface entre a psicanálise, a antropologia e as ciências cognitivas, tal expressão é empregada para descrever “a crença segundo a qual certos pensamentos levariam não apenas à realização de desejos, mas também à prevenção de eventos problemáticos ou desagradáveis”.
Em Totem e Tabu, Freud (1913), o pai da psicanálise, dedica todo um capítulo à origem e à importância do pensamento mágico no desenvolvimento da história libidinal da humanidade, e mostra a persistência dessa forma de pensamento na vida moderna, seja sob a forma degradada da superstição, seja como a base viva de nossa fala, nossas crenças, nossas filosofias e nosso agir no mundo.
A persistência deste tipo de pensamentos na vida adulta denotaria uma certa imaturidade ou desequilíbrio psicológico. Transportado para a vida de um país, o pensamento mágico gera cidadãos crédulos, ingênuos, passivos, alienados, eternas vítimas involuntárias da proverbial matreirice de políticos e gestores.
Recentemente, o ministério da saúde anunciou, com alguma estridência, a incorporação ao SUS daquele que até recentemente era “o medicamento mais caro do mundo”: Zolgensma (Novartis) para tratamento de pessoas que vivem com Atrofia Muscular Espinhal I.
Michel Foucault dizia que “pensar não consola, nem traz felicidade”. Fato. Mas se o pensamento for “mágico”, você fica em torpor inebriante.
Freud definiu o pensamento mágico como “o princípio da onipotência de pensamentos [sobre o real]”
Vamos aos fatos.
Retomemos algumas afirmações do insuspeito geneticista Salmo Raskin, em sua conta Twitter, com algumas considerações de minha lavra.
🧬Seis meses de idade representam o período de máxima efetividade de aplicação do Zolgensma em recém-nascidos. Aqui a Conitec parece ter acertado em sua recomendação, muito embora o fabricante aconselhe sua aplicação até os dois anos de idade.
🧬Até o momento, o SUS não dispõe de triagem neonatal para Atrofia Muscular Espinhal. A existência do teste do pezinho no SUS para AME tipo I seria crucial, se quiséssemos cumprir a exigência de aplicar o tratamento em crianças até seis meses de idade daqui a seis meses.
🧬Pela recomendação da Conitec, o prazo para disponibilização da terapia no SUS é de seis meses, a contar da publicação da portaria de incorporação do Zolgensma ao SUS. Mas sem “teste do pezinho” na rede para AME é quase certo que nenhum bebê de até seis meses poderá se habilitar ao tratamento quando esta oportunidade se der. E como tempo passa e nem todos podem ser criopreservados em seus seis meses de vida, muitos bebês perderão a oportunidade de ouro de serem rastreados para AME.
🧬Como o país não possui dados confiáveis de vigilância epidemiológica em doenças raras, desconhecemos a idade média com que as crianças recebem o diagnóstico definitivo de AME tipo I no Brasil. Na Europa, é de 4,7 meses de idade, sendo que 32% deles se dão após os seis meses de idade. Nos EUA, a média de idade de diagnóstico é de 5,2 meses de vida.
🧬Na prática pediátrica, é usual esperar-se completar o primeiro ano de vida para a confirmação diagnóstica de AME.
Resumindo: ainda que tenhamos muita fé e boa vontade, é bastante improvável que as medidas necessárias para se oferecer Zolgensma daqui a seis meses bem como a infraestrutura complexa para a confirmação diagnóstica através do “teste do pezinho” no SUS terão sido providenciadas.
Desta forma, famílias inteiras verão que seus filhos completarão seis meses sem poder se candidatar ao tratamento revolucionário. E perderão a oportunidade. Mas a quem culparão? Ao governo que sai, com seu golpe de mestre? Ou ao governo que entra, a quem entregaram a batata quente? Você já deve imaginar a resposta.
Na melhor das hipóteses, a afoita incorporação do Zolgensma ao SUS no apagar das luzes de um governo inepto, servirá para acelerar os trâmites para a inclusão da AME no “teste do pezinho ampliado”. Mas não esperem milagres para daqui a seis meses.
Nesse caso, o mérito não deveria ser creditado ao governo que se vai, mas sim ao governo que está por vir.
A ver.
Olá Claudio, que percepção bacana e ancestral
Obrigado, Eni. Grande abraço!